3.1.13

Declaração sobre a Liberdade das Sementes - por Vandana Shiva




Declaração sobre a Liberdade das Sementes  - por Vandana Shiva



1. A semente é a fonte de vida, é a urgência da vida de dar expressão a si mesma, de renovar-se, de multiplicar-se, de desenvolver-se de forma perpétua em liberdade.

2. A semente é a materialização da diversidade biocultural. Representa milhões de anos de evolução biológica e milénios de evolução cultural e o potencial para milénios de evolução no futuro.

3. A Liberdade das Sementes é o direito que toda e qualquer forma adquire desde nascença e é a base da protecção da biodiversidade.

4. A Liberdade das Sementes é o direito que qualquer agricultor e produtor alimentar adquire desde nascença. O direito dos agricultores de guardar, trocar, desenvolver, cultivar, vender as sementes é o âmago da Liberdade das Sementes. Quando esta liberdade lhes é retirada os agricultores ficam encurralados pela dívida e em casos extremos suicidam-se.

5. A Liberdade das Sementes é a base da Liberdade Alimentar, uma vez que a semente é o primeiro elo na cadeia alimentar.

6. A Liberdade das Sementes é ameaçada pelas patentes sobre sementes, que criam um monopólio de sementes e tornam ilegais a conservação e troca de sementes pelos agricultores. As patentes sobre sementes não se justificam, nem em termos éticos nem em termos ecológicos, uma vez que as patentes são direitos exclusivos concedidos sobre uma invenção. As sementes não são uma invenção. A vida não é uma invenção.

7. A Liberdade das Sementes de diferentes culturas é ameaçada pela Biopirataria e pelas patentes no conhecimento e biodiversidade indígenas. A Biopirataria não é uma inovação – é um furto.

8. A Liberdade das Sementes é ameaçada por sementes geneticamente modificadas, que estão a contaminar as nossas quintas, eliminando assim a opção por alimentos não geneticamente modificados para todos. A Liberdade das Sementes dos agricultores é ameaçada quando, depois de contaminarem as nossas culturas, as multinacionais processam os agricultores por "roubar a sua propriedade".

9. A Liberdade das Sementes é ameaçada pela transformação deliberada da semente de recurso renovável auto-gerado, em produto não renovável patenteado. Os casos mais extremos de sementes não renováveis são aquelas desenvolvidas através da "Tecnologia Exterminadora", que foi desenvolvida com a finalidade de criar sementes estéreis.

10. Comprometemo-nos a defender a Liberdade das Sementes enquanto liberdade de evolução das diversas espécies; enquanto liberdade das comunidades humanas de reclamar as sementes de fonte livre como bens comuns.

Para este efeito, guardaremos sementes.
Criaremos bancos de sementes comunitários e bibliotecas de sementes.
Não reconheceremos qualquer lei que de forma ilegítima faça das sementes a propriedade privada das empresas.
E vamos por fim às patentes sobre as sementes.




 



Declaration on Seed Freedom - by Dr. Vandana Shiva


1. Seed is the source of life, it is the self urge of life to express itself, to renew itself, to multiply, to evolve in perpetuity in freedom.

2. Seed is the embodiment of bio cultural diversity. It contains millions of years of biological and cultural evolution of the past, and the potential of millennia of a future unfolding.

3. Seed Freedom is the birth right of every form of life and is the basis for the protection of biodiversity.

4. Seed Freedom is the birth right of every farmer and food producer. Farmers rights to save, exchange, evolve, breed, sell seed is at the heart of Seed Freedom. When this freedom is taken away farmers get trapped in debt and in extreme cases commit suicide.

5. Seed Freedom is the basis of Food Freedom, since seed is the first link in the food chain.

6. Seed Freedom is threatened by patents on seed, which create seed monopolies and make it illegal for farmers to save and exchange seed. Patents on seed are ethically and ecologically unjustified because patents are exclusive rights granted for an invention. Seed is not an invention. Life is not an invention.

7. Seed Freedom of diverse cultures is threatened by Biopiracy and the patenting of indigenous knowledge and biodiversity. Biopiracy is not innovation – it is theft.

8. Seed Freedom is threatened by genetically engineered seeds, which are contaminating our farms, thus closing the option for GMO-free food for all. Seed Freedom of farmers is threatened when after contaminating our crops, corporations sue farmer for "stealing their property".

9. Seed Freedom is threatened by the deliberate transformation of the seed from a renewable self generative resource to a non renewable patented commodity. The most extreme case of non renewable seed is the "Terminator Technology" developed with aim to create sterile seed.

10. We commit ourselves to defending seed freedom as the freedom of diverse species to evolve; as the freedom of human communities to reclaim open source seed as a commons.

To this end, we will save seed, we will create community seed banks and seed libraries, we will not recognize any law that illegitimately makes seed the private property of corporations. We will stop the patents on seed



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Do campo para a mesa: comercialização campesina e comércio justo (documentário)


(Nota: esta é uma versão mais curta do documentário com o mesmo título. Mas tem legendas em português, o que é uma vantagem acrescida)

Nos últimos anos, as grandes cadeias de supermercados têm conseguido dominar a maioria dos espaços de venda dos produtos alimentares e bens de primeira necessidade. Esta expansão trouxe consigo graves problemas, tanto aos países do Norte como aos países do Sul do mundo. Face aos impactos deste modelo, as populações de muitas partes do mundo começaram a organizar-se e a construir alternativas.
 
 «Do campo para a mesa: comercialização campesina e comércio justo» é o título de um documentário que apresenta experiências do Equador, Nicarágua, México e Catalunha, canalizadas para um objectivo comum: democratizar o sistema de produção e distribuição de alimentos.

Estado social, estado providência e de bem-estar

O estado social é o resultado de um compromisso histórico entre as classes trabalhadoras e os detentores do capital. Este compromisso foi a resposta a uma dolorosa história recente de guerras destrutivas, lutas sociais violentas e crises econômicas graves. Este modelo de estado e de capitalismo começou a ser atacado a partir dos anos 1970 até a seu cume nos anos 1990 por um modelo alternativo, designado por neoliberalismo. É um ataque ideológico, ainda que disfarçado de uma nova racionalidade econômica. O artigo é de Boaventura de Sousa Santos
 
 
Estado social, estado providência e de bem-estar - texto de Boaventura Sousa santos

A designação “estado social” tem várias genealogias. Foi com esta designação que Marcello Caetano tentou rebatizar o Estado Novo. No virar do século XIX para o século XX foi a designação usada pelos socialistas para marcar a forma política do estado que faria a transição para o socialismo. É esta também a designação que consta da Constituição Portuguesa de 1976. Nas ciências sociais, e consoante as filiações teóricas, as designações mais comuns têm sido a de estado-providência ou estado de bem-estar. É tendo em mente estas últimas designações que falo do estado social, um tipo de estado cuja melhor concretização teve lugar nos países europeus mais desenvolvidos depois da segunda guerra mundial. O estado social é o resultado de um compromisso histórico entre as classes trabalhadoras e os detentores do capital. Este compromisso foi a resposta a uma dolorosa história recente de guerras destrutivas, lutas sociais violentas e crises econômicas graves.

Nos termos desse compromisso ou pacto, os capitalistas renunciam a parte da sua autonomia enquanto proprietários dos fatores de produção (aceitam negociar com os trabalhadores temas que antes lhes pertenciam em exclusividade) e a parte dos seus lucros no curto prazo (aceitam ser mais fortemente tributados), enquanto os trabalhadores renunciam às suas reivindicações mais radicais de subversão da economia capitalista (o socialismo e, para o atingir, a agitação social sem condições face à injustiça da exploração do homem pelo homem).

Esta dupla renúncia é gerida pelo estado, o que confere a este alguma autonomia em relação aos interesses contraditórios em presença. O estado tutela a negociação coletiva entre o capital e o trabalho (a concertação social) e transforma os recursos financeiros que lhe advêm da tributação do capital privado e dos rendimentos salariais em “capital social”, ou seja, num vasto conjunto de políticas públicas e sociais. As políticas públicas traduzem-se num forte intervencionismo estatal na produção de bens e serviços que aumentam a médio prazo a produtividade do trabalho e a rentabilidade do capital (formação profissional, investigação científica, aeroportos e portos, autoestradas, política industrial e de desenvolvimento regional, parques industriais, telecomunicações, etc., etc.).

As políticas sociais são as políticas públicas que decorrem dos direitos económicos e sociais dos trabalhadores e dos cidadãos em geral (população ativa efetiva, crianças, jovens, desempregados, idosos, reformados, “domésticas”, produtores autônomos). Traduzem-se em despesas em bens e serviços consumidos pelos cidadãos gratuitamente ou a preços subsidiados: educação, saúde, serviços sociais, habitação, transportes urbanos, atividades culturais, atividades de tempos livres.

Algumas das políticas sociais envolvem transferências de pagamentos de vária ordem financiados por contribuições dos trabalhadores ou por impostos no âmbito da Segurança Social (bolsas de estudo, abono de família, rendimento social de inserção, pensões, subsídios por doença e por desemprego). As transferências ocorrem, por via da solidariedade social institucionalizada pelo estado, dos mais ricos para os mais pobres, dos empregados para os desempregados, da geração adulta e ativa para as gerações futuras e os reformados, dos saudáveis para os doentes.

O conjunto das políticas públicas e sociais tem uma tripla função. Primeiro, cria condições para o aumento da produtividade que, pela sua natureza ou volume, não podem ser realizadas pelas empresas individuais, abrindo assim o caminho para a socialização dos custos da acumulação capitalista, razão por que a redução dos lucros a curto prazo redundará, no médio prazo, em expansão dos lucros. Segundo, as despesas em capital social aumentam a procura interna de bens e serviços através de investimentos e consumos coletivos e individuais. Terceiro, garante uma expectativa de harmonia social porque assenta na institucionalização (isto é, normalização, desradicalização) dos conflitos entre o capital e o trabalho e porque proporciona uma redistribuição de rendimentos a favor das classes trabalhadoras (salários indiretos) e da população carenciada, fomentando o crescimento das classes médias, em todos criando um interesse na manutenção do sistema de relações, políticas, sociais e económicas que torna possível essa redistribuição.

Enquanto gestor global deste sistema, o estado assume grande complexidade porque tem de garantir uma articulação estável entre os três princípios de regulação do estado moderno propícios a tensões entre si: o estado, o mercado e a comunidade. A estabilidade exige que o estado tenha certa primazia sem asfixiar o mercado ou a comunidade. Se, por um lado, o estado garante a consolidação do sistema capitalista, por outro lado, obriga os principais atores do sistema a alterarem o seu cálculo estratégico: os empresários são levados a trocar o curto prazo pelo médio prazo e os trabalhadores são levados a trocar um futuro radioso mas muito distante e incerto por um presente e um futuro próximo com alguma dignidade. O estado social assenta, assim, na ideia da compatibilidade (e até complementaridade) entre desenvolvimento econômico e proteção social, entre acumulação de capital e legitimidade social e política de quem a garante; em suma, entre capitalismo e democracia.

Este modelo de estado e de capitalismo começou a ser atacado a partir dos anos 1970 até a seu cume nos anos 1990 por um modelo alternativo, designado por neoliberalismo, que assenta na substituição da primazia do estado pela do mercado na regulação social. É um ataque ideológico, ainda que disfarçado de uma nova racionalidade econômica. São muitas as razões para a crescente agressividade deste ataque, mas todas elas têm em comum o serem fatores que favorecem a transformação da ideologia em pretensa racionalidade.

Eis algumas delas: o modelo neoliberal está centrado na predominância do capital financeiro (sobre o capital produtivo) e para ele só há curto prazo; ou o médio prazo é, quando muito, alguns minutos mais; com o tempo, os trabalhadores e seus aliados transformaram a opção socialista, de incerta e distante, em opção esquecida, e passaram a aceitar, como vitórias, perdas menores, que só são menores porque vão sendo seguidas por outras maiores; o trabalho assalariado alterou-se profundamente e transformou-se num recurso global, sem que entretanto se tenha criado um mercado globalmente regulado de trabalho; o “compromisso histórico” gerido pelo estado nacional transforma-se num anacronismo quando o próprio estado passa a ser gerido pelo capital global.

O estado social português nasceu em contraciclo, depois da revolução do 25 de Abril de 1974. Em parte por isso, nunca passou de um estado muito pouco ambicioso (quando comparado com os outros estados europeus), um quase-estado-providência, como o designei nos anos 1990, e nunca deixou de depender de uma forte sociedade-providência. Mas, mesmo assim, foi essencial na criação e consolidação da democracia portuguesa da terceira república. É este o sentido da sua consagração constitucional. E porque entre nós a democracia e o estado social nasceram juntos, não é possível garantir a sobrevivência de qualquer deles sem o outro.

Este texto foi originalmente publicado no Diário de Notícias

A privataria em curso ( texto de Boaventura Sousa Santos)

As privatizações não têm nada a ver com racionalidade econômica. São o resultado de opções ideológicas servidas por discursos que escondem suas verdadeiras motivações. No Brasil, o discurso foi o de transformar as privatizações numa “condição para entrar na modernidade”. Em Portugal, o discurso é o do interesse nacional, tutelado pela troika, em reduzir a dívida e ganhar competitividade.
 
O termo privataria foi cunhado por um grande jornalista brasileiro, Elio Gaspari, e popularizado por um dos mais brilhantes jornalistas investigativos do Brasil, Amaury Ribeiro Jr. O livro deste último “A Privataria Tucana” (São Paulo, Geração Editorial 2011), um best-seller, relata com grande solidez documental, o processo ruinoso das privatizações levado a cabo no Brasil durante a década de 1990.
 
A investigação, que durou dez anos, não só denuncia a “selvageria neoliberal dos anos 90” que dizimou o patrimônio público brasileiro, deixando o país mais pobre e os ricos mais ricos, como também estabelece de forma convincente a conexão entre a onda privatizante e a abertura de contas sigilosas e de empresas de fachada nos paraísos fiscais das Caraíbas onde se lava o dinheiro sujo da corrupção, das comissões e propinas ilegais arrecadadas pelos intermediários e facilitadores dos negócios.
 
Aconselho a leitura do livro aos portugueses que não se conformam com o discurso do “interesse nacional” para legitimar a dilapidação da riqueza nacional em curso, a todos os dirigentes políticos que se sentem perplexos perante a rapidez e a opacidade com que as privatizações ocorrem e aos magistrados do Ministério Publico e investigadores da PJ por suspeitar que vão ter muito trabalho pela frente se tiverem meios e coragem. As privatizações não são necessariamente privataria. São-no quando os interesses nacionais são dolosamente prejudicados para permitir o enriquecimento ilícito daqueles que, em posições de mando ou de favorecimento político, comandam ou influenciam as negociações e as decisões em favor de interesses privados.
 
 As privatizações não têm nada a ver com racionalidade econômica. São o resultado de opções ideológicas servidas por discursos que escondem as suas verdadeiras motivações. No Brasil, o discurso foi o de transformar as privatizações numa “condição para o país entrar na modernidade”. Em Portugal, o discurso é o do interesse nacional, tutelado pela troika, em reduzir a dívida e ganhar competitividade. Em ambos os países, a motivação real é criar novas áreas de acumulação e lucro para o capital. No caso português isso passa pela destruição tanto do sector empresarial do estado como do estado social.
 
No último caso sobretudo, trata-se de uma opção ideológica de quem usa a crise para impor medidas que nunca poderia legitimar por via eleitoral. Para termos uma ideia da carga ideológica por detrás das privatizações, supostamente necessárias para reduzir a dívida pública, basta ler o orçamento de 2013: a receita total das privatizações, de 2011 a 2013, será de 3,7 bilhões de euros, ou seja, menos de 2% da dívida pública… A privataria tende a ocorrer quando se trata de processos massivos de privatização.
 
Joseph Stiglitz cunhou um neologismo ácido para definir a onda privatista que avassalou as economias do Terceiro Mundo nos anos 80 e 90, “briberization”, um termo cujo significado se aproxima do de privataria. No caso português, a tutela externa e a dívida que o governo tem interesse em não renegociar, favorece vendas em saldo e, com isso, oportunidades de compensação especial em ganhos ilícitos para os que as tornam possíveis. Como a corrupção não tem uma capacidade infinita de inovação, é de prever que muito do que se passou no Brasil se esteja a passar em Portugal. É preocupante que alguns nomes conhecidos da corrupção do Brasil, alguns já condenados, surjam nas notícias das privatizações em Portugal.
 
A privataria ocorre por via da articulação entre dois mundos: o mundo das privatizações: conseguir condições particularmente favoráveis aos investidores; e o sub-mundo da corrupção: lavar o dinheiro das comissões ilegais recebidas. No que respeita ao primeiro mundo, alguns dos estratagemas da privataria incluem: criar na opinião pública imagens negativas sobre a gestão ou o valor das empresas estatais; fazer investimentos ou subir os preços dos serviços antes dos leilões; absorver dívidas para tornar as empresas mais atrativas ou permitir que as dívidas sejam contabilizadas sem criteriosa definição do seu montante e condições; definir parâmetros que beneficiem o candidato que se pretende privilegiar e que idealmente o transformem em candidato único; passar ilegalmente informação estratégica com o mesmo objetivo; confiar em serviços de consultoria, fazendo vista grossa a possíveis conflitos de interesses; permitir que os compradores, em vez de trazerem capital próprio, contraiam empréstimos no exterior que acabarão por fazer crescer a dívida externa; permitir que fundos públicos sejam usados para alienar património público em favor de interesses privados.
 
O sub-mundo da corrupção reside na lavagem do dinheiro. Trata-se da transferência do dinheiro das comissões para paraísos fiscais mediante a criação de empresas offshores (de fato, nada mais do que caixas postais) onde os verdadeiros titulares das contas desaparecem sob o nome dos seus procuradores. Aí o dinheiro pousa, repousa e, depois de lavado, é repatriado para investimentos pessoais ou financiamento de partidos.
 
Texto publicado originalmente no Público/Portugal (24 de dezembro de 2012)