30.12.05

O Pesadelo de Darwin ( um filme recém-estreado, a não perder)

título original : Darwin's Nightmare

«O Pesadelo de Darwin» é um documentário realizado pelo austríaco Hubert Sauper em 1996 que foi premiado numa série de festivais.
O cineasta dispôs-se a filmar a vida dos habitantes das margens do Lago Victoria, na Tanzânia, considerado o berço da Humanidade, que é hoje palco do pior pesadelo da globalização.


A miséria, a fome e a sida são males comuns para quem vive nesta região do mundo, mas a par desta realidade, existe outra. A enorme riqueza piscícola desse mesmo lago é explorada pela mão-de-obra local, mal paga, ao serviço de empresas estrangeiras que exportam filetes de peixe, sobretudo para a Europa. Para a alimentação dos habitantes locais restam as cabeças de peixe e pouco mais.Esta lucrativa indústria nasceu depois de um predador voraz, a perca do Nilo, ter sido introduzido no maior lago tropical do mundo, nos anos 60, como experiência científica.

Como resultado, praticamente todas as espécies autóctones de peixes foram dizimadas, e a partir da catástrofe ecológica nasceu um negócio «chorudo», com base na exportação da carne branca do enorme peixe para todo o hemisfério norte.

Hubert Sauper estende ainda a sua crítica ao serviço prestado pelos aviões no transporte de armas que alimentam os conflitos, frequentes nos países mais próximos, alimentando um dos males que mais tem minado o desenvolvimento do continente africano.Pescadores, políticos, pilotos russos, prostitutas, industriais e comissários europeus são «actores» de um drama que ultrapassa as suas fronteiras geográficas para se inscrever nos territórios da humanidade.

Conforme revela o realizador nas notas de intenções do filme, a ideia para este filme nasceu durante a investigação para outro documentário - «Kisangani Diary - Loin du Rwanda», sobre os refugiados da revolução no Congo. «Foi em 1997 que fui testemunha pela primeira vez do tráfico destes enormes aviões. Enquanto um avião chegava da América com comida para os refugiados dos campos da ONU, um segundo avião descolava para a União Europeia com 50 toneladas de peixe a bordo, revela.«O encontro e os laços de amizade que estabeleci com alguns dos elementos da equipa de um dos aviões de carga russos permitiram-me descobrir o impensável. Os aviões não traziam só ajuda humanitária dos países desenvolvidos, mas também traziam armas. Os aviões traziam a comida que os alimentava durante o dia e as armas que os matavam à noite», detalha o cineasta. «Conhecer a cronologia e os rostos de uma realidade tão cínica tornou-se o objectivo de O Pesadelo de Darwin», conclui.

Colocando o «dedo na ferida», Sauper lança ainda uma questão: «Porque será que sempre que um recurso natural é descoberto, os habitantes desse local morrem na miséria, os filhos tornam-se soldados e as filhas criadas ou prostitutas»?

Para o autor é claro que «depois de centenas de anos de escravatura e colonização em África, os efeitos da globalização estão a infligir humilhações mortais aos habitantes». Por isso avisa: «A atitude arrogante dos países ricos no que diz respeito ao Terceiro Mundo cria perigos futuros para todos os povos».Mesmo sendo trabalhado como documentário, o filme tem bastante ritmo, o que permite que a narrativa visual se acompanhe sem grande esforço, mesmo que, no final, nos deixe com um sentimento de tristeza por percebermos o longo caminho que falta percorrer para vivermos num mundo mais justo.

«O Pesadelo de Darwin» ganhou o Prémio de Melhor Documentário nos Prémios Europeus do Cinema e foi ainda premiado nos festivais de Veneza, Belfort, Copenhaga, Montréal, Paris, Chicago, Salónica, Oslo, México, Angers.

Texto retirado de:
http://www.estreia.online.pt/aleph/envelope?filme+ficha:list_movie:1649


Breve Revista de Imprensa sobre o filme:


Será difícil depois de ver O PESADELO DE DARWIN comer uma perca do Nilo sem que uma espinha nos pique… A partir da carne branca deste peixe pescado no lago Vitória, o realizador mostra o encadeamento dos "danos colaterais" provocados pela exploração intensiva de uma riqueza natural num país pobre, que poderia ser em África ou não. Hubert Sauper insiste: o filme também poderia ser sobre os diamantes da Serra Leoa ou o petróleo de Angola... Ele limitou-se a filmar numa cidade como existem várias, para conseguir um filme negro e surpreendente. Mwanza, 500 000 habitantes, margens do lago Vitória, na Tânzania. A perca do Nilo foi introduzida nos anos 60 e a indústria da pesca prosperou à volta deste peixe e toda a região ficou dependente. Dez fábricas exportam todos os dias filetes frescos, nomeadamente para a Europa.Poucos lucram com este comércio. E os aviões russos que transportam os peixes transportam igualmente armas para os países vizinhos, as prostitutas tratam dos pilotos russos, os camponeses deixam as suas terras para se instalarem nas margens do lago, a sida propaga-se, as crianças drogam-se com componentes das embalagens de peixe, e os habitantes comem poucas proteínas porque o peixe se tornou demasiado caro...SYLVIE BRIET E LAURE NOUALHAT, LIBÉRATION


O PESADELO DE DARWIN parece-se mais com um fragmento de "O Juízo Final", de Bosch, do que com um filme de Michael Moore. Hubert Sauper, tal como o pintor holandês, compôs a sua visão do mundo com detalhes. (...) Planos perturbadores e sequências espantosas que amplificam como num thriller a demonstração filmada e anunciada de Sauper: "Não teríamos percas do Nilo nos nossos supermercados se não houvesse guerra e fome em África".Mas Sauper não é apenas militante ou jornalista, é visivelmente um cineasta. E é com grande habilidade que se distingue do grupo de "documentários-choque" que abundam actualmente. (...)Sauper não se fica pela força da demonstração em imagens, entrevistas e comentário; ele serve-se também de procedimentos de cinema para meter o espectador numa condição de extrema perturbação. ANNICK PEIGNÉ-GIULY, LIBÉRATION


É um soberbo documentário. Pertubador e obsceno. Das percas do Nilo que pululam no lago, os habitantes da Tanzânia só vêem os restos. Carcassas esventradas, podres. Nenhuma esperança. Nenhum futuro. O único sonho de uma das testemunhas interrogadas por Hubert Sauper é que o seu filho se torne piloto. Que nesta cadeia infernal isso lhe permita escapar ao inferno. (…) O sistema é circular. O pesadelo continua. Mas graças a este filme sabemos que existe.PIERRE MURAT, TÉLÉRAMA


O escândalo da situação africana e a responsabilidade passada e presente das potências ocidentais neste estado são sobejamente conhecidos. Se vários filmes já denunciaram esta situação, não se encontram muitos que o façam tão eficazmente, tão profundamente e que acordem tão violentamente a consciência do espectador. (...) Numa palavra, o filme do austríaco Hubert Sauper mostra com as armas do cinema (comparando imagens e confrontando planos) cem vezes mais e cem vezes melhor que qualquer retórica militante. (...)Ninguém sairá deste filme incólume.J.M., LE MONDE


É a quadratura do círculo, uma obra total, sem falhas, que não só agradará aos militantes das causas humanitárias, mas também aos cinéfilos. O filme é terrível, perturbador, tantos são os horrores que concentra - e esplêndido pela sua forma inventiva, que não se inscreve em nenhuma lógica linear e consegue tratar todos os temas de forma pessoal e profunda. (...)Toda a África parece concentrada nesta visão apocalíptica. Raramente vimos expresso tanto desespero com tanta graça. VINCENT OSTRIA, LES INROCKUPTIBLES


Consultar ainda :

http://www.hubertsauper.com/

http://www.coop99.at/darwins-nightmare/

http://fr.wikipedia.org/wiki/Le_Cauchemar_de_Darwin



NOTA: foi realizado entretanto um documentário realizado por Margaret Nakato ( vice-presidente do Fórum Mundial dos pescadores) sobre a reacção dos pescadores Katosi, aldeia ugandesa situada nas margens do lago Victória, onde foi rodado o filme «Pesadelo de Darwin» de Hubert Sauper, aos factos que são denunciados através do referido filma. Esse documentário pode ser já visto. Para o descarregar pelo sistema peer-to.peer como eMule pode-se ir a:
http://www.clmayer.net/spip/IMG/rm/katosi.rm
http://www.clmayer.net/spip/IMG/wmv/katosi.wmv

Ou contactar:

Katosi Women fishing & Development Association
P.O Box 33929
Kampala, Uganda
East Africa
katosi@utlonline.co.ug

A cidade-jardim de Ebenezer Howard


Com nascimento em meio popular, Ebenezer Howard foi empregado de escritório dos 15 aos 21 anos em Londres, a sua cidade natal. Um tio, agricultor e emigrante nos Estados Unidos, chamou-o, entretanto, para junto de si. Vemo-lo assim em pleno Nebraska, onde compra 160 hectares e, juntamente, com dois amigos associados, se lança na cultura do milho, de melancias e pepinos. Não é fácil ser agricultor, pelo que não demorará a conhecer a falência. Por ocasião de uma viagem ao Missouri, cruza-se com o coronel William Cody, mais conhecido por Buffalo Bill, como compensação para o seu fracasso.
Ao fim de um ano instala-se em Chicago – que tinha sofrido um terrível incêndio em 1871 e que se encontrava em reconstrução – desenvolvendo a actividade de jornalismo como estenógrafo. Em 1876 regressa ao seu país para ocupar o posto de estenógrafo durante os debate parlamentares, ao mesmo tempo que consagrava muito do seu tempo no aperfeiçoamento das máquinas que utilizava, uma vez que possuía um invejável talento de inventor. Aliás, ele introduz na Inglaterra a máquina de escrever Remington que trouxe num das suas travessias do Atlântico. Traz também consigo o livro de Edward Bellamy, «Looking Backward», de que se tornou grande apreciador, e que procurou divulgar na Grã-Bretanha. Diz-se mesmo que financiou a edição inglesa… Casa-se, entretanto, em 1879 com Elizabeth Ann Bills e torna-se pai de 3 raparigas e um rapaz. A esposa morre em 1904, um pouco antes da sua mudança para Letchworth, a primeira cidade-jardim. Casa-se de novo em 1907 e muda-se então para Welwyn, a segunda cidade-jardim de que também foi um instigador. Morre em 1928. Tinha publicado o livro «To-morrow: a peaceful path to real reform”, que é reeditado em 1902 com algumas alterações sob o título, que se tornou célebre, «Garden Cities of To-morrow», onde expõe a sua concepção social e descreve com detalhe o que é a «cidade-jardim».

A «cidade-jardim», é um modelo de sociedade?

Ebenezer Howard não adere ao liberalismo económico, prefere antes a cooperação, especialmente, a que se refere à propriedade dos solos. Sem ser um teórico, ele é um fervente leitor de um conjunto de autores que constituem a sua biblioteca e que nunca deixou de consultar. As suas ideias, apresentadas com certa simplicidade, sem grande recursos de linguagem nem teorizações excessivas, alimentam-se dessas leituras. Encontramos aí o economista Alfred Marshall ( 1842-1924), a quem vai buscar a ideia da propriedade colectiva das terras e de uma fiscalidade judiciosa; o geógrafo Piotr Kropotkine (1842-1921), autor do livro «Fields, Factories and Workshops» (1898), que luta por um habitat desconcentrado e uma outra repartição territorial das actividades económicas; Benjamin Ward Richardson (1828-1896), autor de «Hygeia» (1876), iniciador do movimento artístico Arts and Crafts e autor da obra « Notícias de parte alguma» (1891) onde é descrita uma sociedade pacificada e socialista; o romancista e publicista norte-americano Edward Bellamy (1850-1898), autor de «Looking Backward». Neste romance ucrónico de 1888, Bellamy imagina a sociedade de Boston no ano de 2000: aí o Estado possuiria os meios de produção, todos os indivíduos entre os 25 e 45 anos serviriam no Exército do trabalho, o dinheiro já não existiria, cada um possuiria um cartão de crédito que lhe permitia comprar o que desejasse; os inválidos, doentes e indigentes beneficiariam da solidariedade colectiva; os progressos técnicos e o conforto estavam generalizados, e a igualdade assegurada. A estas leituras convém acrescentar outras influências: aquando da estadia nos Estados Unidos, Ebenezer Howard conheceu os projectos agrícolas de Frederick Law Olmsted (1822-1903); visitou a «cidade-parque» de Adelaide, na Austrália, assim como o Port Sunlight e Bournville, na Grã-Bretanha. Pensou mesmo dar o nome de «unionville» ou «rurisville» ao seu projecto de cidade, antes de optar pela designação de «garden-city», sem saber que Christchurch, fundada em 1859, era conhecida por ser a «cidade-jardim» da Nova Zelândia, ou que Alexandre T. Stewart tinha colocado a primeira pedra em 1869 num loteamento cognominado de «Garden City», em Long Island… O nome de «garden city» tinha o mérito de ser fácil de traduzir nas principais línguas europeias ( Gardenstadt, cite-jardin, ciudad-jardin, turnstad,…), o que contribui para o seu êxito.

O objectivo do autor não era simplesmente de carácter urbanístico, mas também de natureza política. Com efeito, no momento em que se registava um enorme êxodo rural e um crescimento exponencial das populações – em condições inqualificáveis, que a imprensa não se cansava de denunciar – tornava-se imperioso a pergunta: o que fazer? A sua resposta pretendia escapar à velha dualidade entre cidade e aldeia, preconizando a sua fusão, uma vez « que a sociedade humana, e as belezas da natureza são feitas em conjunto para o homem». Para depois explicitar melhor as suas intenções: «esforço-me por mostrar como, na combinação cidade-campo, se pode usufruir de possibilidades de vida sociais iguais – melhor dizendo, superiores – às que são oferecidas por uma cidade populosa , ao mesmo tempo que as belezas da natureza ambiental estarão ao alcance de todos os seus habitantes. Mostro como os salários mais elevados são compatíveis com as rendas e os impostos mais reduzidos, como as múltiplas possibilidades de emprego e perspectivas brilhantes de futuro podem, por todos, ser procuradas; como as melhores condições sanitárias poderão ser asseguradas; como existirão bonitos jardins; como os limites da liberdade poderão ser alargados, ao mesmo tempo que os melhores resultados da coordenação e cooperação serão desfrutados por uma população feliz».

É de notar que a cidade-jardim apresenta-se como uma cidade inteira, «total» e «autónoma» ( não como uma periferia-dormitório, dependente da grande cidade que a domina), com as suas actividades económicas e numerosos equipamentos colectivos. O livro é um verdadeiro guia prático tentando responder à questão de como edificar uma cidade-jardim. Diagramas explicativos – que facilmente imaginamos na superfície de painéis que servem para acompanhar as exposições ou as conferências públicas – recapitulam os principais componentes da cidade-jardim. Numa superfície de 2.400 ha, por exemplo, a cidade não ocupa senão um sexto, podendo ser circular tendo como centro um jardim, para o qual convergem as seis principais avenidas que delimitam os bairros. Várias e sucessivas coroas envolvem este coração vegetal: um Palácio de Cristal ( inspirado naquele que foi construído por Joseph Paxton para a exposição de Londres de 1851) alberga as lojas comerciais e permite uma deambulação ao abrigo das intempéries; um outro arco acolhe os serviços administrativos; outro ( a grande avenida) com uma. largura de 70 m separa as habitações das actividades industriais e, enfim, um novo parque envolve a cidade, e no seu limite, encontramos o caminho de ferro e as explorações agrícolas.
Ebenezer Howard indica o número de 32.000 habitantes, dos quais 2.000 seriam agricultores, para a cidade-jardim ideal, sabendo-se que ele previa núcleos de seis cidades-jardins ligadas entre elas e à cidade central de 58.000 habitantes. O conjunto formaria a «Cidade Social». O solo pertenceria à propriedade colectiva, que é fonte de rendimentos ( os campos para os agricultores e as parcelas para os industriais e comerciantes…), o mesmo se passando com as despesas ( para a manutenção dos parques, dos jardins, da limpeza, reembolso de empréstimos, investimentos imobiliários, construção de escolas e creches, hospitais, salas de concerto, cinema e salas para reformados…). Para que o solo disponível, diferentemente do das grandes cidades que é raro e caro, encontre locatários, seria obrigatório que a cidade-jardim estivesse ligada às outras cidades e regiões por via férrea que assumiria assim uma função estratégica no desenvolvimento do projecto. O sistema social e económico seria baseado na cooperação – encontramos aqui a influência tanto de Bellamy como do Kropotkine do «apoio mútuo»- e nas associações de bairro. O socialismo não seria estatal, mas antes descentralizado e local.. Ebenezer interessa-se pelas técnicas, não deseja um regresso à terra que ignore a electricidade. Bem pelo contrário, encara o progresso como libertação dos homens e mulheres no que respeita, por exemplo, às tarefas e trabalhos penosos e repetitivos. Concebe a sua «Cidade Social» como um local de produção de riquezas, tecnicamente avançado, oferecendo trabalho a todos e permitindo a realização de todos. Procura responder antecipadamente às objecções e críticas sobre a praticabilidade do seu projecto ao torná-lo didáctico, prático, argumentado e persuasivo.

Em 1899 com um conjunto de amigos ele funda a Garden City Association, à qual aderem pessoas como Ralph Neville e Thomas Adam. Em 1903 surge uma «companhia de pioneiros», que adquire 3.818 acres de terras no Hertfordshire, a 35 milhas (50 Km) da capital, a fim de aí ser edificado a Letchworth. É então que se começa a construir a primeira cidade-jardim, segundo o plano de Raymond Unwin (1863-1940) e Barry Parker (1867-1947).
Vários patrões filantrópicos tinham já saído da cidade a fim de instalar em pleno campo as suas cidades industriais «limpas» - como actualmente se diria – com uma arquitectura segundo o estilo Arts and Crafts: Bournville próximo de Birmingham e Port Sunlight no sul de Birkenhead. A primeira abrigava a chocolataria de George Cadbury e as casas dos trabalhadores e foi erguida ao longo dos anos 1890. A segunda resultou da iniciativa do fabricante de sabão William Heskett Lever e data do fim dos anos 1880.

Ao mesmo tempo, a Staveley Coal and Iron Company lança uma política de construção de «cottages» para os seus trabalhadores sob a forma de urbanizações residenciais, segundo o princípio do custo mínimo, mas para um máximo conforto. Raymond Unwin faz daí as suas primeiras armas, o que o leva a reflectir sobre o alojamento social. Publica em 1902 uma brochura intitulada «Cottage Plan and Common Sense» e em 1903 »Cottages Near a Town», depois de ter escrito com o seu associado e cunhado Barry Parker, «The Art of Building a Home», em 1901. Foi numa reunião da Garden City Association em 1901 que ele simpatiza com Seebohm Rowntree, o filho do empresário Joseph Rowntree. Este pensa em construir uma «cidade modelo» no norte de York, New Earswick, e confia os seus projectos a Parker e Unwin. As primeiras casas ficam prontas em 1904, outras se seguirão como o Folk Hall, inaugurado em 1907, e uma escola ao ar livre desenhada por Raymond Unwin em 1912…Quando vencem o concurso para Letchworth ainda não passam de iniciantes. Se o pensamento de William Morris lhes alimenta o seu ideal político, as suas competências profissionais derivam de variadas experiências. Ebenezer Howard escreveu por baixo dos seus esquemas a seguinte nota: « isto não é mais que um diagrama. O plano só pode ser desenhado depois de escolhido o local.» Este sábio conselho é seguido por Raymond Unwin que se desloca ao local, realiza um esboço, delimita o local e projecta uma plano bem diferente do plano circular. Os planos são evidentemente privilegiados e Unwin generaliza o uso becos e ruas sem saída. As arquitecturas não são homogéneas e revelam inspirações distintas, desde sólidas «cottages» com telhados de tela encarnada e pequenas janelas quadradas ao lado de uma casa com um tecto plano, painéis de betão, feitos em fábrica e transportados por comboio de Liverpool a Letchworth…Em cada ano surge novas construções e equipamentos, sempre no respeito pelos princípios fundadores, e sessenta anos depois de chagada dos primeiros habitantes, Letchworth conta com mais de 32.000 residentes…
Em 1919, Howard compra um terreno a 30 km de Londres e ergue aí a sua segunda cidade-jardim – Welwyn – a partir dos planos de Louis de Soissons (1890-1962). Em seguida, ainda que distantes, Barry Parker entusiasma-se pelas ideias da «cidade-satélite» e de «cidade nova» ( new town), enquanto Raymond Unwin trabalha em «Urban Planning» tanto no ensino como no seio das administrações públicas. Na falta de um massivo sucesso massivo na Grã-Bretanha, a cidade-jardim conhece desenvolvimentos felizes em diversos países do mundo.


Um Modelo Universal de Urbanização


A obra de Ebenezer Howard é traduzida em várias línguas, os planos de Parker e Unwin são reproduzidos em numerosas revistas de arquitectura e de urbanismo e os seus autores são convidados para conferências; não é, por isso, de espantar o sucesso da cidade-jardim em países tão longínquos como o Japão, os Estados Unidos, a Espanha, a Itália, a França, a Bélgica, os Países Baixos…Em cada caso trata-se mais de uma adaptação de um modelo de urbanismo r não da adopção de um programa de reformas sociais com base numa cidade-tipo.
No Japão, por exemplo, a fórmula garden city traduziu-se no «de’en toshi» que o dicionário define assim: «cidade que apresenta o aspecto do campo, ou ainda cidade planeada e construída nos campos dos arredores de uma grande cidade». Augustin Berque, a que se refere a esta citação, apresenta a obra japonesa, aparecida em 1907. Analisando o conteúdo ao longo dos seus quinze capítulos, ele mostra a que ponto os autores estão distantes do pensamento «socialista» de Ebenezer Howard. Não hesita mesmo a qualificar esse texto de reaccionário, e que mostra todo uma atitude anti-ocidental que preconiza um regresso aos valões ancestrais, uma espécie de ruralismo misturado com nacionalismo que privilegia a aldeia e os campos relativamente com a cidade e os jardins. Contudo, um empresário japonês modernista e ocidentófilo, Eiichi Shibusawa ( 1840-1931) aceita em 1915 promover uma «den’en toshi». A sociedade é criada em 1918. Dotada com sólidos capitais, ela compra terrenos (Tamagawa-dai-aera), assegurando a abertura de uma linha de caminhos-de-ferro com ligação a Tóquio para descongestionar. A sociedade destina-se a alojar os quadros médios em Senzokur e universitários no campus de Ookayama; a cidade-jardim torna-se assim nos arrabaldes de Tóquio com os seus jardins e um enquadramento de vida campestre. Shun-Ichi J. Watanabe tem toda a razão ao dizer que, se a palavra conseguiu passar, o mesmo não aconteceu com o conceito. Com efeito, o Japão rural foi confrontado simultaneamente com uma modernidade local e uma modernidade importada, dispondo esta última de numerosos trunfos, espaço e sobretudo de horizontes para onde se pode alargar, renovar e reforçar-se.

Na Alemanha, a recepção, a palavra e o conceito foram outros. A Alemanha acabava de nascer enquanto Estado, a sua fecundidade era tão grande que a sua população emigrava das aldeias para as cidades, mas também para o Novo Mundo. Conheceu então várias décadas de industrialização activa, intensiva e inventiva. Uma parte do patronato preocupava-se em alojar os seus trabalhadores, para o que edificaram «cidades operárias», cujos modelos vinham da Inglaterra, via as Exposições Universais, com as adaptações francesas, em particular as da Alsácia ( Mulhouse). Mas o modelo sofre bastantes modificações a fim de se encaixar melhor na sociedade alemã, os seus gostos, as suas formas de urbanização e a força reivindicativa dos sindicatos e partidos de esquerda e de extrema-esquerda. È neste contexto que a «garden city» vai seduzir tanto os reformadores sociais como os conservadores, muitas vezes anti-semitas ( a grande cidade é olhada como o local por excelência de misturas e consequentemente de degenerescência da «raça»…), os revolucionários marxistas ( Marx e Engels denunciavam a grande cidade e consideravam que a revolução iria resolver a contradição entre a cidade e o campo), assim como muitos defensores e «amantes da natureza»…Mais uma vez, a mesma palavra esconde concepções totalmente inconciliáveis entre elas. A Gartenstadtgesellschaft é criada em 1902 e o elenco de posições que ela reúne é bem mais reduzido. É largamente dominado pelos partidários de uma estética urbana ( que irmãos encontrar na Werkbund em 1907) ligada a uma planificação urbana ( p primeiro número da revista Der Stadtebau, de Camillo Sitte e Theodor Goecke, aparece em 1904), tudo isso dentro de um quadro «natural». Um industrial, Karl Schmidt, fundador da Dresdner Werkstatten fur Handwerkskunst ( na linha de WilliamMorris e do seu movimento Arts and Crafts), decide mudar os seus ateliers e as instalações dos seus operários-artesãos para Hellerau. Richard Riemerschmid ( 1868-1957) realiza o plano-massa e desenha alojamentos individuais à margem da arquitectura «tradicional», o que não contraria certas inovações formais.

O caso francês corrobora o que acaba de ser evocado a propósito do Japão e da Alemanha. Georges Benoit-Lévy ( 1880-1971), advogado de formação, filho de um fabricante de brinquedos, aceita em 1903 uma missão de pesquisa sobre as cidades-jardins financiada pelo Museu social.O relato das suas viagens e leituras, «La Cité-jardin», sai em 1904 e é prefaciado por Charles Gide ( 1847-1932), tio do romancista André Gide, célebre economista «implicado» nas universidades populares, nos movimentos associativos, e sobretudo como teórico da economia social e do sistema cooperativo ( Escola de Nîmes). Depois de ter resumido a teoria dos «três amantes» de Ebenezer Howard, ele relata a sua descoberta de Port Sunlight e de Bournville, recenseando depois as principais experimentações das cidades-jardins no mundo, antes de concluir – uma vez que deseja assumir o papel de observador neutral - com a constatação de que esta «utopia» de papel se torno uma realidade humana… Alguns anos mais tarde, em 1911, em «Villages-jardin et Banlieues-jardins», ele debruça-se sobre a palavra e o conceito: « A marca da cidade-jardim ganhou uma tal reputação que já foi objecto de contrabando. Desde as urbanizações feitas por especuladores aos grupos mais sórdidos das casas operárias, a expressão cidade-jardim tem sido indiferentemente usada pelos flibusteiros que tenham interesse em criar confusão. Os projectos sérios, porque são mais duráveis, demoram mais tempo a chegar à maturidade.(…) Aproximando-se do tipo de garden city, pelo menos quanto à maneira de construir, assim como quanto à organização da vida social e do espírito de solidariedade que inspirou a sua fundação, as cidades-jardins e os arredores-jardins ( banlieues-jardins) diferenciam-se claramente das cidades operárias e das empresas especulativas.» Um pouco mais adiante, ele lamenta ter contribuído para os equívocos ao conservar a palavra inglesa para designar realidades francesas…

É certo que em França, apesar do alojamento social não ser talvez uma preocupação nacional, existem algumas experimentações inovadoras. As cidades ferroviárias, que se multiplicam depois de I Guerra Mundial, rejeitam o plano geométrico, misturando as casas individuais confortáveis e os jardins operários. Em Reims, na cidade-jardim de Chemin-Vert, o arquitecto Marcel Auburtin ( 1872-1926) propõe uma quinzena de tipologias de habitat que se podem combinar e dispersar-se na paisagem. Alojamento operários, alojamento social, talvez, mas não isento de beleza, de verdura e de cama. A cidade-jardim à francesa, tendo em conta a fraqueza do movimento cooperativo e as reticências dos partidos de esquerda para com a política de alojamento, apoia-se na pequena fracção de patrões favoráveis à melhoria das «condições físicas e morais» dos trabalhadores e das suas famílias, e na acção de um punhado de autarcas convencidos que mudar a cidade se traduz em mudar de vida…
Georges Benoit-Lévy monta em 1903 a Associação das cidades-jardins, que irá animar com sincera paixão, não muito esclarecida, até à sua reforma em 1908. Aparentemente a secção de higiene urbana e rural do Museu social toma conta da sua gestão e nomeia Georges Risler (1853-1941) o seu porta-voz. Doravante a cidade-jardim, sempre reivindicada, torna-se uma das formas urbanas, entre outras, do ordenamento territorial da região parisiense. O seu residente não é co-proprietário do seu alojamento mas antes o co-gestionário da sua cidade. Tais mudanças explicam-se para evitar prender o operário a um único sítio, no caso da fábrica fechar as portas… Henri Sellier, eleito socialista e saído da HEC, falando inglês, vai fazer das relações entre as comunas dos arredores e Paris um dos seus cavalos de batalha, sendo o outro o alojamento social ( ele esteve na origem da criação do gabinete de habitação social). Remodelar Paris e a sua região, tornar solidárias estas duas entidades, voltar a povoar as comunas mais pequenas e dotar o conjunto da região de uma rede de transportes colectivos. Ele imagina mesmo uma transferência fiscal das comunas mais ricas para as mais pobres…

Um mapa de 1933 localiza as cidades-jardim da região parisiense realizada por aquele gabinete: Suresnes, Gennevilliers, Stains, Drancy, Le Pré-Saint-Gervais, Les lilás, Charenton, Champigny, Maison-Alfort, Vitry, Malabry, Le Plessis-Robison, Vanves e Boulogne. Elas envelheceram e algumas acabaram por ser patrimonializadas e reabilitadas. As que estavam mais inseridas no urbanismo periférico acabaram por se fundir nele e, actualmente, um observador dificilmente reconhecerá a marca de presença de uma cidade-jardim. A diversidade das tipologias dos 13.000 alojamentos destas residências ( casas individuais, casas-gémeas, loteamentos em grupo, pequenos imóveis isolados, imóveis sobre a via de circulação…) a presença de um jardim diante e atrás da habitação, as ruas, as ruelas, os bcos, as pracetas, as alas, um mobiliários urbano específico, tudo isso confere às cidades-jardins uma real originalidade e um qualidade indiscutível, mesmo se as actuais normas de conforto não são completamente satisfeitas, e se a vida urbana dos primeiros militantes se mostra amputada da sua dimensão participativa.
Será necessário ainda evocar as outras cidades-jardins espalhadas pelo mundo, como em Espanha ( Sevilha, mais concretamente), em Itália ( Littoria, hoje Latina), em Israel ( Telavive), Finlândia ( Helsínquia), na Polónia ( Wroclaw), na Bélgica ( Le Logis-Floréal, perto de Bruxelas), mas sobretudo nos Estados Unidos, e compreender o que funcionou bem e aquilo que contribuiu para o esgotamento deste modelo de vida urbano.


A história da cidade-jardim segundo Ebenezer Howard demonstra que a opinião não chega para mudar a face das cidades, isto é, que uma ideia generosa, desinteressada, não chega para reformar pacificamente uma sociedade. Certamente que a intervenção de habitantes motivados e organizados, apoiados por uma associação dispondo de capitais e do contributo de competências de arquitectos e de urbanistas, pode levar à realização de uma cidade-jardim. Mas os bons exemplos não desencadeia por si a proliferação espontânea…A questão política mantém-se, ainda mais numa época de grande reagrupamentos territoriais ( União Europeia, por exemplo) e da globalização. Ora que democracia urbana promover? Que relações se estabelecem entre a cidade e a generalização dos territórios urbanos? Que relações entre a Natureza e a Técnica? Ebenezer Howard, na sua época, deu respostas. Mas a problemática mantém-se…

Autor do texto: Thierry Paquot
Publicado na revista Urbanisme nº 343, Juilet-Août de 2005

Fusão dos portais de contra-informação La Haine e Rebelión


É, sem dúvida, uma das notícias que marcam o final deste ano de 2005: o anúncio que os conhecidos portais de contra-informação em língua castelhana La Haine ( de matriz libertária) e Rebelión ( de matriz marxista) decidiram fundir-se.

A muito custo e bastante lentamente parece que comunistas e anarquistas, depois de mais de século e meio de intermináveis disputas, começam a aproximar-se mais não seja no mundo virtual da net.

Para o colectivo editorial de La Haine este é «pequeno passo para a contrainformação, mas um grande passo para a Humanidade». Sobre as suspeitas que tradicionalmente os libertários lançam sobre o comunismo marxista, o colectivo afirmou: « Tanto na guerra civil espanhola como na revolução russa existiu colaboração entre anarquistas e comunistas com bons resultados.»
Agustín Morán, do CAES, foi o grande artífice desta fusão, se bem que Pascual Serrano, um dos mais conhecidos articulistas de Rebelión já tinha surpreendido todo o mundo, há algumas semanas atrás, ao confessar que não encontrava nenhuma diferença entre o pensamento de Lenine e o de Bakunine.

Pela nossa parte, não levantamos qualquer objecção e desejamos afincadamente que esta colaboração seja produtiva e um exemplo a seguir. Tal não impedirá, no entanto, a opinião que as duas correntes do movimento operário em questão tenham suficientes divergências para não ser fácil uma sã convivência, até porque se trata de universos teóricos substancialmente distintos.

Não obstante, não se perde nada em se tentar mais uma vez…
Porque não?

Vendaval, uma editora literária


www.edicoes-vendaval.pt


Vendaval é uma pequena editora surgida em 2000 e que tem lançado ensaios, traduções e textos literários muito interessantes, desde Emerson até Jean-Luc Nancy. No seu catálogo editorial destaca-se ainda os ensaios de Silvina Rodrigues Lopes.

Um dos seus últimos lançamento é o pequeno volume do filósofo Jean-Luc Nancy com o título «Resistência da Poesia» e que já nos referimos há alguns meses atrás aqui no Pimenta Negra, aquando do seu aparecimento em França. Da contracapa da edição portuguesa pode ler-se:

«Assim, a história da poesia é a história da renúncia persistente em deixar a poesia identificar-se com qualquer género ou modo poético – não, todavia, para inventar um outro mais preciso do que os outros, nem para os dissolver na prosa como na verdade que lhes cabe, mas para determinar incessantemente uma outra, uma nova exactidão.»
Jean-Luc Nancy