A Feira do Livro de Lisboa recebe hoje Joaquim Magalhães de Castro, autor do livro de viagens «Mar das Especiarias», edição da Presença ( nos Stands BII-07;BII-08;BII-09;BII-10;BII-11;BII-12;BII-13;BII-14 ) para uma sessão de autógrafos.
Mar das Especiarias é uma surpreendente narrativa de viagens pelas centenas ilhas que fazem parte da Indonésia, ligando o tempo presente através do testemunho vivido pelo autor e a herança cultural dos descobridores portugueses que no passado remoto percorreram aqueles mares e terras à procura de especiarias e de domínio militar absoluto. Uma típica obra de literatura de viagens, repleta de aventuras comuns, que cruzada com história colonial, permite traçar um quadro vivo do que é a actual Indonésia e a influência nela deixada pela presença colonial dos portugueses em muitas manifestações imateriais (vocábulos, músicas e ritmos) e património construído que quase todos nós pura e simplesmente desconhecemos. Uma surpresa, pois.
Como ilustração desta obra reproduzimos a seguir um excerto do livro, e ainda o respectivo Prefácio da autoria de Ana Gomes.
« Essa noite de lua quase cheia, faço uma visita ao Teddy’s Bar onde me cruzo com o Bob. Acompanham-no um grupo de jovens indonésias. Logo entendo a sua insistência para que eu ficasse alojado no Sea View. Bob, apesar do que é óbvio, não se considera proxeneta pois “só está ali para ajudar”. Enfim, para fazer o papel de tradutor e apresentá-las a possíveis clientes. –“Essa aí” – diz, apontando para a mais bonita, – “ontem fez 400 mil rupias.”
No fundo, Bob considera-se um relações públicas. E elas, “às vezes”, dão-lhe algum dinheiro que logo ele transforma em doações, como, por exemplo, idas à discoteca que fica num hotel dos caros. – “Les enfants doivent aussi s’amuser, n’est ce pas?” – remata.
Mas o negócio vai mal, pois os australianos de Darwin, os habituais turistas de Kupang, deixaram de aparecer. O grande mercado abastecedor de mulheres na Indonésia é agora Surabaya, em Java, para onde se desloca o pessoal da ONU destacado em Timor-Leste, para contratar umas “domésticas” que lhe arranjem a casa.
Teddy, um sorridente chinês naturalizado australiano, é como uma espécie de rajá local. Bob apresenta-mo e este chama o seu disc jokey, um body builder com o cinto por cima das calças vincadas. Vê-se logo que é timorense, até porque a música que passa é portu music, neste caso forró brasileiro com influência de vários estilos diferentes e até com temas do Quim Barreiros a intrometer-se no alinhamento.
Estou a falar de Eleutério da Luz Ferreira Corte Real. Da família do liurai Aleixo Corte Real, português feito herói em Ainaro durante a ocupação nipónica. O tal Corte Real de que me falara Francisco Magno, residente em Ainaro, dizendo que “ele vivia Kupang e não ousava regressar com medo das represálias”. E isto porque foi, como o próprio visado o confirma, um dos que apoiavam a integração. Aliás, “na família há gente de todos os quadrantes políticos”.
Eleutério conhece Eurico Guterres, mas garante que nada tem a ver com as milícias. Condena os crimes que cometeram, como também condena os timorenses de Lorosai “por estarem sempre de mão estendida à espera de algo”. Diz que Xanana falou com ele pessoalmente, pedindo-lhe que regressasse. E por isso, “devido ao pedido do presidente”, está a pensar fazê-lo, embora em Díli sejam ténues as perspectivas de emprego. – Deste lado sempre há mais oportunidades – admite. »
(in Mar das Especiarias, ed.Presença, de Joaquim Magalhães de Castro)
PREFÁCIO
(ao livro Mar das Especiarias)
O desfolhar das páginas do livro de Joaquim Magalhães de Castro No Mar dos Rajás proporciona um impressivo relato das mil e uma aventuras deste português que, no despontar do seculo XXI, se meteu intrepidamente pelo mar fora, seguindo as peugadas de muitos dos nossos antepassados, com o objectivo de encontrar vestígios por eles deixados no fabuloso arquipélago das especiarias que hoje constitui a República da Indonésia. O autor confronta-se – e confronta-nos – ora com testemunhos vivos da nossa História, ora com “estórias” que as brumas do tempo transformaram em quase realidade, permanecendo vivas no imaginário colectivo dos povos dessas longínquas paragens.
Partilhando as extraordinárias experiências do autor, o livro constitui um aliciante convite à aventura e à descoberta do que Portugal levou aos povos das ilhas indonésias - e do que também deles trouxe. Mas também nos interpela, como apelo à urgência de um trabalho técnico-científico de fundo, concertado entre especialistas indonésios e portugueses, que não deixe perder-se para sempre o que ainda resta dos traços daquelas decisivas passadas no processo de globalização económica e cultural de um mundo que, de repente, se tornara redondo....
Deliciam as conversas que espontaneamente suscitam comparações e conduzem à revelação de semelhanças em termos tão comuns como serdadu (soldado), almari (armário), kondi (conde), manina (menina), joget (joguete) ou tanjidor (aquele que tange um instrumento). Extasia o cuidado e empenho que Edmundus Pareira terá posto na redacção do discurso de boas vindas ao Embaixador de Portugal em Jacarta!
Foi com indizível prazer, embora roída de saudades das paisagens e gentes da Indonésia, que devorei o relato do saltitar a que o autor se sujeitou, ao longo de quase 7 mil quilómetros de mar e ilhas, transpondo inevitáveis e incontáveis dificuldades físicas e logísticas. Joaquim Magalhães de Castro foi muito além de anteriores cronistas, na insaciável curiosidade, na avidez de descobrir e na capacidade de registar. Ele faculta-nos hoje, quando estão prestes a completar-se 500 anos após a chegada dos primeiros portugueses àquelas paragens, um extensivo trabalho de recolha, não só dos testemunhos vivos do nosso ancestral destemor do desconhecido, como da nossa vocação para reconhecer o Outro e para estabelecer pontes de partilha de saberes, experiências e interesses.
Guardo como tesouro a recordação e as fotografias dos caminhos que percorri, das personagens com quem me cruzei, dos costumes e tradições que descobri ou reconheci, desde Lamno, na ponta do Aceh, em Sumatra, a Atambua, em Timor Ocidental; passando por Java, Bali, Lombok, Sumbas, Celebes, Flores, Molucas e o Bornéu. Caminhos por onde Joaquim Magalhães de Castro se aventurou também, em deambulação que o levou muito mais longe e que explorou muito mais a fundo. A minha missão na Indonésia durou apenas quatro curtos anos, entre 1999 e 2003, com obrigações que me impediam o afastamento prolongado de Jacarta. O admirável relato das explorações de Joaquim Magalhães de Castro espicaça-me o desejo de um dia voltar, mais liberta e demoradamente, para desfrutar do prazer de me entranhar de novo no verde de palmeiras e arrozais, nos azuis de ceús e mares, na altura fumegante dos vulcões e na planura das povoações acolhedoras, para saborear mais conversas com mulheres e homens de outras culturas e línguas que, contra ventos e marés, cuidam de preservar a memória que, sabem, lhes alargou os horizontes: a de Portugal e dos antigos portugueses.
Bruxelas, 29 de Janeiro de 2009
Ana Gomes
Eurodeputada e ex-Embaixadora de Portugal em Jacarta