7.7.09

A «gestão» de Rui Rio e a privatização do pavilhão Rosa Mota






Como um zombie a olhar o palácio

Deixemos de chutar para canto o que os nossos olhos vêem: o poder municipal não está ao serviço dos munícipes e de uma ideia de serviço dos interesses sociais da comunidade, mas está ao serviço do mercantilismo. Desse princípio orientador, autarcas e políticos, extraem a sua verdade: quando advogam que o mercantilismo está ao serviço da comunidade e do serviço público é quando o serviço público e a comunidade passam a estar ao serviço do mercantilismo.

Ou seja, não fora isso uma desmesurada mentira, a ideologia actual do capitalismo avançado postula que a liberdade e a realização do sujeito e a sua vida comunitária é determinada pelos valores do Mercado e pela sagrada virtude da Economia. Por outras palavras, o livre uso da vida e o espaço social onde ela se expressa, com a natureza e com outros seres humanos, depende de uma relação de troca mercantil, desta ideia sufocante e maldita da hiper-mercadoria ter saltado do plano da História, das ideologias, para o plano de um processo inexorável, sem origem nem fim, sem fronteiras nem horizonte.

Neste contexto de embuste ideológico, iniquidade social e cinismo político, vamos pedir ao poder municipal que tenha em conta a lei e o PDM? O que é que podemos querer negociar com uma elite política quando para nós a vida humana e social, a sua liberdade e realização, não é negociável porque não é um negócio?

O que se pode obter ainda de quem vende o património de todos confundindo a gestão pública com a liquidação lucrativa, esvaziando de sentido a substância humana desse património, depois de desde há décadas terem eles próprios feito depender a sua humanidade de valores monetários, do dogma do mercado e do fetiche da mercadoria?

O que temos ouvido da boca de autarcas ou de governantes é aquilo que ouvimos da boca dos altos administradores de multi-nacionais ou de representantes das confederações do patronato e da finança: todo o serviço público deve desaparecer assim como desaparece a sociedade para se entronizar o indivíduo, esse ente superiormente libertado pela sociedade de consumo para nela se acoitar e ingurgitar a sua cota parte do reino da insustentabilidade, do saque e da depredação de recursos, a troco de uma passividade face à insânia da exploração humana global. Falácia da cultura neo-yuppie que esconde no discurso do individualismo não só a cegueira do egoísmo e da ganância, como o facto de ser a própria noção e possibilidade do indivíduo que desaparecem na economia de mercado actual – quantos resistem aos códigos e ao controlo dessa ideologia das relações públicas globais? Quem não afoga os seus desejos, sonhos, pensamentos, críticas, disposições, numa sociedade que substitui o rosto humano pelo rosto da mercadoria? Quantos ganham a sua individuação na propaganda do individualismo vendida a torto e a direito?

…não fora a narrativa do individualismo o canto da sereia ditado às massas e em coro pelos trovadores da esperança cínica, de Sócrates a Rui Rio, de Valentim Loureiro a George Obama, de Jardim Gonçalves a Dias Loureiro…

É tempo de nos libertarmos da agonia de uma resposta que venha do sistema. Negociar com políticos que insultam quotidianamente a inteligência e a sensibilidade de seres humanos é absorver toda a negatividade – vil e pesada – gerada pela degradação humana desse sistema. De uma vez por todas, uma só proposta vinda dos interesses políticos instalados (ou um discurso na televisão) tende a fazer incomensuravelmente pior à democracia do que mil gestos infantis de um ministro em plena Assembleia da República.

Não estamos aqui para obter uma resposta do poder municipal. Todas as respostas do poder autárquico em geral, como do governativo, já foram dadas: o capital, o interesse económico e a protecção desses interesses (e da elite restrita do círculo de interesses), excluem a possibilidade do diálogo – e o diálogo é a reversibilidade plena e democrática de um poder – e a crítica desses interesses. E a legitimação dessa democracia que começa e que se encerra numa urna de quatro em quatro anos é uma miserável e funérea ideia do que poderá ser uma democracia.

Estamos aqui para obter uma resposta das pessoas. De todos aqueles que vivem nesse misto de sonolência, impotência e humilhação causados pela realidade política do país. E a realidade política do país é, grosso-modo, dominada pura e simplesmente por uma ideia economicista, que tudo reduz à circulação de mercadorias e ao proveito de uma elite. E as pessoas que se sentem enojadas por esta grande ideia de estarem sempre perto de se tornarem uma mercadoria útil ou inepta do sistema, uma estatística da base de dados de um sistema bancário, uma vítima a mais de um sistema público de saúde, um precário a tempo inteiro e indefinido, não podem responder com o silêncio e (só) a cruz do seu voto. Não podem ceder à conquista mais sofisticada do capitalismo Ocidental, essa miscelânea entre o sistema representativo e a sociedade de consumo que desenraizou de cada cidadão a sua possibilidade e potência de intervenção, de participação e de união no espaço público.

Que resposta se pode obter de um homem que não representa os interesses da cidadania e do humano, mas os próprios interesses do sistema?

Será necessário ter como referente do estado doentio da democracia homens como Berlusconi, Mesquita Machado ou Isaltino Morais, para ilibar da nossa mais firme censura quem orienta a sua conduta pessoal e política segundo os interesses da máquina financeira, da avidez das multi-nacionais e que não equaciona nenhuma manifestação da vida humana a não ser se ela for sancionada pelo altar do lucro e pela hóstia do mercado?

E que resposta podemos obter daqueles que se não revêem nesse tipo de exemplos? O bocejo, o shopping, o cansaço, a psicanálise de café? Ou estar onde estão aqueles que recusam a preeminência do dinheiro e a ignominia de uma sociedade que converte cada humano no homem-mercadoria?

Sabemos todos que nenhum argumento racional subsiste para acreditar no Capitalismo actual como sistema político e económico – como ideologia. Que para essa ideia ser justa, democrática, socializante, era preciso acreditar que a felicidade humana dependesse desse sistema bárbaro de consumo e desperdício per capita de energia dos recursos da terra e da energia humana. Era preciso acreditar na exploração contínua do homem, do outro, nesse esclavagismo legal de estimação de uma minoria (minoria alargada que pode ir de uma multi-nacional ao café da esquina).

O território desta luta não é por isso o presidente da Câmara do Porto, mas as pessoas que não querem viver sob a mentira do lucro, que querem libertar toda a sua possibilidade de dizer que a sua vida passa também por um gesto de união solidária sem competições, sem estruturas partidárias, sem visar lucros, juros, contas, dívidas ou proveitos, mas apenas contar com a riqueza do humano.

Que mais precisamos de ver para sairmos do nosso sono?


Os Vadios, 7 de Julho de 2009, Porto

Texto retirado de:
http://gatovadiolivraria.blogspot.com/

Imagem pescada de:
http://www.mruim.blogspot.com/

Quando Tróia era livre: petição pública contra a privatização de parcelas da península de Tróia, e a sua conversão em resort de luxo


Está a circular na Internet uma petição intitulada “Quando Tróia era livre” a contestar a privatização daquele espaço natural a favor de um poderoso grupo económico e a interdição do seu usufruto por parte da população.Fonte da noticia: blogue Contramestre


Petição Quando Tróia era livre


Para:

Presidente da Camara Municipal de Grândola


É com enorme desgosto que assisto a destruição de mais uma das belas paisagens do meu conselho de Grândola, estou a falar de Tróia é claro que deixou de ter aquelas belas praias selvagens para passar a ter betão.


Tróia foi servida de bandeja ao paradigma nacional dos negócios de lucro fácil e do capital intensivo, Belmiro de Azevedo. Pelo meio, a perspectiva de um Casino a fazer brilhar de cobiça os olhos do um autarca de Grândola a sonhar com o dinheiro que lhe permitirá acrescentar "obra" àquela que tem deixado implantar nas zonas dunares e agrícolas ao longo da costa alentejana... O facto de Tróia pertencer ao Concelho de Grândola não foi a única justificação para que o "Debate Público" sobre o projecto fosse agendado para Grândola, para bem longe daqueles que historicamente usaram as suas praias.


A um Estado incompetente em gerir um recurso natural e histórico de valor inestimável, juntou-se a oportunidade do negócio exclusivo. Com a desculpa do turismo, a construção maciça de segunda habitação para rico desfrutar. E o autarca "socialista" de Grândola a sonhar com o dinheiro das licenças de construção e do imposto autárquico...

José Sócrates, também "socialista" rendido aos valores da especulação imobiliária, o mesmo que patrocinou a co-incineração do outro lado do rio no meio das crateras da cimenteira Secil (convenientemente tapada digitalmente nos primeiros vídeos de apresentação do empreendimento), lá foi fingir a ignição da implosão das duas torres que teriam ficado mal construídas desde os tempos da Soltróia.

Hoje, os velhos ferrieboats a preto e branco da Transado, que transportavam pessoas e automóveis para o outro lado do rio, foram substituídos por outros de uma toda modernaça cor verde-alface... de estufa. Não foi só a cor das embarcações que foi alterada, o trajecto também, que passou a ser mais longo e feito para o interior do rio, para um antigo embarcadouro dos fuzileiros e pelo meio da rota de alimentação dos famosos golfinhos de Setúbal - de facto, roazes corvineiros, uma comunidade em declínio acelerado e já considerada em extinção pelos biólogos marítimos.

Para colmatar a distância do cais às praias da costa, a empresa de Belmiro colocou autocarros para levar as pessoas do cais dos ferrieboats para a costa. E fez cair sobre os "clientes" a duplicação do tempo de viagem e sobretudo o preço de acesso às praias. As embarcações que transportavam exclusivamente pessoas estão paradas no estaleiro, anunciaram-se novos hovercraft para os substituir mas estes ainda não apareceram - hovercraft, já os ouve no Rio Sado, mas desapareceram: dentre outras razões, o preço era tão proibitivo que os "convencionais" mantiveram a preferência dos setubalenses.

Quem pretender fazer o caminho a pé ao longo da costa terá à sua frente vedações e seguranças que o demoverão de passar na "propriedade privada". Uma repetição do abusivo impedimento da passagem pelo meio das urbanizações construídas em redor dos antigos caminhos de acesso às praias, iato num país que escreveu na Constituição que a orla marítima é de Direito Público e que não reconhece a existência de praias privadas... A desculpa: “os abusos” de alguns . A velha desculpa dos gestores incapazes de defenderem o Bem Público, e de quem encontra aí o argumento-chave para convencer os idiotas úteis quando é necessário acabar com o que é de Todos e de Todas.

Os signatários ...





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O que está a acontecer em Tróia?



Apartheid em Tróia



Com o início da época balnear, confirmam-se os efeitos da grande operação de especulação imobiliária de Belmiro de Azevedo em Tróia - os setubalenses estão de facto impedidos de frequentar as praias de Tróia.


O betão ocupou a praia do povo de Setúbal. Os setubalenses não são desejados numa urbanização de milhões, de carácter elitista, destinada a garantir lucros chorudos e rápidos. Os ferries aumentaram os preços para o dobro e levam os passageiros para a zona dos fuzileiros, tornando penoso o acesso à praia. Os prometidos empregos não existem, já que o objectivo não é a hotelaria mas vender imobiliário.


As viagens dos ferries para o novo cais junto aos fuzileiros, coincidindo com a área mais importante de alimentação dos golfinhos do Sado, constitui também grave ameaça à sua subsistência no estuário.

São agora evidentes os efeitos da conivência do poder central e local com os interesses imobiliários, bem como da farsa mediática que juntou Belmiro e Sócrates.

Praia do povo, ao longo dos tempos frequentada livremente pelas populações de Setúbal, foi nas décadas 60 e 70 que a Torralta construiu torres e bandas de prédios. Com o 25 de Abril foi possível garantir que esse betão não impediria o acesso à praia. Existiu uma convivência pacífica entre essa urbanização e os frequentadores da praia. Com a falência do projecto da Torralta, vieram os despedimentos do pessoal e um semi-abandono da área construída.

Um governo PS lançou um projecto diferente. Os créditos do estado foram oferecidos, praticamente dados, ao grupo SONAE, que foi impondo a sua vontade. Beneficiando da colaboração do PCP (nas câmaras de Grândola e Setúbal), garantido o do PS, e com o natural apoio e entusiasmo do PSD, os anos foram passando e os projectos avançando no papel.

Já com Sócrates, esse especialista em farsas mediáticas, os três partidos uniram-se, disputando lugares ao lado de Belmiro de Azevedo: as torres apodrecidas foram destruídas em directo nas televisões. Muitas pessoas baixaram os braços perante a indestrutível aliança destes partidos com o maior "empresário" do país.

No extremo da península de Tróia virada para Setúbal, a duna primária foi arrasada. A popular praia, do lado direito do passadiço de desembarque, desapareceu substituída por uma marina. Uma muralha de prédios de 4 e 5 pisos, bem próxima da água, deixa para trás, cercada e sem vistas, a antiga área edificada pela antiga Torralta (perante a indignação dos antigos proprietários). A erosão da costa é secundária perante a ganância de quem finge não ver a destruição das dunas.

Para os golfinhos do Sado, o "resort" actualmente em desenvolvimento em Tróia, levanta novas e graves ameaças. O projecto imobiliário, implicou a deslocação do cais dos ferries para a zona próxima das instalações da marinha. Essa zona coincide com a área de mais importante alimentação dos golfinhos.


O estudo de impacte ambiental efectuado pela Comissão de Avaliação do Projecto "Marina e novos cais dos ferries do Tróiaresort", deu parecer desfavorável por causa dos riscos eventuais para a população de golfinhos e por existir a alternativa de manter a actual localização. Este estudo foi ignorado pelo Governo. Um princípio mínimo de precaução, aconselharia a que a mudança do cais dos ferries não tivesse lugar e se mantivesse o actual cais.

A Tróia do povo está transformada numa espécie de condomínio privado de novos ricos e patos-bravos carentes de estatuto. É provável que mais dunas e cordões dunares sejam inevitavelmente destruídos, rompidos, a água comece a ameaçar com as marés e os temporais. Que a salinização e contaminação dos escassos aquíferos pela ocupação desenfreada, pelos campos de golfe, venha a sair cara a todos nós ou que cá estiver para ver.

Quando a operação imobiliária estiver concluída, Belmiro de Azevedo abandonará rapidamente Tróia e lá estará o orçamento do Estado a pagar os efeitos nefastos da destruição das dunas, construindo muros e diques para defender a selva de betão...


Texto de Álvaro Arranja retirado do website Esquerda.net

Filme/debate O Mar é Nosso! (dia 11 de Julho, às 17h., Figueira da Foz), contra a privatização do mar e do litoral



Sábado, dia 11 de Julho, Clube União Brenhense, na Figueira d Foz, às 17 horas

Projecção do filme seguida de debate aberto, com a presença de Fernando Varela, representante do Movimento de Pescadores e Cidadãos contra o Mar Privado, e Sofia Rajado pelo Colectivo Revista Rubra.

Colóquio sobre patrimónios pastoris no núcleo museológico da pastorícia do Fundão ( dia 10 de Julho)


O colóquio «Patrimónios Pastoris – cruzar olhares II» acontece na sequência de várias actividades que têm vindo a ser feitas, no Núcleo Museológico da Pastorícia, com o propósito de reflectir e valorizar o património material e imaterial que nos é legado por séculos de práticas pastoris.

Está patente, no Núcleo Museológico do Salgueiro, a exposição “Tectos Pastoris céu, colmo, barro, pedra” na qual se apresenta um grande trabalho de recolha fotográfica de elementos arquitectónicos efectuada nas vias pecuárias espanholas. Entendemos que esta é uma óptima ocasião para fazermos um cruzamento de olhares entre a arquitectura e a cultura pastoril.

Um dos objectivos deste colóquio é reflectir acerca das técnicas e materiais utilizados ancestralmente e as actuais preocupações ecológicas na arquitectura. Para nos falarem acerca destes temas vamos ter connosco a Arqt.ª Ana Cunha, o Dr. António Catana, o Dr. Santiago Bayón Vera e o Dr. Pedro Salvado.

Após este debate, iremos apresentar um filme que resultou de algumas recolhas de histórias de vida que fizemos, e está integrado no Projecto «O Céu dos Nossos Avós».

Estão todos convidados a aparecer no Núcleo Museológico da Pastorícia pelas 21h00 no dia 10 de Julho 2009.

«Abri ! Eu chamo-me a Anarquia», poesia de Gomes Leal (1848-1921) publicada no jornal anarco-sindicalista brasileiro «A Plebe»



Abri ! Eu chamo-me a Anarchia!

E sou o Turbilhão colérico e profundo,
que vem varrer a terra, o rato nunca visto.
Venho cheio de pó, cansado, todo immundo.
Em toda parte o mal! Em toda parte o Christo!
Sou quem trago a sentença escripta contra o mundo,
e que açouto o cavallo em sangue do Anti-Christo!

Sou quem trago commigo os rotos esquadrões
da plebe esguedelhada, anonyma, assassina.
Sou quem hei de varrer reis e religiões,
a indignação de baixo, a colera ferina
Já chegou a Justiça o sangue das Nações!
- A pé, a pé, a pé! A cotovia trina!

Papas, bispos, e reis, peitos de diamante!
Como não chorareis ouvindo o grande abalo?
Allemanha, arremessa ao Rheno o teu guante
Tu, Igreja, renega antes que cante o gallo
- Justiça, mostra já teu dedo flamenjante!
- Vingança, vai sellar o teu feroz cavallo!

Gomes Leal
A Plebe - Anno I - num 4 - 30 de Junho de 1917



Quem foi Gomes Leal?

Filho ilegítimo de um funcionário, António Duarte Gomes Leal nasceu em Lisboa no dia 6 de Junho de 1848. Chegou a frequentar o Curso Superior de Letras, mas a sua cultura literária foi quase toda adquirida no seu meio de trabalho e nos cafés.
Começou cedo a trabalhar no mundo jornalístico, tendo também feito edição de livros e panfletos. Colaborou com diversos jornais da época, publicando críticas literárias e artigos satíricos. Enquanto crítico, Gomes Leal era já defensor do realismo, mas como poeta era ainda ultra-romântico, sobretudo a nível formal.

O seu primeiro livro de poesia, Claridades do Sul, foi publicado em 1875, e nele já se notam os seus ideais anticlericalistas e republicanos, preocupações também presentes em obras posteriores. A partir de Anticristo (1886), e com A Mulher de Luto (1902), a poesia de Gomes Leal torna-se mais negativa, de uma certa inspiração ocultista, provavelmente devido à decadência física e moral sofrida pelo poeta. Em 1910 converteu-se ao catolicismo, mudança que se manifestou na sua obra, em livros como A Senhora da Melancolia.

A fase final da vida de Gomes Leal foi marcada por um grande fervor religioso, associado à degradação física e moral consequente do seu alcoolismo. Morreu em Lisboa no dia 30 de Janeiro de 1921.

Dandy saturniano, entre a boémia e a pobreza, entre o prestígio panfletário e o abandono visionário, Gomes Leal publicou irregularmente a mais extraordinária e desconcertante obra poética do seu tempo. Personificando a figura romântica do predestinado para os rasgos de génio e para os transes da desgraça, Gomes Leal revelou logo na primeira e insuperada colectânea — Claridades do Sul (1875) — as potencialidades ímpares e nunca perfeitamente actualizadas. Aí cruzava todas as tendências do século XIX; e por vezes antecipava aspectos do Modernismo e da imaginação surrealista.

Com a morte da sua mãe, em 1910, caiu na pobreza e converteu-se ao Catolicismo, vivendo da caridade alheia, chegando a passar fome e a dormir ao relento, em bancos de jardim, como um vagabundo, tendo uma vez sido brutalmente agredido pela canalha da rua. No final da vida, Teixeira de Pascoaes e outros escritores lançaram um apelo público para que o Estado lhe atribuísse uma pensão, o que foi conseguido, apesar de diminuta.

Funda com Magalhães Lima, Silva Pinto, Luciano Cordeiro e Guilherme de Azevedo, em 1872, o jornal satírico "O Espectro de Juvenal".

Obras suas importantes são também " A Mulher de Luto" (depois da sua viagem a Madrid em 1878, por ocasião do casamento de Afonso XII) - 1902 -; "A Fome de Camões" e "A Morte de Bocage" (aquando do centenário épico Nacional, em 1881. Reflecte nelas sobre o destino fatal do poeta de missão, com que ele próprio se identificava); no ano seguinte os panfletos poéticos "A Traição" e "O Herege" (pondo em causa o trono na pessoa do rei D.Luís, as Instituições burguesas e a Igreja, gerou um verdadeiro escândalo literário e político); e na linha desta "poesia como voz da Revolução" (como o anunciara Antero de Quental nas Odes Modernas), os folhetins satíricos "A Orgia", "A Morte do Atleta", "A Noviça", e "O Remorso do Facínora"; "A História de Jesus" em 1883 (tendência agora calma e cristã) ; "Fim do Mundo" (volume com as suas poesias de combate) - 1899 -; "Mefistófele em Lisboa" e "Retratos Femininos" ( novas sátiras e quadros da vida urbana) - obras extraordinárias onde conflui o Ultra-Romantismo, satanismo byrónico, Parnasianismo e Simbolismo.

Foram publicadas em 2000 pela Assírio & Alvim, com edição de José Carlos Seabra Pereira, as seguintes obras, até à data esgotadas ou de difícil acesso:

A Fome de Camões e Outros Destinos Poéticos
A Mulher de Luto – Processo Ruidoso e Singular
Claridades do Sul
Fim de um Mundo – Sátiras Modernas
História de Jesus (Para as Criancinhas Lerem)
Mefistófeles em Lisboa e Outros Humorismos Poéticos
O Anti-Cristo – Primeira Parte – Cristo é o Mal
O Anti-Cristo – Segunda Parte – As Teses Selvagens


Para saber mais sobre Gomes Leal:
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5656.pdf
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Gomes_Leal



O Mundo Velho


Nas crises d'este tempo desgraçado,
Quando nos pomos tristes a espalhar
Os olhos pela historia do passado...
Quem não verá, contente ou consternado,
- Mundo velho que estás a desabar - ?!...

Sim tu estás a morrer, vil socio antigo...
E Pae de nossos vicios e paixões!
Camarada dos crimes, torpe amigo...
- Morre, emfim, correrá no teu jazigo,
Em vez de vinho, o sangue das nações!

Deves morrer, provecto criminoso!
Tens vivido de mais, vil sensual!
Tu estás velho, cansado e desgostoso,
E, como um velho principe gotoso,
Ris, cruelmente, ás sensações do mal.

- Que é feito do teu Deus, do teu Direito?
- Onde estão as visões dos teus prophetas?
- Quem te deu esse orgulho satisfeito?
Muribundo Caiphaz, junto ao teu leito,
Morrem, debalde, os gritos dos poetas!

No tempo em que eras forte, foi teu braço
Que apunhalou os grandes ideaes!...
Hoje estás gordo, sensural, devasso,
E andas, torpe a rir, como um palhaço,
N'um circulo lusente de punhaes.

Tu tens vendido os justos no mercado!
Crucificado o nobre, o bello e o bom!
Vaes cahir templo pôdre e abandonado,
Não á voz de Jesus ensanguentado,
- Mas ao verbo sinistro de Proudhon.

É elle que te arrasta ao teu jasigo,
Andas vergado á sua maldição!
Cambalêas ao funebre castigo,
E passas corcovado como o antigo,
Escravo, sob o lenho da paixão!

O seu grande clarão inda t'innunda,
Fulminou-te, morcêgo, á sua luz!
Marcou-te a consciençia rôta e immunda,
E a chaga que te abriu é mais profunda
Que a do lado direito de Jesus!

Nenhum deus, já ninguem póde cural-a!
Has-de morrer, caido amphytrião;
É essa a dôr eterna que te rala,
- Manda erguer o caixão na tua salla,
Prepara o funerario cantochão!

Tu tens quebrado os peitos mais robustos,
Tens dado aos santos o vinagre e o fel...
- Bom conviva de Nero e dos Procustos,
Andas ebrio do sangue de mil justos,
De mil sabios... de Christo e de Rossel!

Tens talhado a teu modo a Sociedade!
E por isso o infeliz que te condemne;
Ensanguentaste as mãos da Mocidade,
Nunca amaste o Direito ou a Equidade,
Matas Vallès...... Deixas viver Bazaine.

Tu viveste contente e agasalhado
Entre os brilhantes, e as visões do gaz!
- Bem te importava a neve... e o ar gelado,
O Frio e a Fome... É tepido o Peccado!
Calvo amigo!... Venceu-te Satanaz!

Tornaste o Templo casa de penhores,
- Mas ninguem ora a Deus nas cathedraes!
E já cheios de lastimas e dôres,
Nós lemos mais nas petalas das flores
Do que em todas as folhas dos missaes!

Morre, morre, venal, sem um gemido!
- Nem podes, levantar as mãos aos ceus!
Ha muito que ris d'isso, aborrecido?
Em nada crêste, em nada!--Adeus vencido!
Morre ahi como um cão!--Vencido, adeus!

Morre, morre, na lucta, pois, soldado!
Corpo cheio de tedio e de bolor!
- Adeus, velho navio destroçado!
- Morre! antigo conviva do peccado!
- Faltou-te sempre Deus, a Lei e o Amor!

António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul'





Acusação à Cruz


Ha muito, ó lenho triste e consagrado!
Desfeita podridão, velho madeiro!
Que tens avassalado o mundo inteiro,
Como um pendão de luto levantado.

Se o que foi nos teus braços cravejado
Foi realmente a Hostia, o Verdadeiro,
Elle está mais ferido que um guerreiro
Para livrar das flexas do Peccado.

Ha muito já que espalhas a tristeza,
Que lutas contra a alegre Natureza,
E vences ó Cruz triste! Cruz escura!

Chega-te o inverno, symbolo tremendo!
Queremos Vida e Acção- Fica-te sendo
Um emblema de morte e sepultura!

António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul





Lisboa


De certo, capital alguma n'este mundo
Tem mais alegre sol e o ceu mais cavo e fundo,
Mais collinas azues, rio d'aguas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pallidas creanças,
Mais graves cathedraes - e ruas, onde a esteira
Seja em tardes d'estio a flor de larangeira!

A Cidade é formosa e esbelta de manhã! -
É mais alegre então, mais limpida, mais sã;
Com certo ar virginal ostenta suas graças,
Ha vida, confusão, murmurios pelas praças;
- E, ás vezes, em roupão, uma violeta bella
Vem regar o craveiro e assoma na janella.

A Cidade é beata - e, ás lucidas estrellas,
O Vicio á noute sae ás ruas e ás viellas,
Sorrindo a perseguir burguezes e estrangeiros;
E á triste e dubia luz dos baços candieiros,
- Em bairos sepulchraes, onde se dão facadas -
Corre ás vezes o sangue e o vinho nas calçadas!

As mulheres são vãs; mas altas e morenas,
D'olhos cheios de luz, nervosas e serenas,
Ebrias de devoções, relendo as suas Horas;
- Outras fortes, crueis, os olhos côr d'amoras,
Os labios sensuaes, cabellos bons, compridos...
- E ás vezes, por enfado, enganam os maridos!

Os burguezes banaes são gordos, chãos, contentes,
Amantes de Cupido, avaros, indolentes,
Graves nas procissões, nas festas e nos lutos,
Bastante sensuaes, bastante dissolutos;
Mas humildes crhistãos! - e, em lugubres momentos,
Tendo, ainda, crueis saudades dos conventos!

E assim ella se apraz n'um somno vegetal,
Contraria ao Pensamento e hostil ao Ideal! -
- Mas mau grado assim ser cruel, avara, dura,
Como Nero tambem dá concertos á lua,
E, em noutes de verão quando o luar consolla,
Põe ao peito a guitarra e a lyrica violla.

No entanto a sua vida é quasi intermitente,
Afunda-se na inação, feliz, gorda, contente;
Adora inda as acções dos seus navegadores
Velhos heroes do mar; detesta os pensadores;
Faz guerra a Vida, á Acção, ao Ideal - e ao cabo
É talvez a melhor amiga do Diabo!

António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul'



O Selvagem


Eu não amo ninguem. Tambem no mundo
Ninguem por mim o peito bater sente,
Ninguem entende meu sofrer profundo,
E rio quando chora a demais gente.

Vivo alheio de todos e de tudo,
Mais callado que o esquife, a Morte e as lousas,
Selvagem, solitario, inerte e mudo,
- Passividade estupida das Cousas.

Fechei, de ha muito, o livro do Passado
Sinto em mim o despreso do Futuro,
E vivo só commigo, amortalhado
N'um egoismo barbaro e escuro.

Rasguei tudo o que li. Vivo nas duras
Regiões dos crueis indifferentes,
Meu peito é um covil, onde, ás escuras,
Minhas penas calquei, como as serpentes.

E não vejo ninguem. Saio sómente
Depois de pôr-se o sol, deserta a rua,
Quando ninguem me espreita, nem me sente,
E, em lamentos, os cães ladram à lua...