Diz NÃO à Praxe
Supremo Tribunal de Justiça dá razão a Ana Sofia Damião e Instituto Piaget condenado a pagar indemnização de 38 mil euros
Esta semana chegou ao fim um dos processos mais importantes relacionado com a praxe académica. Ana Sofia Damião, na sequência de um processo cível em que exigia que fosse reconhecida a responsabilidade do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros, vê mais uma vez reconhecidos os factos relacionados com a praxe a que foi sujeita.
Ana Sofia Damião foi, no ano lectivo de 2002/2003, sujeita às violências da praxe: insultada, obrigada a despir-se e a vestir-se novamente, forçada a simular orgasmos e relações sexuais com colegas, a relatar pormenores da sua vida sexual e intimada a insultar os seus pais. O inconformismo fez com que a aluna se queixasse junto da Escola e do Ministério, tendo resultado a abertura de um inquérito pela Direcção do Instituto Piaget de Macedo de Cavaleiros.
Inacreditavelmente, agressores e agredida foram sancionados, por igual, com uma repreensão escrita – a Ana Sofia “pela forma subjectiva excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravidade que decorre da sua exposição”; os agressores “por não terem a preocupação de avaliar se as ordens da praxe poderiam ferir susceptibilidades individuais”.
A indiferença demonstrada por esta direcção é agravada pelas declarações de um antigo docente e membro do Concelho Pedagógico e Concelho Científico do Piaget de Macedo, que afirma que esta direcção estava claramente a tentar obter o máximo de aproveitamento publicitário de toda a situação.
Ana, abandonada por todos os que tinham responsabilidades no processo – Direcção do Instituto Piaget, Ministério com a tutela do Ensino Superior, Associação de Estudantes, Comissão de Praxe –, vê-se forçada a abandonar essa escola e tentar ingressar noutro instituto (o que consegue!). Mas o caso não ficaria por aqui.
Na sequência da queixa-crime que interpôs, vem a surpreendente decisão do Tribunal de Macedo de Cavaleiros, que se decidiu pela não existência de julgamento. De facto, apesar do juiz ter reconhecido todos os actos (crimes, portanto!) de que Ana se queixava, argumentou que por não se ter declarado anti-praxe, deu consentimento para ser submetida a qualquer prática, independentemente da sua natureza. Inacreditavelmente, foi reconhecida maior legitimidade “às leis da praxe” do que às leis do país. Ficaram por julgar os crimes da praxe.
Mais tarde, Ana avança com um processo cível contra o Piaget de Macedo de Cavaleiros. Perdido o processo-crime contra os agressores, exigiu na altura a responsabilização da escola – 70 mil euros pelos “danos morais e patrimoniais” decorrentes de todo o caso. Esta foi a primeira vez que uma instituição do Ensino Superior foi chamada à barra dos tribunais e obrigada a assumir a sua responsabilidade na praxe e a justificar a conivência com a violência.
O Tribunal de Macedo de Cavaleiros declarou como provadas as seguintes situações: a direcção IPMC tinha conhecimento e aceitava com naturalidade a existência e o conteúdo das praxes no Instituto, nomeadamente porque aceita e legitima o dito "Código de Praxe"; a direcção do IPMC conheceu, em tempo útil, os factos ocorridos com a Ana Sofia Damião, que deram origem a este processo; a Ana ficou revoltada, triste e humilhada na sequência do ocorrido; a degradação do estado de saúde da Ana, consequência de todo o processo, levou-a a abandonar a faculdade.
Esta foi, sem dúvida, uma decisão inédita e da maior importância. Foi a primeira vez que um tribunal reconheceu as responsabilidades objectivas de uma direcção de uma universidade relativamente a esta temática. A coragem da Ana, que nunca desistiu perante as arbitrariedades e contrariedades que enfrentou nos últimos anos, já valeu a pena.
Foram interpostos vários recursos, até que o processo chegou ao Supremo Tribunal de Justiça. Soubemos hoje que foi, inevitavelmente, dada novamente razão a Ana Sofia Damião, tendo o Instituto Piaget sido condenado a pagar uma indemnização de 38 mil euros.
Mais do que o valor monetário que foi atribuído à Ana – sempre muito pouco “compensador” para todas as dificuldades e injustiças que teve de enfrentar – o que verdadeiramente está em causa é saber que a persistência de quem não cruzou os braços perante as adversidades e enfrentou todos os poderes tem direito à merecida justiça. Contudo, não podemos também deixar de dizer que este é apenas um caso entre tantos outros que, não tendo chegado à Justiça, acabam por ficar à mercê da impunidade e aproveitamento.
Não podemos deixar de saudar a Ana, a sua coragem e determinação. É um grande incentivo e exemplo para todos, nomeadamente para aqueles que para quem este caso motiva a romper o silêncio que muitas vezes envolve experiências semelhantes de coacção, violência e humilhação.
Basta constatar que, na sequência da sua denúncia, muitas outras situações foram expostas.
Recordamos o caso da Ana Santos, que denunciou as práticas de praxe decorridas na Escola Superior Agrária de Santarém em Outubro de 2002. Também após um longo processo se assistiu a uma decisão inédita: em Maio de 2008 Seis arguidos, acusados do crime de ofensa à integridade física qualificada, e o sétimo, do crime de coacção, foram condenados a pagar multas entre os 640€ e os 1600€.
Não podemos também deixar de falar no caso do Diogo Macedo e na esperança de que o inquérito recentemente instituído esclareça as causas da sua morte.
A impunidade já não é uma realidade. A conivência com a violência e práticas humilhantes e subjugantes tem um preço. Esta decisão obriga a uma reflexão na escola, na comunidade estudantil, na sociedade. Obriga a que seja questionada a cultura do medo, violência e coação que existe e é cultivada no ensino. Exige que seja reclamada uma escola em que os estudantes são iguais, em que a integração não significa subjugação, em que a democracia não fica à porta. E faz com que as entidades responsáveis pelas várias instituições do ensino superior percebam que simplesmente proibir a praxe não serve. Já não chega olhar para o lado.
Estes casos demonstram claramente que as leis da praxe não são e nunca poderão ser diferentes daquelas que recaem sobre os restantes cidadãos.
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