26.10.05

A mundialização do amor maternal (ou a transferência dos cuidados maternais do Sul para os países do Norte)


As mulheres do Sul são as novas amas dos países do Norte. Quando emigram, deixando para trás maridos e filhos, é geralmente para cuidarem da progenitura das famílias abastadas dos países do Norte.
Através delas regista-se uma deslocalização de tipo novo entre o Sul e o Norte: uma transferência de cuidados e de atenção, enfim, de amor maternal do Sul para os países do Norte.
No fundo, é a velha extracção (importação) de recursos do países pobres para os países ricos, mas desta vez a transferência recai sobre um recurso especial: o amor maternal



Carlos e Princela Bautista não sabem, mas estas duas crianças de uma pequena aldeia das Filipinas, e que vivem longe dos seus pais emigrantes, são as beneficiárias de uma declaração internacional: o artigo 6º da Declaração das Nações Unidas dos Direitos da Criança consagra que qualquer criança «tem necessidade de amor e compreensão», que «deve tanto quanto possível crescer sob a salvaguarda e a responsabilidade dos seus pais», assim como «as crianças com pouca idade não devem , salvo circunstancias excepcionais, ser separadas da sua mãe». Estes desejos, por agora, não passam de votos piedosos que estão longe de proteger as crianças expostas ao fenómeno da globalização.
A família Bautista não ficou, na realidade, preservada dos custos humanos da globalização. No seu quarto de dormir, nas traseiras da casa do seu empregador, em Washington DC, Rowena Bautista, a mãe, conserva 4 fotografias em cima da mesinha de cabeceira: duas fotografias dos seus filhos naturais, nas Filipinas, e outras duas fotos com as crianças que esteve a cuidar até há bem pouco tempo nos Estados Unidos. As fotografias dos seus filhos tem 5 anos. As outras duas mostram, conforme ela confidenciou a um jornalista do Wall Street Journal, tudo o que lhe faltou. Já dois Natais que ela não vai a casa. Na última vez, o seu filho, hoje com 8 anos, mal se aproximou dela, quando a interpelou: «porque é que vieste?»
Filha de professora e de um engenheiro, Rowena fez estudos de engenharia durante 3 anos, abandonou-os para ir para o estrangeiro à procura de trabalho e de aventura. Alguns anos mais tarde, por altura de uma viagem, apaixonou-se por um operário africano de construção civil do qual teve 2 filhos. Não encontrando trabalho nas Filipinas, o pai dos seus filhos teve de ir trabalhar para a Coreia do Sul e, desde então, nunca mais apareceu.

Uma Transplantação de afectos

Rowena teve de voltar a partir para os países ricos, juntando-se á massa crescente das mães dos países pobres que trabalham durante períodos longos no estrangeiro por não poderem garantir a subsistência mensal nos seus próprios países. Ela deixou os seus filhos entregues à avó, contratou alguém para ajudar à lide da casa e meteu-se num avião em direcção a Washington DC. Arranjou um trabalho de ama com o mesmo salário que um médico nas Filipinas. Tal como Rowena, 40% das 792.000 pessoas que trabalham na economia doméstica nos Estados Unidos são estrangeiras. E tal como Rowena, 70% dos emigrantes das Filipinas são mulheres.
«O meu bebé» - é assim que Rowena chama à pequena Noa, a criança norte-americana de que ela cuida. Uma das primeira palavras pronunciadas por Noa foi «Ena«, diminutivo de Rowena. Noa, inclusivamente, começou a tagarelar a língua que Rowena falava nas Filipinas. Rowena acorda Noa às 7 horas da manhã, leva-a ao centro de recreio, está com ela no baloiço, e adormece-a na sua sesta. Rowena confessa: «Dou a Noa o que não posso dar aos meus filhos». Em troca, a criança norte-americana dá a Rowena o que ela não recebe em casa. Rowena não hesita: «ela dá-me a impressão de ser uma mãe».
Os filhos de Rowena vivem numa casa com 4 quartos junto de outros familiares, dos quais 8 são crianças que têm também algumas das suas mães no estrangeiro. A figura central na vida destas crianças – a quem eles chamam «mamã» - é na realidade é avó. Esta última trabalha como professora com um horário inacreditavelmente longo – das 7 horas da manhã às 9 horas da noite. Rowena não fala do seu pai, o avô das crianças. Nas Filipinas os homens não se envolvem na educação das crianças.
A vida de Rowena reflecte uma tendência mundial de uma enorme amplitude: a importação de cuidados e de amor dos países pobres para os países ricos. Desde há algum tempo, profissionais altamente qualificados deixam os seus países de origem, países pobres do Sul, com os seus hospitais mal equipados, escolas semi-abandonadas, e a crónica falta de perspectivas profissionais, em direcção aos países ricos, que lhes oferecem possibilidades de trabalho mais interessantes e melhor remuneradas. Enquanto as nações ricas se tornam cada vez mais ricas e as nações pobres cada vez mais pobres, este fluxo de capacidades e de competências de sentido único não cessa de aumentar o fosso entre uns e outros. A esta fuga de cérebros ( brain drain) acresce actualmente uma tendência paralela, menos visível pás carregada de consequências. As mulheres, que cuidam das crianças, idosos e doentes nos seus países pobres, deslocam-se para tomar conta das crianças, idosos e doentes dos países ricos, quer como empregadas domésticas, quer como amas ou ajudantes. Trata-se do que se chama a fuga dos cuidados maternais ( em inglês, care drain).
Quaisquer que sejam as medidas adoptadas por estas mães em relação aos seus filhos, a maior parte delas ressente-se dolorosamente da separação, acusando uma culpabilidade e remorsos contra si próprias. Numa entrevista, Vicky Diaz, uma professora diplomada, que deixou os seus 5 filhos nas Filipinas confessa: «A única coisa que posso fazer é dar todo o meu amor à criança de que tomo conta, na falta dos meus filhos». Esta realidade que está a tomar proporções desmedidas bem pode ser encarada como uma verdadeira operação mundial de transplantação de afectos.
Os filhos, numerosos, sofrem tanto como as suas mães. Estima-se, por exemplo, que 30% das crianças filipinas – qualquer coisa como 8 milhões – vivem em famílias em que, pelo menos, um dos pais partiu para o estrangeiro. Encontramos crianças na mesma situação em África, na Índia, no Sri Lanka, na América Latina e na ex-União Soviética. Como é que reagem? Não muito bem, segundo uma investigação do Centro de migrações de Manila, conduzida junto a mais de 700 crianças. Comparadas aos seus colegas de escola, os filhos dos trabalhadores emigrantes sofrem mais doenças, mostram-se mais coléricos, confusos e apáticos, além de que os seus resultados escolares se mostram particularmente fracos.
Outros estudos sobre esta população revelam um aumento de delinquência e de suicídios infantis. Quando se pergunta as estas crianças se gostavam de deixar, uma vez adultos, os seus filhos para emigrarem, a resposta é quase sempre negativa.
Se compararmos as carências afectivas de que sofrem estas crianças com a profusão de amor de que beneficiam as crianças dos países ricos, não é difícil de experimentar algum sentimento de injustiça. Na sua pesquisa sobre mulheres de cor, empregadas como domésticas, Sau-Ling Wong declara que o tempo e a energia que estas trabalhadoras despendem para os seus empregadores é à custa dos seus próprios filhos. Mas não é só o tempo e a energia que aqui estão em causa: é também o amor. Neste sentido, podemos falar de amor como um recurso desigualmente distribuído – um recurso que se retira de um lugar em proveito de outro.
Pode-se bem entender como os pais dos países ricos ficam felizes quando as amas re-direccionam o seu amor da maneira como desejam. Aliás, o amor das amas dos países do Sul para com os seus filhos é percepcionado por alguns empregadores como um produto natural da «cultura do terceiro-mundo», que seria muito mais rica no plano afectivo, e caracterizada por laços familiares mais calorosos, uma vida comunitária intensa e toda uma tradição de entrega maternal. Ao contratarem uma ama dos países do Sul, muitos empregadores esperam implicitamente estar a importar a «cultura indígena» de um país pobre, a fim de cobrir as falhas em matéria de cuidados e de afectos que sofre o seu próprio país rico.
Quando indagada pelas razões por que a relação das mães anglo-saxónicas com os seus filhos é tão diferente do das mulheres nas Filipinas, a directora de uma creche coloca a seguinte hipótese: «As mulheres das Filipinas crescem num meio mais descontraído e mais afectuoso. Elas não são tão ricas como nós, mas não são tão apressadas por falta de tempo, não são tão materialistas e ansiosas. Têm uma cultura mais de amor, e orientada sobre a família.» Uma mãe, advogada norte-americana, tem uma opinião similar: « Cármen adora muito simplesmente o meu filho. Ela não se inquieta se ele sabe ou não o alfabeto, ou se está numa boa escola. Ela tem prazer, muito simplesmente, em estar com ele. E, de facto, com os pais tão ansiosos e sobre-ocupados como nós, é isso que o Tomás precisa. Eu amo muito o meu filho. Mas as coisas são aquilo que são. Cármen faz-lhe mais bem do que eu.»

Uma alquimia cultural especial

As amas filipinas entrevistadas na Califórnia falam de uma outra maneira acerca do amor que elas dão às crianças que estão sob o seu encargo. Para elas, esse amor não é um produto de importação proveniente de oásis rurais; ele desenvolve-se em parte sobre os ombros da ideologia norte-americana do laço afectivo mãe-criança. E é reforçado pela profunda solidão destas mulheres assim como pela nostalgia que elas sentem dos seus próprios filhos. Se o amor é um recurso precioso, ele não provém simplesmente dos países pobres e é reimplantado nos países ricos; ele deve antes a sua existência a uma alquimia cultura especial que se produz no país de onde ele é importado.
Para Maria Gutierrez, que se ocupa de uma bebé de 8 meses de dois país intensamente envolvidos na sua vida profissional ( ela como advogada e ele como médico), é a solidão e as longas horas de trabalho que alimentam o seu amor pelo filho dos seus empregadores. «Gosto muito da Anne, mais que aos meus próprios filhos. Sim, é estranho – eu sei. Mas passo muito tempo com ela. Pagam-me. Fico só. Trabalho dez horas por dia, com um dia apenas de descanso. Não conheço ninguém aqui por perto. Esta criança dá-me então aquilo que me falta.»
Ela mesma predispõe-se a dar maior atenção à filha dos seus empregadores que aos seus rebentos. «Sou mais paciente, mais tranquila. Dou a prioridade à criança. Quanto aos meus filhos, trato-os como a minha mãe me tratou(…) A minha mãe cresceu numa família de camponeses. Tinha uma vida difícil. Não era calorosa comigo. Não me tocava nem me dizia que me amava. Ela não tinha consciência do que devia fazer. Perdeu dois bebes antes de eu nascer. Pensei que ela tinha medo de me amar quando era pequena, porque podia vir a morrer também. Mais tarde, fez-me trabalhar, ainda era eu pequena, para cuidar das minhas quatro irmãs e irmãos. Não tive tempo para brincar.»
O destino fez com que uma vizinha de idade mais avançada tomasse conta dela, a alimentasse e a tratasse quando estava doente. No fundo, é como se tivesse sido adoptada informalmente – uma prática corrente nas Filipinas, quer nos campos quer nas cidades nas décadas de 60 e 70.
De certo modo, Maria viveu uma infância pré-moderna, marcada por uma mortalidade infantil elevada, trabalho infantil e ausência de sentimentalismo, que estava inscrita numa cultura que enfatizava o envolvimento familiar e o apoio comunitário. O que recorda a situação da França do século XV, tal como nos é descrita na obra de Philippe Ariès (L’Enfant et la Vie familial sous l’Ancien Regime), em que não havia lugar à romantização da criança nem à ideologia burguesa da maternidade intensiva. O envolvimento contava muito mais que os sentimentos.

Os «cuidados maternais», a nova ordem do mundo

O envolvimento da Maria para com os seus próprios filhos, com 12 e 13 nos, quando partiu para o estrangeiro, traz a marca desse envolvimento. Qualquer que seja a sua cólera e a sua tristeza, Maria manda-lhes dinheiro e fala-lhes. O envolvimento está bem presente, mas ela ainda deve fazer um trabalho emocional para exprimir os seus sentimentos. Quando telefona para casa – conta, Maria - «eu digo à minha filha “gosto muito de ti”. Inicialmente isso soava a falso. Mas depois tornou-se natural. E agora ela responde da mesma maneira. É um pouco estranho mas eu aprendi dizer isso, desde que vim viver para os Estados Unidos.»
A história de Maria releva de um paradoxo. Por um lado, o mundo rico extrai amor do mundo pobre. Mas o que é extraído é em parte produto ou produzido aqui: os tempos livres, o dinheiro, a ideologia da relação pais-filhos, a solidão das mães emigrantes e a intensa nostalgia que sentem pelos seus filhos. No caso de Maria, a sua infância pré-moderna nas Filipinas, a ideologia pós-moderna do amor maternal e da infância que reina nos Estados Unidos, assim como a solidão do emigrante acabam por se aliar a fim de moldar o amor que ela prodigaliza à filha dos seus empregadores. Uma tal amor é também um produto da disponibilidade das amas, que estão livres dos constrangimentos temporais e da ansiedade relativa à escolarização das crianças e jovens, coisa que os pais, nos países ricos, sentem. É aí, onde não chega qualquer vestígio da protecção social, onde não se espera nenhum apoio de uma estrutura estatal, nem comunitária nem conjugal, é aí que as crianças e os pais não podem viver sem a presença da figura de uma mãe do Sul. O amor de Maria, enquanto ama dos filhos dos outros, não é atingido pelos efeitos destabilizadores do novo capitalismo norte-americano.
Se isso é verdade – que o amor maternal das mulheres do Sul é, pelo menos, um produto criado pelas condições em ele é dado – poder-se-á porventura dizer que o amor de Maria por uma criança de um país rico é extraído das crianças de um país pobre? Sim, porque a sua presença quotidiana foi roubada e com ela a expressão quotidiana do seu amor. É certo que é a própria ama que opera essa transferência. Mas se os seus próprios filhos sofrem com a sua falta, ela sofre com eles. E este sofrimento constitui o peso que ela carrega, lançado pela globalização.
Estranhamente, nos países ricos o sofrimento dos emigrantes e dos seus filhos é raramente visível pelos beneficiários. A mãe de Noa atende à relação que se estabelece entre a sua filha e Rowena. A mãe de Anne concentra-se na relação desta com Maria. Mas elas não conseguem ver mais longe.
A noção de extracção de recurso do Sul para enriquecer os países do Norte não é coisa nova. Remonta à época dos imperialismo e isso na sai forma mais literal: a extracção de ouro, de marfim e outras matérias-primas dos países pobres. Ora é esta forma de imperialismo abertamente coercitivo e androcentrado que persiste hoje, e onde as mulheres continuam a desempenhar uma função central. Hoje, quando o amor e o «care» se tornam o «novo ouro», as mulheres continuam a desempenhar um importante papel na história. Nestes dois casos referidos, quer pela morte quer pela deslocalização, são as crianças dos países pobres que arcam com o prejuízo.
Por isso, bem se pode dizer que a migração não representa uma fardo para o homem branco, mas antes pelo contrário, graças a uma série de laços invisíveis, ela é um fardo para a criança de cor.

(tradução para português do texto de Arlie Russel Hochschild, originalmente sob título de «Love and gold», editado no volume «Global Woman:Nannies, maids and sex workers in the new economy», sob a direcção de Arlie R. Hochschild e Barbara Ehrenreich)

(existe tradução francesa, com o título «Le nouvel or du monde:la mondialisation de l’amour maternel» na revista «Nouvelles Questions Féministes, vol. XXIII, nj 3, 2004 - ver o site
http://www2.unil.ch/liege/nqf/ - e que foi retomado na revista Sciences Humaines nº 161, juin 2005)


Nota: Nos Estados Unidos o «care» ( cuidados maternais) representa um sector em plena expansão, traduzindo-se em 20% de todos os empregos segundo a economista Nancy Folbre.

Numerosas mulheres emigrantes têm filhos. A idade média das mulheres emigrantes nos Estados Unidos é de 29 anos, a maior parte delas vem das Filipinas e do Sri Lanka

Os estudos de género (gender studies)



Os gender studies apareceram nos anos 70 nos Estados Unidos e transformaram profundamente o estudo das relações homens/mulheres. Hoje em dia os estudos sobre o género multiplicaram-se e revisitam o conjunto das ciências sociais e humanas.

O conceito de «Género» apareceu nos Estados Unidos durante os anos 70 em torno de uma reflexão à volta do sexo e da utilização desta variável na pesquisa nas ciências sociais. O movimento feminista, que tinha tido obtido algum impacte após a revolução sexual, procurava fazer ouvir a sua voz nas instituições de pesquisa. Tratava-se de reconhecer um empenhamento que se assumia cada vez mais como uma reflexão renovada sobre o mundo.
Foi o psicólogo Robert Stoller que popularizou em 1968 uma noção já utilizada pelos seus colegas americanos desde os anos de 1950 para compreender a separação em certos pacientes entre corpo e identidade. Daí a ideia que não existe uma real correspondência entre género ( masculino/feminino) e o sexo ( homem/mulher). Foi em 1972 que, apoiando-se na articulação entre a natureza e a cultura desenvolvida pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, a socióloga Anne Oakley reenviou o sexo para o domínio biológico e o género para a dimensão cultural. Os universitários americanos recusam a aproximação frequentemente realizada entre mulheres e natureza (principalmente feita por causa das suas faculdades reprodutivas) enquanto os homens estariam do lado da cultura. Um artigo publicado em 1974 pela antropóloga Sherry Ortner teve um forte impacte ao tornar os termos particularmente explícitos: « A mulher é para o homem o que a natureza é para a cultura». Em antropologia foi Margaret Mead que se dedicou a uma primeira reflexão sobre os papéis sexuais nos anos 1930. O estudo dos papéis desempenhados pelos indivíduos segundo os sexos e os caracteres propriamente femininos e masculinos permite distinguir a aprendizagem daquilo que é dado pela natureza.

Sexo feminino = um «macho menor» !!!

Uma vez operada a distinção entre género e sexo, os investigadores voltaram-se a concentrar nas relações homem/mulher. A historiadora Joan W. Scott incitou a ver mais longe a simples oposição entre os sexos. Esta deverá ser considerada «problemática» e constituir, enquanto tal, um objecto de pesquisa. Se o masculino e feminino se opõem de modo problemático é porque existe entre eles relações de poder em que um domina sobre o outro. Mas se o género é pensado como uma construção social, tal não se verifica com o sexo, encarado como um dado natural e, mais provavelmente, como algo «impensado». Foi o historiador Thomas Laqueur que demonstrou o carácter historicamente construído do sexo e a sua articulação com o género. Na obra « A Fábrica do Sexo» (1992) ele mostra a coexistência ( e a predominância do primeiro sobre o segundo) dois sistemas biológicos. Assim, durante muito tempo, o corpo era visto como unisexo e o sexo feminino era como um «macho menor» , quando no século XIX passamos para um sistema fundado na diferença biológica dos sexos.
Logo que o sexo se tornou cultural tal como o género, a sexualidade torna-se aos olhos dos investigadores o objecto de uma nova reflexão. A influência do filósofo francês Michel Foucault ( especialmente na década de 1980 durante a qual as suas obras foram traduzidas nos Estados Unidos) foi primordial. O género foi articulado com o poder e a sua transformação em discurso foi relacionada com a análise da sexualidade e das suas normas.
O final dos anos de 1980 dá-se um início de institucionalização. Emprestado ao vocabulário psicológico e médico pela sociologia, o termo é utilizado noutras disciplinas como a história. Antes que o género se tenha transformado numa ferramenta de análise, a história das mulheres limitava-se a fazer aflorar as narrativas até então invisíveis. Só depois é que deixa a mostrar as mulheres de uma maneira essencialista, isto é, com características próprias e imutáveis tais como as qualidades emotivas, por exemplo. A análise do género reconduz as especificidades pretensamente femininas à luz de um dado momento e uma determinada sociedade. Foi assim que os estudos de género perimitram reconhecer o carácter socialmente construído dos dados históricos sobre as mulheres como dos homens. Se o género torna visível o sexo feminino, tal implica que o homem deixe de ser neutral e geral para passar a ser visto como um indivíduo sexuado.A partir daqui foi possível desenvolver-se uma história dos homens e das masculinidades, sobretudo graças à revista americana Men and Masculinities dirigida por Michael Kimmel.
As questões à volta do género, da mesma maneira que a sua variação para a sexualidade desde os meados dos anos 80, contribui para dividir as feministas em dois grupos. As mais radicais empenham-se a mostrar o carácter opressivo da hierarquia dos sexos em termos de sexualidade a favor do homem, visto na sua globalidade como um macho dominante.

Gays, lésbicas, queers

Outro grupo, como as americanas Rubin Gayle e Judith Butler, mostram que a relação entre os sexos não implica somente uma hierarquia entre os géneros mais também uma injunção normativa. Em 1984 R. Gayle alarga a reflexão teórica às sexualidades que escapam à norma como o sadomasoquismo e a pornografia. Judith Butler, em 1990, tenta lançar um olhar transversal que inclua tanto as mulheres, os gays, as lésbicas como outras minorias que não se reduzam a nenhuma das duas primeiras categorias. Para J.Butler, se o sexo é tão cultural quanto o género, este último pode ser entendido como um discurso performativo sobre o qual se podia agir a assim introduzir modificações aos habitus impostos pela sociedade. Este esquema analítico alarga-se à pesquisa sobre as minorias tais como os homossexuais, as lésbicas ou os transsexuais. Os estudos de género constituem parte inteira pois que a opressão não diz respeito somente às mulheres, nem a dominação emana unicamente dos homens mas do sistema heterossexual. Os estudos gay e lésbicos, e mais tarde a teoria queer, insistirão na análise da norma imposta ao género ou não. Assim, o caso das lésbicas pode ser analisado sob o ângulo do género, enquanto mulheres, como do da norma, enquanto desviantes. O movimento queer baseia-se na multiplicidade das identidades sexuais estabelecidas segundo as necessidades e as contingências. Da mesma maneira, o trabalho do historiador americano George Chauncey sobre a cultura gay nova-iorquina durante o período entre as guerras mundiais cruza os parâmetros do género e da sexualidade de uma forma frutuosa. Mostra como se passou de um sistema de género em que a relação homossexual assentava nas identidades homem/mulher (só o dos homens que apresentava um comportamento feminino era estigmatizado) para um sistema em que a homossexualidade é avaliada à sombra da heterossexual idade. No segundo caso ( a que corresponde ao actual período) todo o homossexual é estigmatizado sob o olhar da sua sexualidade. O historiador mostrou assim a coexistência dos dois sistemas na actual Nova Iorque em que certas comunidades de latinos continuam a funcionar segundo um binarismo de género.

O contributo francês

O conceito de género encontrou algumas dificuldades para se implantar em França, devido principalmente à desconfiança para com o feminismo americano visto como demasiado comunitarista e radical. Nos anos 1980 a universidade francesa procurou precaver-se contra o político. Pela sua passagem pelo militantismo, os estudos feministas afastaram-se do domínio da pesquisa.
As expressões «relações de sexo» ou « relações sociais de sexo» foram durante muito tempo preferidas à noção de género, encarada por fluida demais. Esse vocabulário explica-se pela abordagem feminista materialista, influenciada pela escola marxista que caracteriza a primeira geração das investigadoras nos anos 1970, por via das sociólogas Christine Delphy, Nicole-Claude Mathieu e Colette Guillaumin.
Elas acabaram por retomar o trabalho de desnaturalização iniciado pelos universitários americanos, principalmente através do questionamento do trabalho enquanto actividade natural da mulher.
C. Delphy centra a sua reflexão na opressão como construção social. Ela opõe-se a uma visão diferencialista e identitária que vê as mulheres como um grupo homogéneo com características especificamente femininas. Inverte mesmo a problemática inicial: a masculinidade e a feminilidade não explicam a hierarquia e a dominação tal como o sexo muito menos explica o género. Os grupos de homens e mulheres não se constituíram senão porque a instituição social da hierarquia ( que se estende à organização social) é o princípio primeiro, do mesmo modo que é o género o que dá sentido à característica física do sexo (que em si não contém algum sentido).
O conceito de género começou realmente a difundir-se em França nos meados dos anos 1990, quando a Comunidade Europeia se virou para as questões de género e da paridade na busca de u ma igualdade efectiva. A partir de 1993 os debates sobre a paridade alargaram os trabalhos sobre o género ao campo político. Desde 1970 que os trabalhos de Janine Mossuz-Lavau sobre a visibilidade das mulheres relativamente ao voto, às eleições e à elegibilidade representaram uma primeira abordagem das relações entre os estudos de género e o campo político. A sociologia do trabalho acabou por concluir da necessidade de se tomar em conta o sexo de modo sistemático. Neste quadro assiste-se ao longo dos anos 90 à criação de módulos específicos de pesquisa como o «Mage» (Marche du travail et genre) à volta da socióloga Margaret Maruani que, depois de se ter interessado pela divisão sexual do trabalho, analisa hoje a divisão sexual do mercado de trabalho.
Quer seja na história, na antropologia ou em qualquer das ciências sociais, o género é objecto de um crescente interesse nos meios universitários, a passo que nos Estados Unidos parece que o conceito parece ter perdido grande parte da sua força provocativa e do seu valor heurístico, não abrindo novas pistas de investigação ou não promovendo novas perspectivas sobre os temas clássicos. Os jovens investigadores franceses estão, por seu turno, mais entusiasmados, tanto mais que se encontram distantes do militantismo que entravava o reconhecimento dos seus predecessores. Nesse sentido, o seu principal desafio é dar ao género um estatuto teórico nas ciências sociais despido de ideologia.

(Tradução para português do artigo de Sandrine Teixido, publicado no hors-série nº 4 ( Septembre-Octobre 2005)da revista francesa Sciences Humaines)

Breve glossário:

Género = de origem anglo-saxónica (gender) o termo começou por ser usado nas ciências médicas, a psicologia e a sociologia, e só depois pela história das mulheres a partir dos anos 1980. Em França preferiu-se durante muito tempo empregar expressões como «sexo social» ou «diferença social dos sexos» para se referir à mesma realidade. O termo hoje já se generalizou e inscreve-se numa perspectiva construtivista e pela qual se analisam as diferenças entre homens e mulheres (desigualdades, hierarquias, dominação masculina, etc) como construções sociais e culturais, e não como resultado de diferenças naturais.


Feminismo diferencialista = ramo do movimento feminista que postula uma diferença da natureza entre o masculino e o feminino, pelo qual existiria uma «essência feminina» que decorreria dos caracteres femininos específicos e inatos ( condutas femininas, escrita feminina,…) e que justificaria as diferenças no tratamento entre os dois sexos. Apelidadas por vezes de «essencialistas» ) sobretudo pelos seus detractores) as feministas diferencialistas reivindicam a igualdade na diferença.

Feminismo Igualitarista = para as feministas igualitaristas, também conhecidas por «universalistas», todos os seres humanos são indivíduos iguais, independentemente das diferenças dos traços físicos como a cor da pele ou o sexo. As diferenças entre homens e mulheres são o resultado de relações de poder e de dominação. A subordinação da mulher é uma produção social e toda a afirmação da especificidade feminina arrisca-se a dar lugar a uma hierarquização. O sexo deve pois estar dissociado dos papéis sociais, políticos e simbólicos na sociedade.

Queer = o termo aparece nos Estados Unidos no período entre as duas grandes guerras para designar pejorativamente os homossexuais com um comportamento ostensivamente efeminado. Hoje, o termo designa uma teoria que coloca em causa toda a norma, quer ela seja de género ou de sexo. Para desmontar as identidades, os queers empenham-se a misturar todas as classificações: sexualidade hetero ou homossexual, gays, lésbicas, transsexuais, masculino-feminino,…a fim de insistir na plasticidade das relações sexo-género. A identidade não é mais uma essência mas antes uma perfomance, algo fluído, bizarro e inclassificável…

Gender studies = conjunto de estudos e pesquisas que analisa as diferenças de tratamento entre homens e mulheres em todos os domínios sociais e que gerou inúmeros estudos nas ciências sociais de carácter transdisciplinar. Posteriormente, tais trabalhos desmultiplicaram-se em outras tantas áreas de estudo como os «men’s sutides ( sobre a construção do masculino e da virilidade), os «gay and lesbian studies» ( sobre a sexualidade), e os «queer studies»


Women’s studies
= desenvolveram-se na década de 1960 nas universidades norte-americanas estreitamente ligados ao movimento feminista da época, e marcado por um acentuado feminismo «radical» que assumia um diferencialismo e que levava à separação entre os sexos.

Alguns nomes:


· Margaret Mead (1901-1978) – figura de proa do culturalismo antropológico norte-americano. Combate a noção do «eterno feminino». A partir dos seus estudos no terreno nas ilhas do Pacífico Margaret Mead defende o carácter cultural e construído das identidades de sexo, mostrando que em certas etnias a passividade e a sensibilidade são características masculinas.
· Simone de Beauvoir – publica em 1949 o livro «O Segundo Sexo» que se vai tornar na obra de referência na reflexão sobre o género. Analisa aí as modalidades sociológicas, psicológicas e económicas da hierarquia entre os sexos e mostra a universalidade da dominação dos homens sobre as mulheres, convidando as mulheres a usar da sua liberdade para escaparem ao papel de serva e mãe.
· Luce Irigaray – é a principal figura da contestação à psicanálise enquanto disciplina patriarcal, denunciando o imperialismo masculino da filosofia ocidental. Procura lançar uma nova ética nas relações sexuais.
· Michel Foucault – o filósofo francês constitui uma referência maior para os defensores da teoria queer ao mostrar o carácter construído da normatividade heterossexual e ao questionar as noções de género e sexo.
· Carol Gilligan – psicóloga diferencialista para a qual homens e mulheres tem funcionamentos psicológicos diferenciados. Interessa-se em especial pelas concepções da moral dos dois sexos: a mulher com uma «ética da solidão» (empatia, protecção e altruísmo) e o homem com uma «ética de justiça» (igualdade das pessoas, respeito do direito).
· Elisabeth Badinter – defende uma concepção igualitarista dos dois sexos. O amor maternal não teria nada de natural e instintivo. Cada sexo tem a sua dose de masculinidade e de feminilidade. As sociedades são cada vez mais andróginas. Ao mesmo tempo que se opôs a qualquer medida discriminatória para as mulheres, erigiu-se igualmente contra as tendências de vitimização de algumas feministas, reafirmando a sua completa rejeição de todo o diferencialismo.
· Joan Scott – Historiadora americana que, no encalço de Foucault e dos desconstrucionistas (conhecida pelo seu French feminism), propôs uma definição rigorosa da noção de género. Apresenta o post-estruturalismo como um instrumento para re-analisar os fenómenos históricos, sociais e culturais à luz dos discursos e das representações sobre a diferenças dos sexos.
· Judith Butler – Professora de literatura comparada em Berkeley, esta autora, juntamente com Eve Kosofsky Sedgwick, é a teorizadora do movimento queer. Opõe-se às feministas que definem as mulheres como um grupo com características comuns, o que reforçaria o modelo heterossexual e binário. Vê o género como uma variável fluida e susceptível de variar segundo o contexto e o momento. J. Butler convida a uma acção subversiva ( o chamado «gender trouble») que leve a uma confusão e à profusão de identidades. Para ela, a identidade de género pode ser reinventada sem cessar pelos próprios actores.
· Françoise Héritier – parte da constatação do carácter universal da dominação masculina, da hierarquia homem(mulher e daquilo que ela chama uma «valência diferencial dos sexos». Preconiza uma mudança para as mulheres a partir do controle destas sobre a sua fecundidade graças à contracepção.
· Pierre Bourdieu – dedicou-se a descrever em todas as obras as relações de dominação nas sociedades e a violência simbólica que daí resulta, mostrando como as mulheres integraram o «habitus» (comportamentos mais ou menos conscientes e modos de pensar) do sexo, ou seja, da sua própria dominação. A dominação masculina torna-se assim uma «construção social naturalizada» que, não obstante o movimento feminista, não se mostra pronto a desaparecer.