8.1.07

O que devemos entender por emancipação?


Como podem os seres colectivos produzidos pela dominação transformarem-se em sujeitos de emancipação?

No projecto libertário a emancipação é sempre pensada sob a forma de uma afirmação, uma afirmação de relações radicalmente outras, de modos de ser diferentes portadores de uma vida mais intensa e mais livre.


O desejo e a vontade de emancipação nascem frequentemente de uma condição ou situação anterior de opressão e de dominação: situação essa que é vivida negativamente como insuportável ou inaceitável, uma condição ( de «escravo», de «assalariado», de «criada doméstica», de «soldado», de «criança» sujeito à autoridade discricionária dos pais, etc) onde se forjam as forças e as identidades capazes de reivindicar uma outra vida.


Tais forças potencialmente emancipadoras são assim triplamente colocadas sob o signo do negativo e da dependência face à dominação: 1) através da opressão que sofrem e que as produz; 2) através das suas próprias lutas que se arriscam continuamente a serem simples recusa da opressão; 3) através dos meios que elas usam para essa luta, as mais das vezes, moldados e induzidos pelas exigências da luta e, finalmente, pelo inimigo a combater e a destruir.

Donde esta consequência historicamente fácil de ser verificável: a vitória contínua e repetida de uma opressão que, mesmo no caso da vitória aparente dos oprimidos, se reconduz imediatamente através dos meios e das identidades que são utilizadas para a concretizar.


O que levanta a questão central do projecto libertário, uma questão que é ao mesmo tempo teórica e prática: como transformar esta tripla situação de dependência, face aos dominantes, em forças afirmativas autónomas, aproveitando o que nelas é constitutivo. Como podem os seres colectivos produzidos pela dominação transformarem-se em sujeitos de emancipação? Como podem os meios de luta serem ao mesmo tempo os fins dessa mesma luta?

( recorde-se a questão asperamente discutida dos «sindicatos revolucionários», simples meios de luta ou instrumentos de gestão de gestão da sociedade que se pretende fazer nascer; a questão da militarização das milícias em Espanha; a rejeição pelos anarquistas, tão mal compreendida por alguns, da «disciplina revolucionária», a questão da eficácia hierárquica, assim como a questão maior do Estado que é apresentado como o meio mais seguro e mais eficaz de emancipar os que ele próprio oprime)

( a tudo isto se associa a noção de entelequia, uma noção filosófica retomada por Leibniz e, depois, por Proudhon, e que permite pensar as relações entre força colectiva, liberdade e razão.( consultar o texto de Produhon «De la Justice»,t.3, p. 267). Entelequia foi um conceito utilizado por Aristóteles que designa tradicionalmente o estado de acabamento ( de perfeição) de um ser.Nessa concepção e à imagem das «causas finais» tratar-se-á do «fim» do movimento, que leva à passagem da «potência»ao «acto».A esta sucessão estática de «estados», Leibniz substitui-o por um modelo dinâmico de movimento. Nele a entelequia designa então uma «tendência» presente já no início, e que por «dilação» ou «desenvolvimento» conduz qualquer ser àquilo de que ele próprio é portador ( àquilo que ele pode), a partir da sua constituição. Tal entendimento exclui todo o finalismo. O «fim» não é aquilo para que se tende, de forma exterior, como uma finalidade externa, como aval da nossa acção, e em função das ilusões da consciência, da lógica ou da razão, mas verdadeiramente aquilo que nos faz agir, como vontade e como desejo, no mais profundo e no mais obscuro de nós mesmos, em função da acção que nos constitui num dado momento.)

O movimeno libertário não acredita nem nos mistérios nem nos passes de magia da dialéctica, nem na providência divina (mesmo mascarada com os enfeites cientistas de materialismo dialéctico). Com efeito, para ele a qualidade emancipadora das lutas de libertação não é automática. Exige ser avaliada caso a caso, praticamente, no mais pequeno pormenor do que a constitui, nos meios que usa, na vontade que a anima, na sua capacidade desde logo de afirmar um mundo outro, capaz de se opor a toda a opressão e a toda a dominação, presente e futura.


É porque, entre outras coisas, ele federa forças diferentes e contraditórias, agindo cada qual no seu próprio plano de realidade, que o movimento libertário pode escapar às armadilhas das relações específicas de cada dominação, e que são produzidas põe essa dominação.


( excerto do livro de Daniel Colson, «Petit Lexique Philosophique de l’Anarchisme, de Prodhon a Deleuze», ed. Le Livre de Poche, Paris, 2001)

A Dialéctica do Senhor e do Escravo

O anarquismo rejeita a armadilha da dialéctica do senhor e do escravo. Com Nietzsche, e no sentido que ele dá a estas palavras, o anarquismo está sempre e sem hesitação do lado dos senhores e não dos escravos. Ou seja: o ponto de vista emancipatório não é do escravo, mas de um senhor que, enquanto dominado, se liberta radicalmente, pela revolta, das grilhetas que o subjugam e de uma força exterior, e que por essa via se afirma numa potência nova que o torna o seu próprio senhor e quebra os limites da dominação.


É por aí, e desse ponto de vista, que se pode compreender por que é que o movimento operário libertário sempre foi histórica e radicalmente alheio ao marxismo (que é uma variante do hegelianismo) e da sua concepção de luta de classes, na medida em que se insere no movimento de diferenciação dos fortes e dos senhores de que fala Nietzsche. Com efeito, na concepção anarco-sindicalista ou sindicalista revolucionária, e contrariamente ao que se ouve com frequência, a classe operária, considerada do ponto de vista da sua emancipação, não é definida à partida, nem principalmente, pela luta de classes, ou pela luta que a opõe ao Estado e à burguesia. O seu poder revolucionário depende essencialmente da sua capacidade de se constituir em poder autónomo, independente, dispondo de todos os serviços e de todas as instituições necessárias para a sua independência. Para o anarco-sindicalismo e o sindicalismo revolucionário deve operar desde logo uma secessão de modo radical, de modo a não ter nada a ver com o resto da sociedade. No registo próprio a esta dimensão libertária do movimento operário este movimento de diferenciação tem uma expressão cristalina, na linguagem nietzcheana, e que é separatismo operário. O movimento operário deve «separar-se» do resto da sociedade. O que Produhon explica no seu livro póstumo «De la capacite politique des classes ouvrières»: «A separação que eu falo é a própria condição de vida.Distinguir-se, definir-se é ser; tal como confundir-se, absover-se é perder-se. Operar uma cisão, uma cisão legítima, é o único meio que nós temos de afirmar o nosso direito (…) Que a classe operária, se se toma a sério, se ela visa outra coisa que não seja uma pura fantasia, então ela tem por adquirido que é preciso quanto antes que saia da tutela e (…) que actue d’ora avante exclusivamente para e por ela mesma.»


Nesta maneira de ver, a luta de classes não está ausente, mas ela não tem nada de dialéctico, no sentido em que a relação para com a «sociedade moribunda », de que fala Jean Grave e que o movimento operário rejeita, arrisca a arrastar consigo aqueles que a combatem numa mortal e anestesiante ligação, ao obrigar a este último a aceitar as regras comuns de combate, a adoptar as formas de luta toleráveis pela ordem que esse movimento pretende negar e destruir. Para o movimento operário libertário, a greve, expressão privilegiada da luta de classes consiste em duas coisas: 1) é um acto fundador ininterruptamente repetido de um «conflito», sempre singular e circunstancial que quebra ao laços e os entraves anteriores, uma ruptura que, por via da multiplicação dos conflitos parciais e graças ao seu próprio movimento, contribui de modo decisivo para transformar o próprio ser de operário; 2) Ela é a maneira como os operários se «educam», « se abastecem» , e se preparam para movimentos cada vez mais «gerais», até à explosão final da greve geral. Nesta multitude de lutas parciais, as associações operárias bem podem fixar objectivos imediatos, e estabelecer acordos, mas tais objectivos serão sempre secundários, e tais acordos serão sempre provisórios. Para as forças revolucionárias tudo isso não representa qualquer compromisso razoável no quadro em que se deram, pois nenhuma «satisfação» virá da ordem económica e social em que foram obtidos, e de que eles dependem. Mesmo quando se assinam convenções, os operários não estão numa situação de demanda. Contentam-se em obter uma parte do seu «direito», provisoriamente, esperando sempre em obtê-lo por inteiro, livremente, sem outros parceiros que não eles próprios. Se os operários não pedem nada é porque eles não esperam nada do velho mundo, que querem abolir, e que eles desprezam e ignoram. A sua revolta é uma pura afirmação das forças e do movimento que as constitui e é apenas de forma derivada que são constrangidas a. combater as forças reactivas e reaccionárias que se opõem a essa afirmação. Eles não pedem nada a ninguém, mas tudo a eles próprios, à sua capacidade de se exprimir e a desenvolver as potencialidades de que eles são portadores.


A sua relação com o mundo exterior é simultaneamente uma relação de selecção, de pretensão ( no sentido primeiro e físico do termo) e de recomposição daquilo que é:
-uma selecção, na ordem existente, dos meios necessários à afirmação desta potência nova;
-a pretensão a ocupar um dia a totalidade do espaço social, através de uma transformação radical da ordem burguês com os seus valores, moral, sistema económico e político;
- uma recomposição da totalidade daquilo que se é


Victor Griffuelhes (in «Le Syndicalisme révolutionnaire», editions CNT-AIT,1909) formula este projecto desta maneira: «A classe operária, ao negar aos seus dirigentes e senhores o direito de governar e manter o seu reino e dominação, não deve esperar nada deles, pelo que tem de se agrupar e de se associar, estabelecendo as condições do seu desenvolvimento, e pelas quais, estuda, reflecte, trabalha, prepara e fixa o conjunto de garantias e de direitos a conquistas, mobilizando os meios, que se encontrem no seu contexto social, para assegurar essas conquistas, e usando os modos de acção que o seu próprio contexto social lhe oferece, recusando tudo aquilo que tende a fazer do trabalhador um ser submisso e governado, e assumindo-se sempre como senhor dos seus actos e das suas acções e árbitro do seu destino.»


Consultar para mais desenvolvimentos:
Moore, John (editor), « I am not a man I am Dynamite: Nietzsche and anarchisme», Ed. Autonomedia, Brooklyn


( excerto do livro de Daniel Colson, «Petit Lexique Philosophique de l’Anarchisme, de Prodhon a Deleuze», ed. Le Livre de Poche, Paris, 2001)

Ilha das Flores - Documentário pedagógico sobre o consumismo e a exploração económica

A trajectória de um tomate na sociedade de consumo e de exploração capitalista

Trata-se de um célebre documentário brasileiro, cáustico e bem humorado, realizado por Jorge Furtado, e uma pequena obra-prima de pedagogia, que narra a trajectória de uma tomate e que denuncia a sociedade de consumo e o sistema capitalista.

Duração de 20 minutos

Parte 1


Parte 2


Será que o Direito Internacional ainda existe?


As Nações Unidas dizem-se fundadas no princípio de igualdade soberana dos seus membros que a compõem e assume-se como a porta-voz do respeito pelos direitos do Homem, da não-discriminação e pela protecção dos indivíduos face ao arbítrio. Este conjunto de princípios deveria permitir a construção de uma ordem jurídica internacional à escala mundial. Ora a verdade é que nos últimos anos não se vê outra coisa que não seja a banalização e sistemática violação das mais elementares regras do direito internacional e dos direitos humanos. E o mais grave é o facto disso acontecer por acção dos membros mais importantes das Nações Unidas, que fazem parte do seu Conselho de Segurança, a saber: os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, já para não falar da Rússia e da China.

Toda esta deriva mais do que justifica a nossa dúvida:
Será que o Direito Internacional ainda existe?
Ou já entramos numa nova era de completa desordem mundial onde a lei do mais forte se impõe, e o Império se substitui à antiga ordem jurídica internacional?

Recorde-se que o Direito Internacional (DI) é o conjunto de normas que regula as relações externas dos actores que compõem a sociedade internacional. Estes actores, chamados sujeitos de direito internacional, são, principalmente, os Estados nacionais, embora a prática e a doutrina reconheçam também outros actores, como as organizações internacionais. Habitualmente reconhece-se a existência de um direito internacional apenas a partir do tratado que instituiu a Paz de Westefália , e que é também um importante marco histórico uma vez que é a partir daí que os historiadores indicam o surgimento do Estado-Nação moderno, e que tem subsistido até aos nossos dias, sendo agora a sua sobrevivência objecto de grande discussão e questionamento face ao fenómeno da intensiva globalização que se traduz na superação daquele modelo organizacional das socieadades e inclusive das próprias sociedades nacionais.

Por sua vez, os Estados são entidades/organizações investidas de soberania, e que se manifesta de duas maneiras, segundo o âmbito de aplicação. Na vertente interna de aplicação da soberania, o Estado encontra-se acima dos demais sujeitos de direito, constituindo-se na autoridade máxima dentro do seu território. Na vertente externa, por outro lado, o Estado está em pé de igualdade com os demais Estados soberanos que constituem a sociedade internacional.

Esta dicotomia entre as vertentes interna e externa do âmbito de aplicação da soberania do Estado reflecte-se, também, na natureza da norma jurídica, conforme seja de direito interno ou de direito internacional. No direito interno, a norma emana do Estado ou é por este aprovada. O Estado impõe a ordem jurídica interna e garante a sanção em caso de sua violação (relação de subordinação).
Tal não acontece no Direito Internacional: neste, os Estados são juridicamente iguais (princípio da igualdade jurídica dos Estados) e, portanto, não existe uma entidade central e superior ao conjunto de Estados, com a prerrogativa de impor o cumprimento da ordem jurídica internacional e de aplicar uma sanção pela sua violação. Os sujeitos de direito (os Estados), aqui, diferentemente do caso do direito interno, produzem, eles mesmos, directamente, a norma jurídica que lhes será aplicada (por exemplo, quando um Estado celebra um tratado), o que constitui uma relação de coordenação, e não de subordinação.

Os conceitos de acto ilícito (violação de uma norma jurídica) e de sanção ( imposta em consequência do ato ilícito) existem no Direito Internacional, mas sua aplicação não é tão simples como no direito interno. Na ausência de uma entidade supra-estatal, a responsabilidade internacional e a consequente sanção contra um Estado dependem da acção colectiva de seus pares, ou seja, da comunidade internacional, presente na Organização das Nações Unidas.

Fontes do Direito Internacional são os diversos modos pelos quais a norma jurídica se manifesta, isto é, os fatos e actos que produzem uma norma jurídica internacional, apontando-se normalmente os seguintes: tratados, costumes, princípios gerais de direito, os actos e as decisões das Organizações Internacionais, assim como a jurisprudência, a equidade e as regras de interpretação e de integração deste ramo de direito.
De todas as fontes de direito internacional importa destacar os princípios gerais de direito que a generalidade dos Estados nacionais reconhecem, pelo menos, até à data, e entre os quais se salientam:
princípio da não-agressão;
princípio da solução pacífica dos conflitos;
princípio da autodeterminação dos povos;
princípio da coexistência pacífica;
princípio da continuidade do Estado;
princípio da boa fé;
princípio da obrigação de reparar o dano;
pacta sunt servanda (os acordos devem ser cumpridos);
lex posterior derogat priori (a lei posterior derroga a anterior);
nemo plus iuris transferre potest quam ipse habet (ninguém pode transferir mais do que possui).

Face a esta breve descrição sobreo Direito Internacional não surpreende a legítima dúvida sobre se ainda continua a existir realmente um direito internacional...

Uma tentativa de resposta será dada num breve curso que se realizará na Universidade Popular do Hauts-de-Seine, sendo professora convidada Monique CHEMILLIER-GENDREAU ( professeur émérite de Droit Public et Science Politique, Université Paris VII-Denis Diderot )


Para mais informações sobre direito Internacional Público consultar
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