José Pacheco foi professor do 1.º ciclo, ou do ensino primário como gosta provocatoriamente de afirmar, docente na Escola Superior de Educação do Porto e membro do Conselho Nacional de Educação.
Mas José Pacheco é também reconhecido com o principal responsável pelo nascimento do projecto da Escola da Ponte, em Vila das Aves, considerado uma referência a nível nacional e internacional. Uma escola que assenta num modelo de ensino inovador, onde não há turmas, nem anos, e onde cada criança aprende ao seu próprio ritmo.
Actualmente, José Pacheco já não se encontra na Escola da Ponte. Com a chegada da aposentação, decidiu abraçar outros desafios e afastar-se da Ponte para que, como explica nesta entrevista, o projecto possa seguir o seu caminho. É no Brasil que se encontra actualmente, vivendo, como sublinha, "em permanente conspiração".
EDUCARE: Antes de mais, e para quem ainda não o conhece, como é que se definiria? Como um professor de 1.º ciclo, um mestre em Ciências da Educação ou como um eterno aprendiz de utopias?
José Pacheco: Creio que serei um eterno aprendiz.
E: É o fundador do projecto da Escola da Ponte. Passados mais de 30 anos, como avalia esta experiência?
JP: Que me seja perdoada uma breve referência autobiográfica: troquei a carreira de engenheiro pela de professor, quando me apercebi de que seria possível resgatar a missão da escola e dar a todos condições de sucesso escolar e pessoal. Não estava equivocado, pois tive o privilégio de encontrar uma escola chamada Ponte. Mas um projecto não tem "fundador", qualquer projecto humano resulta de um esforço colectivo. Eu apenas tive o mérito de desacomodar alguns professores. Depois, foi uma questão de tempo, de muito estudo, do reforço do colectivo, de mudanças prudentes e de muita frustração e resistência. Melhor dizendo: de resiliência, que é a sina de todos os que, nascendo neste país, ousam perturbar a mediocridade reinante.
Na Ponte, nunca fomos adeptos de copiar teorias. Sofremos influências teóricas, mas testámo-las na prática. Os projectos estão sempre em fase instituinte e as rupturas (responsáveis!) acontecem sem cessar. Trinta anos foi apenas um tempo de começar. Talvez daqui a mais trinta possamos "avaliar a experiência".
E: Sente-se responsável por um legado único ao nível do ensino em Portugal e até além-fronteiras?
JP: Sinto-me colectivamente responsável. E, quanto mais longe estou da Ponte, à medida que o distanciamento crítico me permite observar mais atentamente o projecto, mais me convenço de que a Ponte inaugurou um novo tempo na história da educação. Não há presunção no que afirmo: a Ponte logrou operar uma ruptura total com o modelo dito "tradicional", com excelentes resultados.
Mas ainda tem muito caminho pela frente. Os professores que integram a nova equipa herdaram uma grande responsabilidade. Aquilo que, lenta e pacientemente, foi construído carece de uma síntese fundadora de novos passos e da criação de redes de colaboração com outras escolas onde a mudança, lenta e discretamente, já vai acontecendo.
E: Apesar do mérito reconhecido da Escola da Ponte, poucas foram as escolas que se atreveram a seguir um percurso semelhante. Falta de condições, medo de inovar ou a velha resistência à mudança?
JP: Poderei discordar? Não serão poucas as escolas que mudaram inspiradas na Ponte. Serão poucas no nosso país, mas esse facto não me surpreende. Nós sabemos que ninguém é profeta na sua terra.
Conheço muitos professores que se interrogam sobre o (sem) sentido da escola. E que, mais do que interrogar, agem. É bom que sintam receio e que ajam com prudência. Nos tempos que correm, escasseiam os educadores e sobram os detractores.
Acompanho o trabalho de muitos professores envolvidos em projectos de mudança, inevitavelmente diferentes do projecto da Ponte, mas que partilham da mesma intenção: transformar as escolas em espaços de fazer dos jovens seres mais sábios e pessoas mais felizes.
Não acredito em modelos, muito menos acredito na clonagem de projectos. Acredito nos professores que vão construindo alternativas a uma escola obsoleta, geradora de insucesso e infelicidade.
Cada ser humano é único e irrepetível e o mesmo acontece com as escolas. Nenhuma deverá seguir os caminhos da Ponte.
E: E que mensagem deixa para as vozes críticas ou dissidentes em relação ao projecto da Ponte?
JP: Que continuem a criticar. Mas que o façam com conhecimento de causa. As críticas, desde que construtivas e fundamentadas, são muito úteis para a correcção das rotas. Infelizmente, muitas das críticas provêm das mesmas pessoas que criticam "novos métodos" sem fazerem a mínima ideia do que sejam esses "novos métodos".
Juntam à crítica do "eduquês" (aberração que eu também critico) um ódio primário a tudo o que possa constituir inovação. Não conseguem entender que o seu discurso favorece a manutenção de práticas caducas, responsáveis pelo caos em que o sistema está imerso. Talvez creiam que, para ser professor, basta ter formação técnica, científica. Não basta! Se os "críticos" investissem algum tempo no estudo das (desdenhadas) ciências da educação, talvez tomassem consciência dos disparates que publicam.
Quando findar o tempo das críticas ignorantes e dos debates estéreis, que essas pessoas alimentam (sobretudo na Internet) não será tarde para mudar de rumo, mas muitas gerações terão sido sacrificadas a um ensino sem sentido, gerador de insucesso nos alunos e de sofrimento nos professores.
E: Já se encontra há algum tempo no Brasil. Como surgiu esta experiência no outro lado do Atlântico? Que trabalhos/experiências está a desenvolver? A receptividade dos professores/educadores brasileiros tem sido positiva?
JP: Talvez porque, como diria o Pessoa, a língua portuguesa seja a nossa pátria, a receptividade às inovações produzidas na Ponte foi significativa no Brasil. Não é necessário traduzir...
O que mais me atrai no Brasil é o desafio. Encontrei escolas em tudo idênticas às europeias: com grandes recursos, mas acomodadas. E, em escolas sem um mínimo de condições, encontrei professores que não aderem a "modismos" e que, apesar do baixo salário e das precárias condições de trabalho, não desistem de se melhorar e de melhorar as suas escolas.
Há cerca de dois anos, senti que teria chegado o momento de permitir que a Ponte seguisse o seu caminho sem a minha presença. E o Brasil talvez tenha sido um pretexto (inconsciente...) para me afastar (fisicamente) da Ponte e permitir que outros professores tomassem nas suas mãos a condução do projecto. Sem a interferência de um velho que tem sempre razão...
E: O caso do telemóvel que envolveu uma aluna e uma professora da Escola Secundária Carolina Michaëlis, trouxe para a ribalta o problema da indisciplina e da violência nas escolas. Concorda com o desfecho final do caso (com a transferência dos dois alunos envolvidos para outra escola)?
JP: Se eu escrevo por tudo e por nada, por que razão ainda não terei escrito uma linha sequer sobre esse incidente? Porque já escrevi, há vinte, há trinta anos. Aquilo que aconteceu nessa escola é a ponta de um icebergue, o lado visível de um drama mais profundo. Lamento o sucedido e lamento o desfecho. A transferência dos dois alunos nada resolve.
E: Como explica o número crescente de casos de indisciplina e violência nas salas de aula? A escola pode ser um espelho da sociedade?
JP: A indisciplina é a filha dilecta do autoritarismo e da permissividade. A violência vivida em muitas salas de aula é mais um sintoma da degradação da instituição escola. A autoridade está ausente e os professores parecem candidatos a martírios. Parecem não compreender a permeabilidade da escola aos problemas sociais e o sem-sentido de uma escola que os reproduz e agudiza. Parafraseando o Eça, muitas escolas são sítios mal frequentados, onde a educação está ausente e a instrução já raramente acontece.
E: A avaliação dos professores tem estado no centro de grande contestação e polémica. Concorda com o modelo proposto pelo Ministério da Educação?
JP: Não quero fazer coro com a maioria, mas só poderei estar em desacordo.
Não me alongarei na resposta, nem exporei o ridículo da proposta. Direi somente que, também na Ponte, a "avaliação" proposta pelo ME não faz sentido. É nefasta uma avaliação que hierarquiza e divide (ainda mais) os professores.
E: E com a política educativa do actual executivo?
JP: Existirá uma "política educativa"? Incomoda-me ver pessoas que, no passado, considerava decentes, envolvidas agora numa tragicomédia sem fim. No (des)governo da educação, decepcionam-me. Sinto náuseas, quando os vejo proteger políticos que muito têm prejudicado a Ponte, só porque são barões locais do seu partido.
Sobrevivi a dezenas de ministérios e mantenho o que disse, há mais de vinte anos, porque o tempo me deu razão: a medida de política educativa de maior impacto seria a extinção do Ministério da Educação. As escolas passariam bem sem esse monstro burocrático e de cara manutenção.
E: Que balanço faz do seu percurso até ao momento actual? Que memórias ficam passados estes anos todos?
JP: Vou definindo grandes metas e dando pequenos passos, solidariamente acompanhando outros conspiradores. Na educação, está tudo por fazer. Não sobra tempo para viver de memórias.
E: Por último, e para terminar, tem planos para um futuro próximo? Ainda tem muitas metas para alcançar?
JP: Estou aposentado, mas não inactivo, não inútil. Vivo em permanente "conspiração" e, nos tempos mais próximos, envolver-me-ei em mais um projecto. Ajudarei alguns educadores a fundar aquilo a que, freirianamente, se pode chamar uma "cidade educativa".
Um dia, darei notícia do que vier a acontecer...