Bairros de Entre Quintas, do Cruzinho e de S. Vítor são exemplos do espírito comunitário herdado dos operários do passado
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Os dados conhecidos apontam para 1130 ilhas e 7654 casas repartidas pelas freguesias da cidade. A Rua de S. Vítor, no Bonfim, é a artéria com maior número de ilhas por metro quadrado. São locais de afectos: pelas pessoas e pelas memórias.
Um palmo de cimento separa as casas umas das outras. São quase todas minúsculas e habitadas, na sua maioria, por gente idosa. Que teima em ficar. Foi a única herança dos pais, é hoje a casa dos filhos e dos netos.
"Dantes, a gente repartia a nossa pobreza pelos vizinhos mais necessitados", recorda Conceição Fernandes, do Bairro de Entre Quintas, localizado junto da brazonada Casa Tait, ao Palácio de Cristal. Diante da roupa estendida a fazer lembrar um filme neorealista De Sicca, a moradora nem quer ouvir falar em mudar de sítio: "Esta ilha é a nossa maior riqueza. Os vizinhos fazem parte da família", responde diante da varanda debruada de margaridas de várias cores. "É o nosso jardim", diz.
No bairro do Cruzinho, ao Campo Alegre, feito de casas alinhadas ainda mora gente feliz. Já teve 47 habitações, hoje são 30, muitas delas a cair de podre. Causas? "O senhorio quer ver-se livre de nós. Não manda arranjar as casas e para ele tanto faz que entre água pelos telhados ou pelas paredes. Em dias de chuva ponho várias bacias na cozinha e no sótão. Vivo sem conforto", revolta-se Maria da Conceição Rodrigues, viúva, 78 anos. "Já tive de cortar a luz para evitar males maiores. A vistoria já cá veio, mas as promessas de casa decente foram sempre adiadas", diz, desconsolada.
A conversa estende-se a Maria Adelaide Mendes, 61 anos. "Nasci aqui e aqui espero viver ainda muitos anos. O bairro tem carácter, mas está muito degradado. Há muitas casas devolutas, em ruínas", confirma diante da janela decorada de flores, enquanto a irmã, Maria José Alves, recorda as brincadeiras de infância, a tranquilidade e o espírito do lugar onde toda a gente trata os vizinhos pelo seu nome. "É um bairro diferente e mantém ainda o perfume do passado", enaltece.
A Rua de S. Vítor ganha à légua o palmarés de ter mais ilhas por metro quadrado. Maria Luzia, 52 anos, divide a casa habitada há 46 pelas três filhas: Tânia, de 24, Patrícia, de 20 e Lucília, de 13. A cozinha é minúscula e a casa de banho fica no exterior. "Não temos banheira. Tomamos banho numa bacia", garante a mãe sob o olhar resignado de uma das filhas. "Gostava de fazer obras, mas não tenho dinheiro para mais. Não estica...", confessa.
Ao fundo da ilha, a rede de arame colocada no muro de pedras gastas pelo tempo deixa antever o Douro, mais as pontes de Maria Pia e de S. João. Fausto Leite nasceu e cresceu no Beco do Paço, ao Carregal ,e desloca-se a S. Vítor para acompanhar a mulher em cuidados pela mãe acamada. "Ainda existe convívio nas ilhas. Nos prédios a filosofia é outra", salienta Fausto.
No número 68 do outro lado da rua existe outro corropio de casas e Julieta Lima, 73 anos, passa os dias a "fazer companhia" à irmã cega. "É a minha cruz", resigna-se. "Não tenho vergonha de viver aqui", atira a vizinha do lado, Teresa Pereira, enquanto dá mimos ao neto.
Fora de portas a agitação é outra. A catraiada ensaia passes de bola e a música pimba distrai as atenções de quem circula. Depois da Revolução Industrial, as fábricas foram demolidas e deram lugar a condomínios. Mas as ilhas continuam a povoar a cidade.