Depois não comem: é raro ver uma menina alimentar-se racionalmente de peixem carne e vinho. Comem doce e alface. Jantam as sobremesas. A gulodice do açúcar, dos bolos, das natas, é uma perpétua desnutrição. Os antigos moralistas atribuíam-lhe mesmo uma influência deplorável nos costumes e no carácer. Nas casas de província, onde a moral existe guardada em decrépitos provérbios como em frascos, dizem os velhos, com ingénuo horror:mulher gulosa, bicha manhosa.
Lisboa é uma cidade doceira, como Paris é uma cidade intelectual. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel. Daí a grande quantidade de doenças de estômago e de maus dentes. A deterioração pelo doce começa aos quatro anos. O sangue alimentado a massa, ovos, natas, dá estes corpos débeis e estas almas amolecidas. O Baltresqui, o Ferrari, a Confeitaria Lisbonense arrasam o nosso organismo social.
Outra causa de doença é a toilette. Com estes penteados enormes, eriçados,insólitos, em forma de capacete, de fronha, de chalé, de concha, e com os materiais tenebrosos que metem por baixo para sustentar e erguer mais a construção inclemente – acumulam sobra a cabeça um fardo, uma trouxa, que não deixa arejar o crânio. A transudação acumula-se à raiz do cabelo, fecha os poros, cria um estado de inflamação. Ouve-se dizer quase sempre ás mulheres – Sinto hoje um peso na cabeça !... É p fardo! É o crânio que, sem ar, amolentado, está adoecendo como um corpo que se não despe.
Lisboa é a cidade do Universo onde as raparigas mais se apertam e se espartilham. O espartilho que destrói a beleza da linha, a melodia das curvas naturais, dificulta, ao mesmo tempo, a circulação, a respiração e a digestão. Fere as três causas da vida.
De modo que o balanço das condições físicas de uma rapariga portuguesa é este:
Músculo sem exercício;
Pulões sem ar;
Circulação comprimida;
Digestão estrangulada.
A primeira consequência é que uma rapariga assim destrói a sua beleza, a vivaz mocidade, e a graça. A pele amarelece, os olhos encovam, os lábios gretam, as orlehas despegam do crânio, o nariz afila, as mãos humedecem, todo o corpo corcova – e na bela idade da florescência, e na fresca expansão da vida, uma pobre rapariga de quinze anos ou dezoito anos está como alguma coisa de amarrotado, de melado, de murcho, de em segunda mão, com aquele aspecto safado que o pó das estradas dá à virgindade das folhas.
Começam a precisar, para serem bonitas, da luz do gás. No brilho artificial daquela luz crua uma menina, com os cabelos lustrosos, um pouso de pó-de-arroz, e muitos tules espalhados, tem encanto e pode seduzir. Mas que venha, ao outro dia, a sincera luz da manhã! Todas as máculas destacam: os cabelos, chamuscados, do ferro de frisar, estão secos e cor de rato, os beiços são como um velho bago de romã espremida, o nariz tem, na cartilagem que o liga ao rosto, um vinco escuro, toda a pele parece a de uma galinha cozinda! Ah!...o velho Paris não lhe daria a maçã.
É a moda, dizem. – Cruel razão! A moda começa por ter isto de absurdo: não é ela que é feita para o corpo –mas o corpo que tem de ser modificado para se ajeitar nela. A moda vem de fora, do figurino, feita pela fantasia burguesa de um desenhador de armazém: e aqui, depois, a pobre mulher precisa de reformar o corpo, obra do seu bom Deus – para o acomodar ao figurino, obra do seu mau jornal. De modo que para sustentar o chapéu deforma-se a cabeça; para obedecer ao puff torce—se a espinha; para satisfazer às botinas Luís XV desconjunta-se o pé; para seguir p chique das baixas destrói-se o busto. Nunca como hoje, sob o domínio da democracia, se desprezou, se desteriorou tanto o corpo humano. Não é com a intenção mística daquela santa que cortou o nariz para aniquilar as glórias mortais da sua beleza! Não! Hoje mais do que nunca se glorifica a beleza, e o corpo é o fim supremo. Somente não se aceita o corpo que a natureza dá – e procura-se aquele que se vende nas modistas.
(…)
A moda destrói a beleza e destrói o espírito. Um caixeiro desenha a lápis, em Paris um certo chapéu, um certo corpete, umas certas mangas – e todas, magras e gordas, as loiras e as trigeiras, as altas e as baixas, se introduzem, se alojam, se enfiam naquele molde, sem se preocuparem se o seu corpo, a sua cor, o seu perfil, a sua altra, o seu peito, condizem, harmonizam, vão bem com o seu molde decretado e chegado pelo correio. Abandonando-se servilmente ao figurin, abdicam a sua originalidade, o seu gosto. Aceitam uma banalidade em seda – e um lugar comum com folhos. Uma senhora que não inventa e não cria os seus vestidos – é como um escritor que não acha e nãonventa as suas ideias. Ter a toilette do figurino, é fazer como os merceeiros que têm a opinião da sua gazeta. Desabitua o espírito da invenção, da espontaneidade, da liberdade. É uma confissão tácita de que se não tem espírito, nem fantasia.
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Depois da anemia do corpo, o que nas nossas raparigas mais impressiona – é a fraqueza moral que revelam os modos e os hábitos. Nada mais significativo, já notámos, que o seu modo de andar. Veja-se o andar de uma inglesa, elástico, firme, direito, sério: sente-se ali a saúde, a decisão, a coragem, a personalidade bem afirmada. Veja-se o andar de uma menina portuguesa, arrastado, incerto, hesitante, mórbido: sente-se aí a indecisão, a timidez, a incoerência.
A sua preguiça é um dos seus males. O dia de uma menina de dezoito anos é assim dissipado: almoça, vai-se pentear, corre o Diário de Notícias, cantarola um pouco pela casa, pega no croché ou na costura, atira-os para o lado, chega à janela, passa pelo espelho, dá duas pancadinhas no cabelo, adianta mais dois pontos no trabalho, deixa-o cari no regaço, come um bocadinho de doce, conversa vagamente, volta ao espelho, e assim vai puxando o tempo pelas orlhas, derreada com a sua ociosidade, e bocejando as horas.
Outro mal seu é o medo, um medo horrível de tudo; de ladrões, de trovoada, de fantasmas, da morte, dos corredores escuros, dos castigos de Deus, dos soldado e das máscaras. Não são capazes de atravessar uma sala apagada *a meia-noite; se um rato corre no soalho, saltam para cima dos móveis; gritam só com ver um revólver; têm os terrores que têm os canários.
Não há nelas nenhuma decisão, um quase nada as embaraça. É necessário que tudo em roda na vida seja muito fácil, muito claro, muito pronto; de outro modo, hesitam, estacam, sucumbem. Um não, uma carruagem que falta, o relógio que parou, o tempo que mudou – e aí estão inutilizadas. Bastavê-las no Inverni, num grande dia de chuva. A inglesa, se tem que fazer compras ou visitas, põe o seu water-proof, calça as suas galochas, toma o seu guarda-chuva, e aí vai chapinando a lama. A portuguesa em casa encolhida, amuada, inclusa ( segundo a pitoresca expressão do nosso grande desenhista Manuel de Macedo), cai, por causa de alguns pingos de água, numa desolação maior que a de Job sobre o seu monturo.
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Daqui vem a sua falta de acção, a sua infeliz «passividade». Uma menina portuguesa não tem iniciativa, nem determinação, nem vontade. Precisa de ser mandada e governada; de outro modo, irresoluta e suspensa, fica no meio da vida, com os braços caídos. Perante um perigo, uma crise de família, uma situação difícil, rezam. Têm a fé abstracta que só Deus as pode inspirar, dar-lhes a decisão, a ideia precia: mas terminam quase sempre por seguir o conselho da criada.
Veja-se que companheira para a vida do homem – e do homem moderno que não é um trovador ou um contemplativo, nem um sultão para ter aninhadas, em fofas almofadas, huris perfumadas; mas um trabalhador, que precisa ganhar o seu pão, arca com todas as durezas da vida. Como há-de ele lutar com os braços sobrecarregados por estas criaturinhas que desfalecem e gemem, cheias de puff, de pós-de-arroz, de rabuge, e de mimos de romance!
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Vejamos, um pouco, como as nossas raparigas portuguesas se formam, lentamente, sob a educação interior. As mães põem nas suas pequerruchas todo o interesse que um artista põe na sua glória: e tratam de dar a essa um relevo magnífico. Começam por as vestir como pequeninas senhoras! A pequerrucha de seis, oito anosm uma baby, um bocadinho de criatura, um nadinha de mulher, ei-la já com gravidades de dama, seriazita, coberta de fitas, de rendas, de folhos! Na idade em que precisam de toda a liberdade de corpo e de movimentos para crescer, já trazem a cinta apertada num anel tirânico, a cabeça oprimida por duros penteados em que o ferro lhes cresta o cabelo, os pezinhos devorados pelo verniz, e anquinhas epuffs, e um grande aparato, que é o cárcere do anjo.
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Ao mesmo tempo vai-se-lhe ensinando o catecismo e a doutrina. É a educação moral. A pequerrucha aprende a persignar-se, a ajoelhar com gravidade, a recitar o padre-nosso. Depois, seguidamente, decora todas as orações da cartilha. E termina por papaguear a Doutrina correntemente, de cor e salteada, como a tabuada ou como as capitais da Europa – mas sem a menor compreensão, sem ligar uma ideia sua às palavras mortas, sentindo através delas um certo terror – porque se tarta de Deus e segundo lhe ensinam é Deus quem manda as trovoadas, as doeças, a morte.
Ora para que se ensina a religião a um homem ou a uma mulher? Para lhe dar um guia para a sua consciência eum guia para a sua inteligência; uma doutrina que lhe mostre o que deve pensar e que lhe aponte o que deve fazer: critério para bem-julgar e critério para bem-viver. O que se lhe ensina , porem,o Catecismo? Uma série de fórmulas e de palavras combinadas, cujo sentido lhe é tão estranho como uma língua ignorada. Aprende-a maquinalmente, á maneira de uma lição de escola que tem de recitar a certas horas, depressa ou devagar, por obrigação, como se penteia e como trata as unhas.
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A curiosidade tem sido muito caluniada: e este nobre impulso humano é quase sempre considerado como um simples vício de criado. No entanto da curiosidade proveio toda a civilização, a Ciência, a Filosofia, as invenções, as descobertas de continentes: toda a História, toda a Crítica, é obra da curiosidade.(…) Mas é necessário saber como a educação a dirige. Descobrii a América e escutar a uma porta – são dois factos de curiosidade. Toda a criança é curiosa; resta saber se os que a educam, pelos factos e pelas ideias que oferecem ao exercício da sua curiosidade, farão dela – uma descobridora ou ua mexeriqueira.
Em Portugal, as mulheres, excluídas da vida pública, da indústria, do comércio, da literatura, de quase tudo, pelos hábitos ou pelas leis, ficam de posse apenas de um pequeno mundo, seu elemento natural – a família e a toilette. Daqui provém que senhoras reundas, conversando, giram – como borboletas em torno de um globo de candeeiro – em volta destes dois supremos assuntos: vestidos e namoros. A criança – grande ouvido e grande curiosidade – absorve, como um esponja chupa a água, tudo o que ouve dizer em redor, no conchego das saias juntas. (…) Ora quais são aqui os factos que oferecem à sua curiosidade as conversas da família, mãe, tiasm amigas ou visitas? Que fulana casou, que aquela se separou do marido, que é inexplicável a riqueza de toilette de outra, que sicrano lhe faz a corte, mas que sicrano tem uma actriz. E sempre os namoros, os vestidos, os escândalos, os mexericos, as histórias de paixões…
(…)
Tem dezasseis ou dezassete anos: ei-la entrando na vida. A educação vai-se completar agora por duas influências – uma interior, a família; outra exterior, a sociedade.
A impressão que nesta idade mais directamente lhe dá a família é toda positiva: a necessidade de ter dinheiro para viver. A organização material da vida e o seu custo, dão-lhe logo a certeza de que sem dinheiro, sem um casamento rico, a vida moderna não é mais que uma perpétua decadência e uma humilhação. Não falemos daqui nem da ricas nem das santas – duas raras espécies. Na família a rapariga vê a constente influência do dinheiro; começa a misturar-se no governo da casa, a entrar nas conversas económicas dos pais, a examinar as contas, a comprar; - hoje o rol dos fornecedores, amanhã o da modista, depois o do estofador, e um chapéu, e um camarote de teatro, e as luvas. Tudo lhe mostra a vida aplicada, como uma bomba aspirante, à bolsa da casa. A ideia do dinheiro torna-se nela fixa.Além disso embebe-se dela, nas conversas, nos jornais. Hoje, no fundo do pensamento ou do sonho, há sempre o dinheiro. A preocupação não é a religião, nem a Pátria, nem a Arte – é o dinheiro. O desinteresse é desprezado como uma ingenuidade bacoca. O mundo estende sofregamente a mão. Primeira profunda influência no espírito da mulher. – Daí o desejo de casar com dinheiro, casar rica; seja o marido velho, imbecil, rude ou trivial, contanto que traga o dinheiro, e o poder que ele da, carruagem, camarote de ópera, toilettes magníficas.- É o que todo o pai em Portugal deseja para sua filha.
Casar rica para gozar: é em que se resolve a ambição de todo o destino feminino. Dinheiro – e sensibilidade.
Coubert, o mais poderoso pintor dos tempos modernos, fez um quadro: As duas meninas do segundo império. É uma paisagem magnífica: duas mulheres solteiras descansam ali, na frescura tépida das sombras. Uma alta, loira, branca, está senta; tem o perfil frio, seco, o olhar direito, e, com um dedo apoiado à face, calcula: sente-se que pensa em dinheiro, juros, acções de companhia e jogo de fundos. A outra, deitada na relva, com os braços estendidos como abraçando a terra, trigueira, de fisionomia nervosa e imaginativa, a testa curta, os lábios secos, cisma: sente-se que sonha festas, bailes, as grandes voluptuosidades, os encontros rápidos e perigosos no fundo de um parque, e todas as exaltações da sensibilidade. Hoje, pela educação moderna dos colégios, cidades, romances, teatros, música, moral contemporânea - as duas meninas do segundo império, estão em cada mulher: fria ambição de dinheiro, exaltado ardor de sentimentalismo.
Eça de Queirós