6.5.05

Os filósofos cínicos foram os primeiros dissidentes libertários



Durante o Império de Alexandre, o Grande a cultura e a civilização da antiga Grécia propagaram-se um pouco por todo o lado. Após a sua morte o Império que construiu divide-se em fracções antagónicas e profundos conflitos políticos.
Aparecem então 4 novas escolas ( ou correntes) de filosofia: os cínicos, os cépticos, os epicuristas e os estóicos. Todas elas se preocupam com a forma como um homem civilizado tem que viver num mundo inseguro, instável e perigoso.
Os primeiros a aparecerem foram os cínicos, que hoje seriam considerados os dissidentes libertários, os desertores do sistema social vigente.
Um dos nomes dos filósofos cínicos foi Antístenes que abandona a cidade e decide seguir uma vida básica e simples. Começou então a vestir-se como um operário, a viver por entre os pobres e proclamou que não queria governo, nem propriedade privada, nem casamento, nem uma religião estabelecida.
Antístenes teve um discípulo que se tornou célebre, de nome Diógenes (404-323 a.C.). , Diógenes escarnecia agressivamente de todas as convenções e chocava deliberadamente as pessoas quer por andar nu ou por vestir andrajos, quer por viver num túmulo, quer ainda por cometer actos flagrantes de indecência pública.
Diógenes vivia como um cão, e é por esta razão que lhe alcunharam de cínico ( da palavra grega Kynikos, que significa «como um cão». Note-se que a palavra cínico tem hoje um significado diferente do original

Diógenes não era, pois, um cínico no sentido actual da palavra. Bem pelo contrário, possuía uma crença positiva na virtude. A sua convicção básica era que a diferença entre valores verdadeiros e valores falsos era a única distinção que era importante. Todas as outras distinções ( as convenções sociais, assim como a distinção entre o que é meu e o que é teu, entre o nu e o despido, entre o cru e o cozido) eram, segundo ele, um perfeito disparate.
Diógenes desprezava igualmente a distinção entre Gregos e Estrangeiros, por isso quando lhe perguntavam qual era o seu país, respondia: «Eu sou um cidadão do mundo», e ao dizer inventou a única palavra grega que exprimia o seu pensamento – o cosmopolitismo.

Existem muitas histórias acerca de Diógenes. Uma das mais famosas é quando Alexandre, o Grande, preocupado com a sua pobreza, foi visitá-lo no seu buraco imundo e ficou parado à entrada. Vira-se para Diógenes e pergunta-lhe se podia fazer algo por ele, ao que o filósofo responder:«Sim, desviai-vos! Estais a tapar-me o Sol!».

A ovelha ranhosa




Havia uma terra onde eram todos ladrões.
À noite todos os habitantes saíam, com gazuas e lanternas, e iam a casa de um vizinho. Tornavam a casa de madrugada, carregados, e davam com a casa assaltada.
E assim todos viviam em concórdia e sem dano, porque um roubava o outro, e este um outro ainda e assim por diante, até que se chegava a um último que roubava o primeiro. O comércio naquela terra só se praticava sob a forma de vigarice tanto por parte de quem vendia como por parte de quem comprava. O governo era um bando de criminosos agindo contra os súbditos, e os súbditos por sua vez só se preocupavam em defraudar o governo. Assim a vida prosseguia sem preocupações, e não havia nem ricos nem pobres.
Ora, não se sabe como, aconteceu que na terra se veio instalar um homem honesto. À noite, em vez de sair com o saco e a lanterna, ficava em casa a fumar e a ler romances.
Vinham os ladrões, viam a luz acesa e não entravam.
Este facto durou pouco tempo: depois tiveram de fazer-lhe compreender que se ele queria viver sem fazer nada, isso não era razão para não deixar fazer aos outros. Cada noite que ele passava em casa, era uma família que não comia no dia seguinte.
A razões destas o homem honesto não podia opor-se. Começou também a sair à noite, mas não ia roubar.Não havia nada a fazer: era mesmo honesto. Ia até à ponte e ficava a ver a água passar por baixo. Tornava a casa, e encontrava-a roubada.
Em menos de uma semana o homem honesto viu-se sem tostão, sem comer, e com a casa vazia.Mas até aqui nada de mal, porque era culpa dele; o problema é que deste seu modo de vida nascia toda uma trapalhada. Porque ele deixava roubar tudo e entretanto não roubava nada a ninguém; assim havia sempre alguém que ao chegar a casa de madrugada a encontrava intacta: a casa que ele deveria ter roubado. O facto é que ao fim de uns tempos os que não eram roubados ficaram mais ricos que os outros e já não queriam ir roubar. E por outro lado, os que vinham roubar a casa do homem honesto davam com ela sempre vazia; e assim iam ficando pobres.
Entretanto, os que ficaram ricos ganharam também o hábito de irem à noite à ponte, ver a água passar por baixo. Isto aumentou a confusão, porque houve muitos outros que ficaram ricos e muitos outros que ficaram pobres.
Ora os ricos viram que, indo à noite à ponte, ao fim de uns tempos ficariam pobres. E pensaram: - Vamos pagar aos pobres para que vão roubar por nossa conta. – Fizeram-se os contratos, estabeleceram-se os salários e as percentagens: naturalmente continuavam sempre a ser ladrões, e tentavam enganar-se uns aos outros. Mas como sempre sucede, os ricos ficavam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.
Havia ricos tão ricos que já não precisavam de roubar e de mandar roubar para continuarem a ser ricos. Mas se deixassem de roubar ficariam pobres porque os pobres os roubavam. Então pagaram aos mais pobres dos pobres para que defendessem as suas coisas dos outros pobres, e assim instituíam a polícia, e construíram as prisões.
Deste modo, logo poucos anos após o acontecimento do homem honesto, já não se falava de roubar nem de ser roubado mas só de ricos ou de pobres; no entanto continuavam a ser todos ladrões.
Honesto só houve esse tal, que morreu de repente, de fome.



Italo Calvino

(Texto inserido no livro «A Memória do Mundo», de Italo Calvino, editado em 1995 pela Teorema, segundo a tradução para português de José Colaço Barreiro, a partir do original «Prima che tu dica “Pronto”»)

Italo Calvino ( Cuba, 1923 – Siena, 1985) estudou em San Remo, tendo pertencido à Resistência contra o fascismo e a ocupação nazi. Aderiu ao Partido Comunista para o abandonar em 1957, após a insurreição húngara.


Outros livros: Os Nossos Antepassados ( uma trilogia do qual fazem parte O Visconde cortado ao meio, O Barão Trepador, O Cavaleiro Inexistente), Palomar, Sob o Sol Jaguar, Seis Propostas para o próximo Milénio, As Cidades Invisíveis, Cosmicómicas, Marcovaldo, Porquê ler os clássicos.