27.9.10

Rap global é o novo livro de poesia de Boaventura de Sousa Santos com denúncias da opressão e apelos à revolta




“sonha/ mas não ressones/ que a polícia está atenta”

“deixa a tua mão crescer/ não a gastes em apertos”


Boaventura Sousa Santos/Queni N.S. Oeste, in Rap Global


O professor Boaventura de Sousa Santos, reconhecido internacionalmente como um dos maiores intelectuais contemporâneos, um dos criadores do Fórum Social Mundial e autor de inúmeros livros sobre cultura, política e globalização, resolveu vestir a pele de um jovem rapper do Barreiro, baptizado por ele de Queni N.S.L.Oeste, no seu novo livro de poesia, editado no Brasi pela editora Aeroplano, com o título Rap Global, e que pretende ser eco da chamada literatura das quebradas.
Boaventura de Sousa Santos é ainda cientista social, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade Yale e professor titular de Economia da Universidade de Coimbra, e é conhecido pelas suas suas críticas à “monocultura racional” do mundo moderno,

Como indica o seu nome esdrúxulo — uma alusão ao rapper americano Kanye West —, o jovem Queni é na verdade apenas uma invenção do sociólogo, um alter ego que funciona como narrador imaginário de sua nova obra, definida como “um grito do Ipiranga de quem foi até os confins da mais louca e oculta modernidade ocidental para poder denunciá-la sem peso nem medida mas com conhecimento de causa” .

Depois de dois livros de poemas — “Escrita INKZ” (Aeroplano, 2004) e “Janela presa no andaime” (Scriptum, 2009) —, o sociólogo chamou de rap esta nova obra, um painel em fragmentos da vida contemporânea que interpela o leitor a todo momento com sucessivas denúncias de opressão (“sonha/ mas não ressones/ que a polícia está atenta”) e convocações à revolta (“deixa a tua mão crescer/ não a gastes em apertos”).

No lançamento do livro no Brasil estiveram presentes cinco artistas brasileiros, radicados no Rio de Janeiro, de diferentes gerações e tendências, que musicaram o Rap Global, um texto poético de 69 páginas. Os artistas criadores foram o multiinstrumentista e compositor mineiro César Lacerda, o DJ e produtor musical carioca DJ Machintal, a rapper carioca Combatente, de Vigário Geral, o rapper Nike, de Nova Iguaçu e a paraibana MC Numa Ciro, psicanalista e performer.





Reproduzimos abaixo a entrevista concedida ao jornal Globo por Boaventura Sousa Santos onde o sociólogo português nos fala sobre o seu novo livro, "Rap Global" ( edição Aeroplano). O texto do livro é narrado por um rapper fictício da periferia de Lisboa, Queni N.S.L. Oeste, e constitui um painel em fragmentos do mundo globalizado, com denúncias de opressão e apelos à revolta .


O que leva um sociólogo respeitado a deixar de lado a escrita acadêmica para compor um rap?
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS: A modernidade ocidental, sobretudo a partir do século XVIII, distinguiu entre formas de racionalidade: a moral-prática, a estético-expressiva e a instrumental-cognitiva. Esta última, sob a forma da ciência moderna, veio a dominar, colonizando inclusive as demais (tanto o positivismo jurídico como o futurismo são expressões disso). Cada racionalidade desenvolveu as suas formas de expressão e foi por via delas que procurou manter a sua identidade face às demais. Assim surgiram os discursos jurídicos e políticos, as expressões estéticas das artes e da literatura e a escrita científica (internamente muito diversificada). Todos estes discursos, expressões estéticas e escritas têm limites que lhes são impostos pelos seus códigos genéticos. Todas elas admitem transgressões e contaminações cruzadas mas são ciosas da sua identidade e punem quem as desrespeite. Tenho escrito cientificamente muito sobre a modernidade ocidental e tenho criticado sistematicamente os modos como ela, supostamente auto-legitimada por uma promessa exaltante de emancipação, se transformou numa matriz de regulação e dominação social que assumiu três formas principais: o capitalismo, o colonialismo e o socialismo burocrático. Ora isto, que pretende dizer muito, deixa muito por dizer. Onde estão as pessoas e os seus dramas íntimos; as lutas de resistência e as resistências na luta; a criatividade moderna entre a loucura, a violência e o fanatismo; a ruptura com o ancien régime e todos os novos silêncios do universo a que chamamos deus e com quem julgamos falar na farmácia, no ponto de droga, na meditação, nas massagens, no jogging; a poesia, sempre à beira de não existir; a brutalidade sedutora da ordem e do progresso; e sobretudo tanta coisa que nem imaginamos que existe porque existe sobre a forma de ausência e que no pior (melhor) dos casos nos cria mal-estar, provoca insônias e nos faz mudar de namorada ou namorado. Ora, nada disto pode ser dito academicamente (mesmo que o queira descrever em prosa) se o meu único objeto experimental for eu mesmo. É deste limite e do inconformismo perante ele que nasce o “Rap” como nasceram os meu livros anteriores de poesia, dois deles editados no Brasil (“Escrita INKZ” e “A janela presa no andaime”).



Seu “Rap Global” é extenso, possui variados temas e referências, mas por sua própria ambição e abrangência parece não dar conta de todos assuntos que levanta. De que trata afinal esse rap?
BOAVENTURA: Escrito por um jovem de um bairro periférico de Lisboa, filho de um mulato angolano vindo para Portugal durante o processo de independência de Angola, este rap — que transgride o cânone letrista do rap — é um grito do Ipiranga de quem foi até os confins da mais louca e oculta modernidade ocidental para poder denunciá-la sem peso nem medida mas com conhecimento de causa e tonitroar aos cinco ventos (o quinto vem de dentro) que o rei e a rainha vão nus acolitados por uma legião de fariseus colonialistas, racistas, fascistas, rentistas, exploradores, violentos quase todos cidadãos honestos, filhos de boas famílias, com bons empregos, partidários dos bons partidos e defensores dos direitos humanos.



O senhor diz que esse rap “transgride o cânone letrista do rap”. Em que cânone está pensando? E que rappers o senhor admira?
BOAVENTURA: Não há propriamente um cânone e mesmo as relações entre o rap e o hip-hop são complexas e variáveis. Há um texto e um ritmo de batida. Mas há tendências e modas e é por isso que existem hoje o rap alternativo e o hip-hop alternativo. Estes últimos surgiram como reação à “domesticação” comercial do rap que tendeu a marginalizar a radicalidade da mensagem política. Neste sentido, pode dizer-se que o “Rap Global” é alternativo. Partilha com as tradições rap o fato de que o texto é mais importante que a melodia e a harmonia. Neste domínio, o rap é igual ao canto gregoriano. Partilha o ritmo da batida. Mas não o respeita inteiramente. Há pausas para frases solitárias e de solidão (“ninguém sai vivo da vida”) em que o rapper se interrompe a si próprio como se bebesse um copo de água mental. Tem uma duração imensamente maior como se fosse uma jam session. Bem na tradição do melhor rap é um grito de revolta contra a injustiça social, o racismo e a violência. Mas é também um grito de revolta contra os gritos de revolta que até agora deram em nada. Por isso tem de interpelar toda a tradição eurocêntrica, mesmo a mais transgressiva, fazendo dela uma amálgama obscena onde Gertrude Stein tem de medir forças com o Eminem e Nietzsche surge como criador de touros bravos na cidade portuguesa de Salvaterra de Magos. Esta interpelação confere ao “Rap” uma dimensão detetive. Sei que com o Google é hoje fácil detectar referências ainda que quase todas corrompidas. Mesmo assim, estou convencido de que algumas delas vão exigir muito esforço a decifrar (quem estará para isso?). Quem será a comadrita de Borges? Os meus rappers preferidos estão citados, Kanye West, o primeiro Jay-Z, Eminem etc.


Já a partir do título e pela forma como é composto, este rap sugere uma visão global sobre os problemas do mundo contemporâneo. O senhor acredita na possibilidade de se reduzir os atuais problemas da Humanidade a uma única causa comum? A própria ideia de um rap global não termina por desconsiderar a diversidade e as peculiaridades locais?
BOAVENTURA: Não, não há causa comum. As consequências é que são comuns: opressão, marginalização, humilhação, silenciamento, fome, desrespeito, violência, a mutilação física e moral. A diversidade e as peculiaridades estão no modo como causas tão diferentes como a exploração operária, a desapossessão dos camponeses, indígenas e quilombolas, a homofobia, o racismo, a indiferença, o tédio, o individualismo, a banalização do horror, a repetição da novidade que não inova procuram convergir nas consequências e como essa convergência é contrariada pela diversidade e pelas peculiaridades das diferentes lutas de resistência.


Entre autores e personagens citados em seu livro estão Baudelaire, Ezra Pound, Rimbaud, a Liga da Justiça e Wolverine. O que há de comum entre eles?
BOAVENTURA: O existirem e portanto serem passíveis da pergunta fundadora de Leibniz: porque é que existem em vez de não existirem? Menos enigmaticamente: eles e muito outros exprimem a diversidade daquilo que procuramos retratar com a palavra modernidade e que, como conceito, diz tanto sobre o que quero dizer como as palavras mar e areia dizem sobre Copacabana.


Qual sua relação com a cultura pop? Além de Wolverine e da Liga da Justiça, o senhor cita também Hulk, X-Men, Thor, Super-Homem... O senhor é um grande leitor de quadrinhos?
BOAVENTURA: Sim e um dos meus filhos é considerado um dos mais profundos conhecedores de quadrinhos (em Portugal: banda desenhada) e sobre os quais escreve regularmente no JL (o “Jornal de Letras” do meu querido amigo José Carlos de Vasconcelos).



Entre os vários autores citados está o brasileiro Oswald de Andrade. Foi uma citação casual ou o senhor é um leitor dele? Caso seja, o que acha interessante em sua obra?
BOAVENTURA: Nada é casual no rap. O verdadeiro determinismo é o da poesia. Oswald de Andrade é a modernidade barroca, a única que pelo excesso atinge a medida. Ele representa melhor que ninguém a dialética mais profunda da modernidade ocidental (só experienciável a partir da periferia): o desejo da universalidade e a nostalgia do único.



Uma frase repetida em corpo ampliado e negrito ao longo do texto é “real life tribal brother/ improve comedy”, algo como “a vida real irmão tribal aprimora a comédia”. É também uma citação, ou uma frase sua que para você resume o tom do texto, ou apenas uma espécie de refrão?
BOAVENTURA: A frase é do Queni N.S.L. Oeste. É um anúncio de néon intermitente que anuncia o rap como se anuncia um restaurante ou um motel.



Essa transição do ensaio para o rap atende apenas a um desejo de comunicação com um público maior, ou a uma necessidade de dizer algo que não se poderia dizer num trabalho sociológico?
BOAVENTURA: Mentalmente, na minha hora-a-hora, eu transito entre diferentes formas de escrita e a sua gestação é mais simultânea e caótica do que se pode imaginar. Curiosamente, nunca imagino públicos distintos. Mas vivo obcecado pelo que não consigo dizer quando estou a ser claro para mim e para os outros. Por isso, os fragmentos da construção, desde os mais imaginados aos mais assentes em protocolos empíricos, começam por ser mais livres e disponíveis. Depois, como tenho de sair à rua da comunidade científica bem vestido, adequo os fragmentos à lógica do vestuário-registro. Não faz muito sentido botar gravata e calções de praia. Tenho um guarda-roupa imenso e de fato só uso uma pequena parte. Como vê, tenho saído à rua da poesia poucas vezes, e quase nunca dão por mim. Estou admirado com a sua ousadia.



Como intelectual interessado na transformação social, o senhor ainda conserva crença no poder revolucionário da arte? De que maneira pensa a relação entre arte e política?
BOAVENTURA: Não há emancipação social; há emancipações sociais unidas (porque diferentes) por uma aspiração que uma vez resumi assim: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. A arte afirma o seu poder revolucionário na medida em que colabora neste projeto. A modernidade ocidental, ao mesmo tempo que, como referi acima, separou a racionalidade estética da racionalidade política angustiou-se sobre as relações entre elas. Desde Richard Wagner (“Arte e Revolução”, de 1849) a Leon Trotski (“Literatura e Arte”, de 1923) o que separa a arte e a política é também o que as une: são dois modos de fazer emergir o possível, o “ainda-não” das sociedades. Os meios que usam e os modos como surgem fazem toda a diferença e por isso é que a relação entre elas é tão complexa. Uma coisa é certa: o rap, tal como o blues, não podia ter sido inventado pela classe dominante. Rimbaud dizia que a arte, como a poesia, vai sempre à frente. Mas à frente de quê? O futurismo foi parte do movimento revolucionário que dominou a Rússia depois de 1917 mas alguns anos mais tarde os futuristas italianos faziam a apologia de Mussolini e do fascismo. E Dali, apesar de toda a sua estonteante criatividade surrealista, foi expulso do movimento por apoiar o fascismo de Franco na Espanha.



Num texto recente o senhor chamou Cuba de “um problema difícil para a esquerda”. Seria possível fazer um rap apontando os problemas do regime cubano?
BOAVENTURA: Esse texto foi muito acarinhado e lido em Cuba por democratas, socialistas e comunistas apesar de ter sido banido pela ortodoxia ideológica. Muitos dos problemas do regime cubano tal como muitos dos problemas da democracia portuguesa e brasileira estão no rap. É só ver em vez de olhar e sentir em vez de ler.


O senhor pensou em gravar o rap global? Alguém já propôs um ritmo para sua letra?
BOAVENTURA: Claro que gostaria de o gravar com rappers e sob a magnífica batuta do meu amigo Gilberto Gil, que escreveu o prefácio para a “Escrita INKZ”. O ritmo está na letra. Ora ouça: “Jesus caminha/ caminha com alguém/ que pode ser ninguém/ Allah caminha/ nas ramblas de granada/ e não acontece nada”.


Fonte:
http://oglobo.globo.com (Miguel Conde)

Caetano Veloso canta os livros…



LIVROS...
Autor: Caetano Veloso

Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.


Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.


Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou ¬ o que é muito pior ¬ por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:


Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas.


*No vídeo Caetano Veloso lê "Le Rouge et le Noir"(O Vermelho e o Negro) de Stendhal
"Ici, dit-il avec des yeux brillants de joie, les hommes ne sauraient me faire de mal." Il eut l'idée de se livrer au plaisir d'écrire ses pensées, partout ailleurs si dangereux pour lui. Une pierre carrée lui servait de pupitre. Sa plume volait (...) "Pourquoi ne passerais-je pas la nuit ici? se dit-il; j'ai du pain, et je suis libre!" (...)

Au son de ce grand mot son âme s'exalta (...) Mais une nuit profonde avait remplacé le jour, et il y avait encore deux lieues à faire pour descendre au hameau habité par Fouqué. Avant de quitter la petite grotte, Julien alluma du feu et brûla avec soin tout ce qu'il avait écrit.'