Outros caminhos possíveis... Reconhecida figura pública, Carvalho da Silva, sindicalista deste 1974, concluiu este ano uma importante investigação em torno da temática do trabalho e da sua importância na vida das pessoas. Aliando a sua vasta experiência, “a muita vida percorrida e partilhada”, à investigação sociológica a que se dedicou nos últimos dez anos, terminou com distinção e louvor uma polémica tese de doutoramento pelo ISCTE. Apresentando casos concretos, próximos das pessoas e do cidadão comum, este trabalho aponta soluções e alternativas às actuais políticas do trabalho.
O trabalho é fundamental na vida das pessoas.
Por vezes perdemo-nos em discursos estatísticos e abstractas percentagens, mas a verdade é que o trabalho, o desemprego, a precariedade afectam a forma como o indivíduo se sente consigo mesmo, a sua auto estima e dignidade; as suas relações sociais e familiares.
Consciente dessa centralidade do trabalho na vida das pessoas, Carvalho da Silva acompanha de perto os problemas laborais desde anos 70. Natural de Viatobos, em Barcelos, onde nasceu no ano de 1948, sonhava levar a electricidade à casa dos pais. Como os pais não tinham meios para o mandar estudar, acabou por tirar o curso de Montador Electricista. Aos 45 anos de idade decide completar a sua formação, entrando, por exame ad-hoc, no curso de Sociologia no ISCTE, defendendo em 2007 a presente tese. Ligando sempre a sua experiência de vida à investigação sociológica, consegue precisamente neste trabalho focar problemas tão actuais como a globalização, o individualismo, as desigualdades sociais, a cada vez maior precariedade no trabalho. Ao mesmo tempo que foca as grandes temáticas mantém assim uma forte ligação ao mundo concreto das pessoas e trabalhadores com quem conviveu durante anos. Talvez por isso afirme, «O meu único contributo com este livro será o de chamar a atenção - chamar a atenção para aspectos marcantes e perigosos do processo de globalização em curso, para alternativas possíveis, para que não nos acomodemos.»
Trabalho e Sindicalismo em Tempo de Globalização
de MANUEL CARVALHO DA SILVA.
Edição da Temas & Debates.
Muita vida percorrida e partilhada...
Queria levar a luz à casa dos seus pais. Natural de Viatodos, Barcelos, Manuel Carvalho da Silva nasceu no seio de uma família de agricultores. Não havendo electricidade em casa sonhava um dia ser engenheiro electrotécnico. Acabou electricista. Em 1973, por se insurgir contra um gestor da empresa, foi despedido. É sindicalista desde 1974. Com 45 anos de idade iniciou a licenciatura em Sociologia, entrando por exame ad-hoc, e este ano terminou o doutoramento no ISCTE, com nota máxima: distinção e louvor por unanimidade. É essa tese que dá origem a este livro, com o título «Trabalho e Sindicalismo em Tempo de Globalização». Positivo, avesso ao derrotismo, é capaz de dizer - bem alto e claro - que não. Não à desumanização, à injustiça, às crescentes desigualdade sociais.
Jornalista- Usa com frequência a expressão de “centralidade do trabalho” na vida das pessoas.
Manuel Carvalho da Silva - Sem trabalho não conseguimos organizar a nossa vida de ponto de vista individual, familiar, colectivo. Uma vez no desemprego, ou com trabalho muito precário, as relações sociais descem a pique de uma forma impressionante. E as pessoas ficam desprotegidas. Aliás, quanto maior a qualificação mais visível é a perda de relações e estatuto social.
Jornalista - O que quer dizer com perda de relações sociais?
MCS – É impressionante observar jovens quadros de empresas que passam de uma situação confortável (o bom salário, o bom automóvel, o cartão de crédito) para o desemprego. Sem emprego não têm os meios suficientes para manter o tipo de vida que tinham, desestruturando-se o seu espaço de relações humanas. A tendência é para a perda de auto-estima...
Jornalista - E no caso da precariedade, do medo de perder emprego.
MCS - O livro é rico nesse aspecto. Em limite as pessoas tendem a responder à precariedade como um menor compromisso no trabalho.
Jornalista - Quer dizer, com um menor envolvimento?
MCS - Sim, um menor envolvimento, menor aprofundamento das suas capacidades. Por exemplo, em relação a trabalhadores altamente qualificados, não é pelo aumento do horário de trabalho, pelo intensificar de ritmos de trabalho, que a entidade patronal conseguirá tirar mais do trabalhador. É necessária a predisposição do indivíduo para dar esse contributo, para aplicar as suas capacidades.
Jornalista - E qual a consequência de valores como a “competição” e “produtividade” na relação entre trabalhadores, entre colegas de trabalho?
MCS – Violências, geram-se muitas violências. Violências incríveis. Induz-se os trabalhadores a um comportamento individualizado – aliás, toda a organização dominante na empresa empurra as pessoas para isso. Fala-se tanto da importância do trabalho em equipa, do conjugar de esforços, mas esses princípios chocam com as formas como se procura explorar, individualizando cada vez mais o trabalhador.
Jornalista – E, hoje, ser-se individualista é um mostra de egoísmo ou apenas uma tentativa de sobrevivência?
MCS – É essencialmente uma forma de sobrevivência. Não partilho da ideia de que as gerações mais jovens sejam mais individualistas que as anteriores. As pessoas estão é sujeitas a um individualismo institucionalizado. A sujeição das pessoas decorre directamente de um conjunto de factores, nomeadamente: do predomínio das políticas financeiras e monetaristas, da indução a um consumo irracional e cheio de dependências, das inseguranças e instabilidades…
Jornalista – E existe ainda espaço para valores como o da solidariedade? Qual a actual ligação das pessoas aos sindicatos?
MCS - O individualismo sustenta-se numa perversa noção de mudança e de adaptabilidade. Uma das expressões mais usadas nos nossos dias é a da adaptação, o de “termos de nos adaptar”. Individualizam-se as responsabilidades, não para os indivíduos pensarem e agirem construindo também dinâmicas colectivas, mas sim para ficarem isolados e se sujeitarem a orientações pré-definidas e a todo o momento poderem ser culpabilizadas pelas suas “incapacidades”. Por isso, o grande desafio para os sindicatos no contexto actual, é o de ir onde as pessoas (os trabalhadores) estão, procurar conhecer as condições objectivas que o trabalhador hoje enfrenta e, a partir daí, construir solidariedades.
Jornalista– E sentem-se as pessoas como fazendo parte de uma “classe” social?
MCS - Uma das consequências do individualismo, e destas novas dinâmicas de organização do trabalho, é precisamente a dificuldade que as pessoas têm em identificar o seu lugar na sociedade. Existem, de facto, conquistas extraordinárias que se expressam nessa mescla de situações de vivências das pessoas (em particular os jovens) e de extractos sociais diferenciados que vemos conviverem todos os dias, mas depois chega-se ao trabalho, e à vida concreta, e percebemos que a estratificação continua a existir. Talvez os lugares de classe se tenham multiplicado, mas as classes sociais continuam a existir. Criam-se ilusões, baralhando as pessoas, dizendo que todas estão em situações iguais quando as condições materiais, de educação, de qualificação são, de facto, diferentes...
Jornalista – Afirma: «...vivemos em tempo de contradições profundas, nas também de grandes esperanças.»
MCS - Recuso-me ao negativismo. Recuso-me, por exemplo, a ver o aumento da esperança média de vida como uma carga difícil de gerir. A longevidade é uma conquista extraordinária, é uma grande conquista da humanidade. Assim como o aumento quantitativo e qualitativo das mulheres no trabalho é um avanço civilizacional. Os movimentos migratórios, que sempre existiram, representam no processo actual uma atitude positiva. Um homem ou mulher que vivam algures em África, sem meios de subsistência, podem sonhar com uma vida melhor, por isso emigram. A ideia de que o aumento das qualificações do trabalhador implicou o aumento do desemprego também não é verdadeira. Recuso todas essas falsas ideias, e por isso me afirmo como alguém positivo que encara a vida com confiança.
Jornalista – Pretende com esta investigação apontar soluções?
MCS - O meu único contributo com este livro será o de chamar a atenção - chamar a atenção para aspectos marcantes e perigosos do processo de globalização em curso, para alternativas possíveis, para que não nos acomodemos.
Jornalista– E como conjugou as facetas de investigador e de sindicalista?
MCS - Desde logo esta tese incorpora a minha experiência de vida partilhada com milhares de trabalhadores. Por outro lado, procurei ouvir, compreender e analisar, fiz muitas e muitas entrevistas, desenvolvi conversas estruturadas com algumas centenas de actores sociais (trabalhadores, sindicalistas, gestores, autarcas, políticos, cientistas, etc.), trabalhei um questionário que apliquei, com êxito, a um significativo universo de trabalhadores. Não penso por isso que haja um choque ou ruptura entre a vida prática e o mundo do conhecimento teórico. É verdade que para construir esta dissertação tive de assumir algum distanciamento, mas uma coisa é distanciamento outra é o alheamento. Não abdico de ter uma opinião, de ter a minha perspectiva. Por vezes querem fazer-nos aceitar esse distanciamento num sentido errado, para que abdiquemos de opções próprias, para que simplesmente usemos a opinião dos outros. Ora, aí digo: não! Todas as áreas do conhecimento são desenvolvidas pelo ser humano: o conhecimento é empírico e científico. É bom manter um distanciamento, mas com compromisso de vida, com pensamento próprio.
Jornalista– Nasceu em Viatodos, na zona de Barcelos, numa família de agricultores. Conta na introdução a esta edição como desde cedo observou (lá está, em proximidade) as desigualdades sociais.
MCS - Sim, as desigualdades, e os processos de trabalho.
Jornalista - Alguma situação que o tenha marcado?
MCS - Não uma única situação, antes muitos momentos. O meu pai tinha algumas terras, pequenas e muito dispersas, que faziam vizinhança com um das maiores proprietárias da aldeia. Algumas vezes observei a dona dessas terras, a senhora Aurora. Nas suas terras trabalhavam os jornaleiros, que sachavam o milho sob um sol abrasador, muitos mal alimentados, ganhando 25 tostões por meio-dia (4 horas) de trabalho, e
essa dona Aurora aparecia no campo e começava a gritar: “A despachar, a despachar!” Trazia então um sachola igual à dos trabalhadores e metia-se no meio do grupo, dizendo: “Isto é assim que se faz.” Ela, bem alimentada, com alguns criados em casa, trabalhava então meia-hora a um ritmo dos diabos que tentava impor aos trabalhadores. É claro que ao fim de meia-hora se ia embora... E os/as jornaleiros/as ali continuavam até ao fim do dia. O que conto é apenas um exemplo dos tantos casos que vi ao longo da vida.
Jornalista - Casos que continuam a repetir-se?
MCS - Sim, a teoria do sucesso (dos capazes e dos incapazes, dos competentes e dos incompetentes, dos preguiçosos e dos diligentes, dos frugais e dos perdulários, dos dedicados e dos não dedicados) aplica, ao limite, essa mesma lógica. São capazes aqueles que detêm os meios, e os bem sucedidos são os que muitas vezes não tiveram escrúpulos para chegarem onde chegaram. Conheço homens e mulheres neste país, e no mundo inteiro, de extraordinária inteligência, dedicados, que trabalham horas e horas por dia, e que nunca enriqueceram. Como não acumularam riqueza são tantas vezes definidos como “incapazes”. Essa é uma das grandes manipulações dos nossos tempos – a de defender que os que vencem na vida, são os mais empenhados e capazes.