Em Paraisópolis [favela de São Paulo], moradores resistiram ao ataque policial. Apesar dos problemas sociais que motivaram o confronto, imprensa e autoridades não reconhecem o caráter político da revolta.
Carros incendiados, barricadas, bombas e tiros fizeram parte das chamadas de todos os jornais brasileiros, e até mundiais, na última semana. Na segunda-feira, dia 2 de fevereiro, moradores da favela de Paraisópolis e policiais protagonizaram um confronto que poderia ter despertado a população de São Paulo para uma profunda reflexão acerca do modelo de cidade que estão adotando. Mas, ao invés disso, os órgãos de imprensa que cobrem o episódio preferem furtar às pessoas esta oportunidade, insistindo em apresentar espetáculos de imagens e em reduzir a discussão a uma mera exposição cronológica dos fatos. Além das ocorrências imediatas, que outras questões envolvem a revolta de Paraisópolis e o acirramento de outros conflitos urbanos parecidos?
Na zona sul da capital paulista, desde há muito, as contradições sociais e econômicas podem ser avistadas nua e cruamente, o que faz do território um palco singular e privilegiado para a aguda manifestação dos conflitos urbanos. Também pudera, na região coexistem, lado a lado, dois aspectos extremamente opostos de um mesmo processo de ocupação do espaço, curioso, porém revelador. A paisagem é impressionante e quase que fala por si só: são milhares de barracos amontoados, feitos de madeira ou de alvenaria sem reboque [reboco], entrecortados por vielas estreitas, disputando espaço e ameaçando penetrar os metros quadrados mais caros da cidade, de onde se exibem os enormes prédios, as mansões e os condomínios de um padrão de luxo mais que exacerbado.
Curioso porque, nos grandes aglomerados urbanos, é mais freqüente que os bolsões de riqueza mantenham-se a uma segura distância dos repositórios de gente em que consistem, na maioria das vezes, os bairros periféricos brasileiros. Neste caso há uma diferença. Paraisópolis é a segunda maior favela de São Paulo e é toda ladeada pelo bairro mais elitizado da cidade, o Morumbi.
Reveladora, pois, a composição da paisagem contrastante não é meramente acidental. Uma significante parte dos mais de 84 mil moradores de Paraisópolis acorda cedo e vai servir de empregada doméstica, jardineiro, zelador [porteiro], servente de pedreiro e motorista nos condomínios de luxo, os quais têm suas portas e janelas de fundo voltadas para o emaranhado de casebres populares. O restante, quando pode, encontra seu meio de subsistência nos pequenos comércios locais — formais ou informais — que abundam no bairro.
Tal complementaridade entre Morumbi e Paraisópolis data desde quando se intensificou a ocupação da área, a partir da década de 50. Aproximadamente 80% das pessoas que habitam a favela é composta por nordestinos que então começavam a ser atraídos para São Paulo com a finalidade de ocupar postos de trabalho da construção civil, inclusive — e sobretudo — no processo de verticalização do próprio Morumbi.
Diga-se de passagem, são estas mesmas empreiteiras e especuladores imobiliários, que um dia empregaram a mão-de-obra barata dos migrantes nordestinos, que atualmente querem os enxotar da região, para desobstruir a continuidade de seu grandioso empreendimento, substituir barracos por prédios majestosos e fazer do lugar um refúgio exclusivo do requintado empresariado paulistano.
Em franco contraste com o seu bairro-irmão, no interior dos quase 100 hectares que formam o complexo de Paraisópolis falta tudo em termos de infra-estrutura básica: escola, coleta de lixo, postos médicos, saneamento básico, opções de lazer e todo tipo de equipamento público. São as inúmeras redes de assistencialismo, as associações religiosas, os vínculos de parentesco e um instável espírito comunitário que, muitas vezes sem sucesso, procuram amenizar o peso das necessidades básicas comuns e apaziguar um pouco os ânimos mais exaltados.
Outros indicadores sociais apenas confirmam a precariedade social em que se encontram estas pessoas. Conforme pesquisa do Datafolha, 25% dos adultos de Paraisópolis estão desempregados, a renda [rendimento] per capita média não ultrapassa os R$ 367,00 [146 euros] (enquanto que o valor médio para a cidade de São Paulo é de R$ 1.325,00 [530 euros]), somente 0,45% dos jovens entre 18 e 24 anos cursam o ensino superior e 20% o ensino médio.
Não sendo suficiente serem violentadas pela total indiferença das autoridades públicas e pela hipocrisia da classe dominante que as rodeia, desde os anos 90, as famílias de Paraisópolis, como as dos demais bairros periféricos da cidade, são de igual modo reféns de organizações criminosas que encontram ali terreno fértil para proliferarem. Estas facções, por sua vez, conseguem cruzar o que há de pior do mundo atual, combinando a organização despótica de um Estado em estágio primitivo com a perversa lógica do lucro a todo custo, comum a qualquer empresa capitalista.
Obviamente, o clima tenso que permeia o cotidiano da favela não é visto com bons olhos pelos ilustres habitantes do bairro vizinho e pelos agentes do mercado imobiliário. E, em consonância com os interesses da alta sociedade paulistana, não é raro que a comunidade seja surpreendida por espetaculares intervenções policiais, sempre orientadas pela “manutenção da ordem, da paz e pela proteção da vida do cidadão de bem”. Bastante explorada pela grande imprensa, a existência destes grupos criminosos engrossa o argumento que autoriza a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) a declarar aberta a temporada de caça ao “elemento suspeito”; leia-se: jovens pobres da periferia, preferencialmente negros.
O mais recente slogan da SSP-SP é a tal Operação Saturação. Sem ter prazo para terminar, cada nova edição deste velho tipo de desfile policial consiste em reunir um enorme efetivo de homens, camuflados como se fossem para a guerra, e sitiar os bolsões de miséria da cidade com batalhões de elite, cavalos, cachorros [cães], helicópteros, métodos arbitrários de abordagem e todo outro tipo de aparato repressivo de que dispõe o poder público.
Na prática, trata-se de um ininterrupto estado de exceção a que é submetida toda a população pobre das periferias de São Paulo, seja ela criminosa ou não aos olhos da lei. Ano passado mesmo, Paraisópolis passou por situação similar, em que homens, mulheres, velhos e crianças foram expostos a um constrangimento público, casas eram invadidas para averiguação, sacolinhas de compras eram inspecionadas, trabalhadores que entravam e saíam eram revistados e, longe dos olhos cautelosos da comunidade, nos labirintos que cortam a favela, sabe-se lá o que mais aconteceu.
Particularmente sobre Paraisópolis, cabe ainda mencionar outro ingrediente importante: há também as ONGs, mais de 50 e de todo tipo, formadas por gente de fora, geralmente residentes dos bairros de padrão médio e alto da cidade. São cidadãos de boa consciência, sabedores de que a segurança de seus lares não será alcançada tão-somente com o uso da truculência policial. Ao contrário, acreditam que o problema pode ser sanado se nestas pessoas carentes for incutido um pouco de civilidade e filantropia. Por isso, levam-lhes tambores, cestas básicas, cursos de dança, de decoração de bolo, de costura, distribuem bolas de futebol e orientam-nos para terem bons modos, inclusive hábitos ecologicamente corretos.
Todas estas iniciativas, quer reparadoras quer repressoras, entretanto, parecem não terem bastado para abrandar a tensão social em que vive a comunidade e inibi-la de falar e agir por si própria. Especialmente a juventude do lugar demonstrou que, apesar de tudo, não precisa ser douta e instruída para antever o futuro desanimador que lhe é reservado. Foi então que, no fatídico 2 de fevereiro, a favela se cansou, promoveu baderna [desordem] e desfez o delicado equilíbrio de forças protagonizado pelas variadas instituições de controle social — legais e extralegais — que a tutelam. Cansou de polícia, cansou de Estado, cansou de bandido mandão e cansou da sonsa elite paulistana que a rodeia, cujo único projeto de superação do problema é o da caridade motivada pelo medo e, quando necessário, complementada com força bruta.
E para desespero e horror desta mesma elite, o sentimento de indignação dessa juventude frustrada e desenganada escapou e se projetou por métodos não muito polidos, porém sinceros, através da única linguagem com a qual consegue chamar a atenção, a do quebra-quebra, infelizmente.
“Mas, o que teria levado a essa desproporcional explosão de violência em Paraisópolis?” — perguntam-se as autoridades públicas e os figurões da grande imprensa dissimulada. A versão tida como oficial — a da SSP-SP, é claro — foi amplamente divulgada. Segundo sua simplificação, os vândalos haveriam recebido a polícia a pedradas e pauladas, assim que souberam da morte de um criminoso que resistiu à prisão; o que faz deles cúmplices e, portanto, igualmente criminosos apenas. “Segundo ouvimos, são pessoas envolvidas com o tráfico da favela. Então, muito provavelmente receberam ordens de traficantes para efetuar essa baderna” — esclarecia um comandante da operação, como se o próprio fato, a morte de uma pessoa, já não fosse uma razão suficiente para ter deflagrado uma manifestação coletiva de repulsa à ação policial. Dias após foram mais longe, atribuíram o episódio a uma ordem que teria sido dada de dentro dos presídios, por um dos líderes da facção criminosa mais famosa de São Paulo, o PCC (Primeiro Comando da Capital). O que pode, em parte, ser verdade, e vender bastante jornal, mas não explica o porquê de a revolta ter escapado também ao controle da organização.
Da parte dos moradores quase nenhuma opinião foi coletada pela imprensa corporativa. Pelos meios de informação alternativos, ventila-se, sem muita repercussão, a hipótese de que tudo começara por causa de um atropelamento que resultou na morte de uma criança. Também neste caso, a explicação, por si só, não é muito elucidativa. Afinal, por falta de equipamentos públicos, meninos morrem atropelados quase todos os dias nas grandes cidades.
Ao se levar minimamente em consideração os inúmeros aspectos conflituosos que envolvem o cotidiano dos habitantes de uma metrópole como São Paulo, em particular nos bairros de periferia, é leviana qualquer tentativa de esclarecer a revolta de Paraisópolis a partir da investigação detalhada dos fatos ocorridos pontualmente naquele dia. Mais superficial ainda é classificá-la de “vandalismo”, “arruaça” ou de qualquer outra definição que apenas a desqualifique enquanto atitude política. As chaves para o entendimento da questão estão expostas, podem ser vistas a olho nu. Só não o estão para aqueles a quem, não agradando enxergar, permanecem de costas.