6.1.13

Donos de Portugal – um documentário sobre os 100 anos de poder económico em Portugal



Donos de Portugal é um documentário de Jorge Costa sobre cem anos de poder económico.
 
 O filme retrata a proteção do Estado às famílias que dominaram a economia do país, as suas estratégias de conservação de poder e acumulação de riqueza. Mello, Champalimaud, Espírito Santo – as fortunas cruzam-se pelo casamento e integram-se na finança. Ameaçado pelo fim da ditadura, o seu poder reconstitui-se sob a democracia, a partir das privatizações e da promiscuidade com o poder político. Novos grupos económicos – Amorim, Sonae, Jerónimo Martins - afirmam-se sobre a mesma base.
 
No momento em que a crise desvenda todos os limites do modelo de desenvolvimento económico português, este filme apresenta os protagonistas e as grandes opções que nos trouxeram até aqui.
 
Produzido para a RTP 2 no âmbito do Instituto de História Contemporânea, o filme tem montagem de Edgar Feldman e locução de Fernando Alves. A estreia televisiva teve lugar na RTP2 a 25 de Abril de 2012.
 
Desde esse momento, o documentário está disponível na íntegra em www.donosdeportugal.net.
 
Donos de Portugal é baseado no livro homónimo de Jorge Costa, Cecília Honório, Luís Fazenda, Francisco Louçã e Fernando Rosas, publicado em 2010 pelas edições Afrontamento e com mais de 12 mil exemplares vendidos e que já foi referenciado neste blogue: http://pimentanegra.blogspot.pt/2010/10/os-donos-de-portugal-cem-anos-de-poder.html
 
 
Guião do documentário:

Mapa, jornal de informação crítica - saiu já o nº1


Mais Papel Para a Fogueira

Podemos falar e escrever sobre a morte que emana da crise nas receitas da economia, nos lucros dos patrões, nos bancos e no consumo mas nada se compara à vida que resiste nas manifestações de rua, que entra pelas ocupações de edifícios abandonados, que se desbloqueia nas greves das fábricas e nos portos, que se planta nas hortas urbanas e que se incendeia nas fogueiras em S.Bento. É aqui que nasce também um jornal de informação crítica para ler, partilhar, oferecer ou largar nos transportes públicos, nas escolas, nas feiras, nas manifestações, na cidade ou no campo. Um projecto de comunicação que nasce em tempos de crise

http://www.jornalcritico.info/
 


Editorial do jornal MAPA nº1
Um MAPA deve estar sempre à mão
Partir de um ponto para chegar a outro. Parar. Continuar caminho para outro ponto e partir novamente para chegar a outro ponto. Na vida, como nas viagens, é o que liga as coisas que nos faz continuar o movimento. Os mapas podem-se desenhar assim: descobrindo linhas e percursos, fazendo ligações entre pontos, ultrapassando os limites do papel, marcando notas e referências, fazendo ligações e transmitindo informações. Em suma, comunicando. O que faz a cartografia interessante é a possibilidade de mapear coisas que estão para lá da geografia e do território e, por isso, quando se desenha um mapa, esperamos encontrar outro mapa e outro mapa e…
Observar o terreno
A democracia em Portugal deixou cair a sua aparência de estabilidade, liberdade e direitos garantidos à medida que uma crise de natureza económica e social ganha terreno no nosso dia-a-dia. A esperança que possa ser trazida pelas acções que muitos têm tomado ao ar livre para a confrontar não nos deve desviar olhar dos sinais quotidianos. Que continuam a ser a austeridade e a força musculada de um Estado, de um governo e de uma organização social que partem, sem qualquer tipo de reticência, para a aprovação de leis mais rígidas, cortes salariais e despedimentos, aumentando o preço de tudo o que puder e colocando polícias armados até aos dentes em cada esquina. Sinais de que a sociedade falhou na sua capacidade de se manter de pé e continuar a prometer a paz, o pão, a saúde, habitação e a educação. Se existia, ainda, uma crença na capacidade dos políticos de todas as cores e dos parceiros sociais em solucionar os nossos problemas mais concretos, esta começa a ser seriamente posta em causa, uma vez que é difícil confiar em quem nos oferece miséria. As longas explicações de técnicos e políticos em conferências de imprensa e os números por estes vomitados em relatórios forjados não lhes dão mais legitimidade. Parece até que estão a gozar, a fazer troça e que isso lhes dá um certo prazer.
Só quando percebemos que as medidas e transformações a que assistimos não são apenas de natureza económica nem apenas por causa da crise é que percebemos que é o modelo económico, social e cultural a que chamamos capitalismo que se está a transformar e a renovar para que se possa manter durante muito mais tempo. De facto, não é só a fruta que fica mais cara mas também o seu sabor que fica menos apurado, não é só o trabalho que escasseia mas aquele que ainda está disponível mais se parece com escravatura, não é apenas o preço do combustível que aumenta a cada dia mas é também o petróleo que escasseia nas reservas geológicas. O grande processo de auto-cura que a sociedade, em Portugal e no mundo, parece estar a atravessar vai resultar numa outra coisa. Vai dar lugar a uma sociedade que, funcionando de uma forma muito mais eficiente, lucra da mesma maneira com a nossa necessidade de comer e respirar. É, portanto, esse o modelo que desenvolve «novas dinâmicas» de mercado para vender o que resta da pouca fruta de baixa qualidade, que encontra formas mais democráticas de se ser escravo e vai gerir, a partir de avançados modelos, os recursos que ainda se encontram disponíveis.
É o desenvolvimento da nossa capacidade de duvidar e agir que pode abrir possibilidades para desafiar o controlo que o Estado, os bancos ou as grandes empresas têm sobre o nosso pão, a nossa saúde, a nossa habitação, a nossa educação e a nossa informação. São as acções que tomamos que podem fazer com que o ar que respiramos e a comida que comemos não sejam coisas para vender. Mas existem várias formas para essas acções e resistir e confrontar a violência do capitalismo é tão importante como inventar formas de nos libertarmos dele.
É por isso que bloquear os acessos a uma fábrica durante uma greve por mais salários é tão importante como colher vegetais de hortas comunitárias. É por isso que a mensagem contida num incêndio de um pórtico de autoestrada num contexto de luta contra as SCUT é tão importante como a ocupação de uma escola abandonada num Bairro. E é por tudo isso que comunicar é tão importante.
Olhar para o papel
Se existem , em Portugal, quase 3000 publicações periódicas porquê colocar mais um jornal em circulação? A resposta está contida não na quantidade mas no tipo e na qualidade dos jornais de massas e canais de informação que se avistam no terreno. O seu principal objectivo não é a informação ou a educação mas sim a criação de uma cultura de medo e a fabricação de opiniões.
O processo é simples na descrição, complexo nas consequências. A partir da divulgação de notícias e informações espectaculares, exageradas e, em muitos casos, a divulgação de mentiras, os vários meios de informação desejam criar o medo de certos sujeitos (grupos sociais, fenómenos e pessoas). Num primeiro momento, abrem o caminho para que deixemos de pensar e passemos a ter todos a mesma opinião, a mesma visão sobre os mesmos assuntos e, inevitavelmente, cheguemos às mesmas conclusões. Noutras alturas, a divulgação de notícias e informações cumpre um objectivo determinado, ou seja, está subordinada aos interesses políticos e económicos do canal informativo ou do jornal onde é publicada. Bastaria, para tanto, notar que os grandes jornais, televisões e agências de noticias não só pertencem a grandes e conhecidos grupos económicos como são a expressão dos partidos políticos das suas áreas de influência, de juízes e polícias. Descrever esta dinâmica é impossível no espaço de duas páginas mas necessário ao longo do mapa. É mais importante ter consciência de que o pensamento livre e crítico, natural dos seres humanos, parece ser um tremendo inimigo das agências de notícias, dos jornais sensacionalistas, dos panfletos publicitários e dos grandes opinion makers da nossa praça.
Marcar pontos e traçar linhas
As 16 páginas que aqui estão foram pensadas enquanto projecto de comunicação. Sob a forma de jornal, publicam-se e difundem-se notícias, reportagens, entrevistas, análises, fotografias e ilustrações que sejam um contributo para ultrapassar o tal sistema económico e social baseado no dinheiro, no poder, na dominação e na exploração. Em suma, tratam-se elementos para a acção e o pensamento crítico.
Para isso, pratica-se a denuncia nas suas páginas. A partir do desenvolvimento de um espaço de informação que contenha as notícias da actualidade local escondida, os episódios perdidos, as versões censuradas e as correspondências não publicadas põem-se a nu os crimes e as contradições da actualidade.
 
Essas contradições estão contidas nas ocupações e nos incêndios referidos em cima mas também em inúmeras outras situações, lutas e projectos. Estão nas assembleias populares, no bloqueio dos portos pelos trabalhadores da estiva, nas denúncias que reclusos fazem contra o sistema prisional e nos insultos que recebem os políticos onde quer que tenham a vergonha de aparecer. Também aqui precisamos de um mapa.
Para além disso trata-se de traçar linhas, fazer ligações e apontar o que há de comum entre pontos aparentemente desconexos. A possibilidade de comunicação parece surgir de um balancear entre o que potenciamos e o que denunciamos.
Assim, um MAPA pode ser muita coisa: uma ferramenta, um meio de informação, um projecto de comunicação e, finalmente, um jornal.
 
Desenhar mapas
Este é o número inaugural. É, em muitos aspectos, experimental e tem como objectivo dar-se a conhecer para extrair dos seus leitores reacções e comentários que se transformem em combustível para a viajem que queremos fazer ao longo do MAPA.
O jornalismo que queremos praticar não é uma tarefa de profissionais e as fontes que consideramos são várias e diversas. Dos blogues locais às redes sociais, das entrevistas a desconhecidos na rua às declarações «sacadas» da Internet, das investigações no terreno às conversas com «especialistas» tudo são possibilidades para a informação crítica. Todos somos jornalistas quando escrevemos sobre uma situação no nosso bairro, fotografamos a nossa rua ou informamos sobre uma luta a ter lugar na nossa cidade.
Para além disto, a experiência diz-nos que a comunicação admite formas que ultrapassam a palavra, o texto, a imagem e o próprio meio em que a desenvolvemos. A comunicação surge em vários formatos e é impossível abranger ou sequer pensar que se consegue abranger a comunicação no seu todo. Uma mensagem escrita numa parede pode conter mais informação importante que um artigo publicado num jornal. Um rol de acontecimentos a terem lugar a uma rapidez cada vez maior fazem da prática jornalística e da actividade informativa um desafio. Da mesma forma, uma complexa rede de relações na sociedade leva-nos a não assumir, nem a isso nos propormos, o relato e cobertura total dos assuntos que abordamos. Teremos, sem dúvida, uma visão, uma interpretação e uma forma de olhar, mas não teremos, de forma alguma, a verdade. A nossa única verdade é a preferência que temos pelos gritos na rua em detrimento das palavras dos gabinetes, as rádios e os jornais locais em vez dos canais centrais da informação, as letras das músicas em vez dos pareceres dos analistas e a escrita a partir do terreno em vez de ficar só a olhar.
Para além disto o MAPA sai para as ruas em papel e estamos conscientes dos limites, mas também das possibilidades, de um jornal impresso em Portugal, no séc XXI. Possui tempo médio de vida e prazo de validade, pode vir rasgado ou sem cor mas pode ser lido em qualquer lado. É, aliás, por isso que é em papel antes de ser uma página na Internet. Para ser lido no autocarro e no café, na biblioteca e na sala de espera, para ser levado para a rua e partilhado entre todos. Bem enrolado pode servir de megafone, bem dobrado podem-se fazer aviões com as suas páginas para chegar a outras latitudes mas, em todos os casos, um MAPA deve estar sempre à mão.

Sobre os Tempos - texto de Gonçalo M. Tavares sobre os tempos que aí vêm


  Se pensarmos nos diversos valores morais e éticos – bem, bondade, lealdade, altruísmo, honestidade, solidariedade, liberdade, verdade, justiça, sabedoria, coragem, etc. verificaremos que, se no meio deles estiver o funcionamento de uma máquina, estes valores tornam-se pouco consequentes. É esta anulação moral por parte das máquinas. A tecnologia, no seu conjunto, funciona como uma máquina de terraplenagem moral. (…) Não te posso salvar porque não sei mexer na máquina – eis a frase que, em 2013, será muitas vezes escutada.”
Gonçalo M. Tavares
 
Um texto luminoso de Gonçalo M. Tavares nestes primeiros dias de 2013, publicado no jornal Público (3/1/2013) sobre os valores, os tempos, os homens e as máquinas. De leitura obrigatória.
 
 
 

“Sobre os Tempos”, por Gonçalo M. Tavares
 
 texto publicado no jornal Público de  3 de Janeiro de 2013
 
1 – Saída de emergência
“Deves é mudar de alma, não de clima. (…) Andares de um lado para o outro não te ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria companhia.” Séneca
Sempre que, antes da descolagem de um avião, se escuta: Preste atenção que a saída de emergência pode estar nas suas costas, sentimos que se está a falar não das medidas de segurança no caso de um acidente, mas da existência no geral. Existência individual e da sociedade.
A europa embarcou há muitos anos e, em 2013, continuarão a ouvir os conselhos de segurança: Preste atenção que a saída de emergência pode estar nas suas costas. E há quem aponte outras saídas.
Numa variação de célebres paradoxos, poderemos dizer que um continente ou um homem que estejam equidistantes de duas saídas de emergência, em caso de acidente correm o risco de morrer, imóveis na hesitação. E com dezenas de saídas de emergência a igual distância, um homem ou um continente – além de não se salvarem – ficarão loucos.
2 – Versos
Os versos de Hölderlin:
“Dificilmente abandona / o seu lugar aquele que mora perto da origem.”
E o comentário de Heiddeger a estes versos:
“De modo inverso, quem facilmente abandonar o lugar comprova que não tem origem e se limita a estar presente como que por acaso.”
3 – Velocidade
A síntese do homem contemporâneo, do homem que pode decidir e agir – é a do Homem com Pressa Dentro do Elevador.
A angústia de ter pressa e músculos e energia capazes de acelerar, mas dentro de um Recipiente que tem uma velocidade predeterminada e que não altera a sua velocidade.
A sensação é a de que entre a sociedade e cada um dos elementos que a constituem se começa a cimentar uma dessincronização essencial das velocidades. O Recipiente com motor onde nos colocaram nunca tem velocidade de que precisamos. Mas já não somos nós que fazemos juízos sobre o Recipiente, é o Elevador que nos julga. É o mecanismo do ascensor que diz ao Homem com Pressa Dentro de um Elevador: estás com pressa a mais, acalma-te.
Estamos sempre ou demasiado rápidos ou demasiado lentos. A nossa velocidade torna-se culpada. A sociedade parece exigir sempre. Em qualquer circunstância, uma outra velocidade. És culpado porque não acertas-te na velocidade.
4 – Fundamentalismos
Gosto particularmente do que diz uma personagem de Hans Christian Andersen: “Pediram-lhe para rezar, mas ele só se lembrava da tabuada.”
Dois tipos de fundamentalistas:
1. O fundamentalista da lógica pura: pediram-me bondade, mas eu só me lembrava da tabuada; pediram- me sabedoria, mas eu só me lembrava da tabuada, etc.
2. O fundamentalista religioso: Pediram-lhe a tabuada, mas ele só se lembrava de rezar.
Há muito que a Europa se instalou na tabuada. Por cima do mapa do Continente poderíamos escrever simbolicamente
2×3=6
ou a tabuada inteira, mas cometeríamos um sacrilégio se escrevêssemos uma oração, por exemplo, o Pai nosso que estais no Céu, Santificado seja o Vosso nome.
O sacrilégio mudou de objecto.
Na Europa, em 2013, o discurso religioso que conteste uma adição ou uma multiplicação será apedrejado.
O cineasta Herzog lembra que, num dos seus filmes rodado em África, elementos da tribo massai não quiseram entrar num posto médico móvel porque este estava elevado em relação ao chão. “Por razões misteriosas, não se atrevem a subir os degraus. Tentam entrar, hesitam e recuam. Só no final é que alguns massais conseguem ultrapassar esse obstáculo invisível e subir os três degraus que conduzem ao seu interior.”
A Europa, de uma forma geral, está assim. Não sobe os degraus; tem medo das alturas, da pequena altitude que esses pequenos degraus inauguram. Com os pés no chão ou em queda (sem chão por baixo): eis como se sente segura a Europa.
“O rapaz não ousa olhar-se no escuro, / mas sabe bem que deve afogar-se no sol / e habituar-se aos olhares do céu, para se fazer um homem” Cesare Pavese
5 – 5 não é 5 não é 5 não é 5
A objectividade pura tem uma potência violenta. 5 é 5 é 5, eis o indiscutível. Dizer que 6 não é maior que 5, em 2013, na europa, seria o mesmo que dizer – na Europa medieval – que Deus não existia.
Quando alguém diz: isto é objectivo, o que está na verdade a dizer é que não tem discussão, isto é verdade, tu não tens nenhum contra-argumento contra isto. Alguém que se opõe ao que é objectivo só pode ter, assim uma cabeça débil. Quando se diz isto é objectivo terminar-se a conversa, o outro não pode contestar.
Quando se diz isto é subjectivo, afirma-se apenas que isto é um ponto de vista; permite-se, pois, que o outro dê um passo em frente, contra-argumente.
Numa entrevista a um jornal francês, Godard disse uma vez esta frase terrível: “A objectividade? É cinco minutos para Hitler e cinco minutos para os Judeus.”
6 – Moral da Máquina – ou o oitavo pecado.
“E as crianças que poderiam ter mudado tudo / jogam entre pedras e ruínas. / E não querem mudar nada.” Yehuda Amijai
A moral europeia é, em parte, a moral da máquina. É bom aquilo que funciona. É bom, não apenas em termos de eficácia, mas em termos morais.
A noção de pecado socializou-se e entrou na esfera da tecnologia. Alguém que não saiba calcular ou que não domine a última versão do Windows comete um pecado. O pecado maior é a ineficácia. Alguém que não funciona bem torna-se um pecador.
Os pecados capitais são agora oito: gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça, vaidade e incompetência.
O incompetente não entrará no reino da Terra.
7 – Salvação
A discussão é sempre esta: prefere ser operado por um médico competente ou pelo médico de ‘bom coração’?
Se escolher a pessoa que mais o ama para o operar cometerá provavelmente um erro. A salvação já não vem com a entrada do padre na casa do doente, mas com a do médico – e essa transição radical no século XX, analisada por muitos, ainda está em movimento. A salvação que classicamente teve uma abordagem religiosa ou moral tem desde há muito, na Europa, um entendimento clínico.
“Aqui, onde as ruínas querem voltar a ser / uma casa (…)” Yehuda Amijai
8 – Coragem e bondade
A bondade salva cada vez menos, e isso assusta. No mundo de paisagem técnica em que os elementos naturais estão escondidos – quase já não há montanha, nem terra – cada vez mais, salva quem sabe onde ligar ou desligar a electricidade; aquele que sabe mexer nos comandos da casa das máquinas.
E nesse aspecto seria interessante fazer a análise do homem europeu que salva outro em 2012. Se, em séculos passados, a coragem, acima do resto, seria uma das qualidades essenciais de quem salva, hoje tal qualidade é quase dispensável. Que poderá fazer o homem mais corajoso do mundo diante de alguém que corre perigo no meio de uma cidade moderna? A coragem perdeu eficácia – os seus efeitos eram bem mais evidentes quando o que estava diante de si para vencer era uma força natural –animal, água, fogo, outros homens, etc.
Hoje a coragem te, primeiro, de tirar um curso de especialização técnica. Se não o fizer será coragem, sim, sempre, mas inconsequente. Diante de um conjunto de pessoas fechadas num elevador parado por avaria, o homem mais corajoso do mundo irá telefonar á assistência técnica – eis o sem-saída em que nos colocámos.
9 – Valores morais – e o que está no meio
Se pensarmos nos diversos valores morais e éticos – bem, bondade, lealdade, altruísmo, honestidade, solidariedade, liberdade, verdade, justiça, sabedoria, coragem, etc. verificaremos que, se no meio deles estiver o funcionamento de uma máquina, estes valores tornam-se pouco consequentes. É esta anulação moral por parte das máquinas. A tecnologia, no seu conjunto, funciona como uma máquina de terraplenagem moral.
Estes valores morais clássicos, há que insistir, foram pensados na relação de um homem com um outro homem ou conjunto de homens, uma relação imediata. O que temos em 2013 nas cidades europeias é um outro mundo. São raras as relações imediatas, directas, corpo a corpo e entre homens. No meio, mesmo que muitas vezes não nos apercebamos disso, estão máquinas. A lealdade entre dois homens só se poderá manifestar na cidade europeia do século XXI se, pelo menos num deles, existir um conjunto de habilitações técnicas mínimas.
Não te posso salvar porque não sei mexer na máquina – eis a frase que, em 2013, será muitas vezes escutada.
“Há muitos metros entre um animal que voa / e a escada que desço para me sentar no chão” Daniel Faria
10 – Palavras más
Sem nos apercebermos, de uma forma subtil, o vocabulário que utilizamos de forma comum vai instalando este novo mundo. Peguemos num exemplo: a palavra funcionário. Esta palavra tem uma violência contida de que não nos apercebemos. Funcionário é aquele que exerce um conjunto de funções – e função sempre foi uma parte que está contida em algo mais amplo e importante. Reduzir uma pessoa a um conjunto de funções é violentá-la.
Pensemos, por exemplo, na inócua pergunta: ele funciona bem? De facto, podemos perguntar se o João, a Maria, ou o elevador funcionam bem. E quando podemos fazer a mesma pergunta acerca de um homem ou de uma máquina é porque algo, de facto, lá atrás se desarranjou.
E é também por isso que muitas pessoas, aqui e ali, começam a ter avarias.
11 – A apatia
O que me parece muito claro é que a máquina é o ser apático por excelência. (A apatia, esse modo de uma coisa se colocar à mesma distância de todas as outras coisas, de não ter julgamentos estéticos, éticos, etc.)
Uma fotocopiadora tira fotocópias de um documento neutro e a seguir de uma sentença de morte, com a mesma maquinal indiferença – à mesma velocidade e qualidade de impressão. Nunca pára o seu movimento por questões morais, só por avaria. A avaria, aliás, é muitas vezes a origem de uma tragédia, mas cada vez mais, também uma das últimas vias de salvação. (A cada dia, a cada ano, a frase – Felizmente, avariou – ou a estranha e herética frase – Graças a Deus, avariou – se tornarão menos aburdas.)
12 – Perguntas humanas
Não podemos fazer perguntas sobre julgamentos estéticos ou filosóficos a um animal ou a uma máquina e é também por isso que as artes, a cultura e a filosofia, apesar de tudo – apesar de tudo – são importantes. Também não podemos fazer perguntas éticas ou sobre ‘estados de espírito’ senão a humanos: não perguntamos a uma máquina fotográfica se ela ficou entusiasmada quando fotografou aquela paisagem.
Seria interessante pensar que continuamos humanos precisamente porque há ainda perguntas que se fazem às pessoas que não podem ser feitas aos animais ou às máquinas. Por exemplo: gostas? Era bonito?
Outro exemplo: de uma pergunta naturalmente humana, a de Brodski: “Mas porque está ausente da Constituição a palavra ‘chuva’?”
13 – O que aí vem – pés, olhos
“Bem aventurado o que pressentiu / quando a manhã começou: / não vai ser diferente da noite.” Adélia Prado
Podemos ter os pés num terreno feio e os olhos virados para algo belo. Ou podemos, situação inversa: ter os pés num terreno belo e os olhos fixados em algo feio. Na primeira situação, teremos a sensação de que estamos num sítio belo. E na segunda situação teremos a sensação de estar num sítio feio. O que vemos, lá à frente, torna-se sempre o mais relevante.
Se estamos com os pés num sítio feio e os olhos fixos num sítio feio, mas temos uma bela imagem na cabeça, estamos num sítio belo – eis o que dirá, em contraponto a tudo isto, o bom e perigoso, o perigoso e bom velho utópico.
“Depois encontrei o meu pai, que me fez uma festa / e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria (…) Adélia Prado»