7.7.09

«Abri ! Eu chamo-me a Anarquia», poesia de Gomes Leal (1848-1921) publicada no jornal anarco-sindicalista brasileiro «A Plebe»



Abri ! Eu chamo-me a Anarchia!

E sou o Turbilhão colérico e profundo,
que vem varrer a terra, o rato nunca visto.
Venho cheio de pó, cansado, todo immundo.
Em toda parte o mal! Em toda parte o Christo!
Sou quem trago a sentença escripta contra o mundo,
e que açouto o cavallo em sangue do Anti-Christo!

Sou quem trago commigo os rotos esquadrões
da plebe esguedelhada, anonyma, assassina.
Sou quem hei de varrer reis e religiões,
a indignação de baixo, a colera ferina
Já chegou a Justiça o sangue das Nações!
- A pé, a pé, a pé! A cotovia trina!

Papas, bispos, e reis, peitos de diamante!
Como não chorareis ouvindo o grande abalo?
Allemanha, arremessa ao Rheno o teu guante
Tu, Igreja, renega antes que cante o gallo
- Justiça, mostra já teu dedo flamenjante!
- Vingança, vai sellar o teu feroz cavallo!

Gomes Leal
A Plebe - Anno I - num 4 - 30 de Junho de 1917



Quem foi Gomes Leal?

Filho ilegítimo de um funcionário, António Duarte Gomes Leal nasceu em Lisboa no dia 6 de Junho de 1848. Chegou a frequentar o Curso Superior de Letras, mas a sua cultura literária foi quase toda adquirida no seu meio de trabalho e nos cafés.
Começou cedo a trabalhar no mundo jornalístico, tendo também feito edição de livros e panfletos. Colaborou com diversos jornais da época, publicando críticas literárias e artigos satíricos. Enquanto crítico, Gomes Leal era já defensor do realismo, mas como poeta era ainda ultra-romântico, sobretudo a nível formal.

O seu primeiro livro de poesia, Claridades do Sul, foi publicado em 1875, e nele já se notam os seus ideais anticlericalistas e republicanos, preocupações também presentes em obras posteriores. A partir de Anticristo (1886), e com A Mulher de Luto (1902), a poesia de Gomes Leal torna-se mais negativa, de uma certa inspiração ocultista, provavelmente devido à decadência física e moral sofrida pelo poeta. Em 1910 converteu-se ao catolicismo, mudança que se manifestou na sua obra, em livros como A Senhora da Melancolia.

A fase final da vida de Gomes Leal foi marcada por um grande fervor religioso, associado à degradação física e moral consequente do seu alcoolismo. Morreu em Lisboa no dia 30 de Janeiro de 1921.

Dandy saturniano, entre a boémia e a pobreza, entre o prestígio panfletário e o abandono visionário, Gomes Leal publicou irregularmente a mais extraordinária e desconcertante obra poética do seu tempo. Personificando a figura romântica do predestinado para os rasgos de génio e para os transes da desgraça, Gomes Leal revelou logo na primeira e insuperada colectânea — Claridades do Sul (1875) — as potencialidades ímpares e nunca perfeitamente actualizadas. Aí cruzava todas as tendências do século XIX; e por vezes antecipava aspectos do Modernismo e da imaginação surrealista.

Com a morte da sua mãe, em 1910, caiu na pobreza e converteu-se ao Catolicismo, vivendo da caridade alheia, chegando a passar fome e a dormir ao relento, em bancos de jardim, como um vagabundo, tendo uma vez sido brutalmente agredido pela canalha da rua. No final da vida, Teixeira de Pascoaes e outros escritores lançaram um apelo público para que o Estado lhe atribuísse uma pensão, o que foi conseguido, apesar de diminuta.

Funda com Magalhães Lima, Silva Pinto, Luciano Cordeiro e Guilherme de Azevedo, em 1872, o jornal satírico "O Espectro de Juvenal".

Obras suas importantes são também " A Mulher de Luto" (depois da sua viagem a Madrid em 1878, por ocasião do casamento de Afonso XII) - 1902 -; "A Fome de Camões" e "A Morte de Bocage" (aquando do centenário épico Nacional, em 1881. Reflecte nelas sobre o destino fatal do poeta de missão, com que ele próprio se identificava); no ano seguinte os panfletos poéticos "A Traição" e "O Herege" (pondo em causa o trono na pessoa do rei D.Luís, as Instituições burguesas e a Igreja, gerou um verdadeiro escândalo literário e político); e na linha desta "poesia como voz da Revolução" (como o anunciara Antero de Quental nas Odes Modernas), os folhetins satíricos "A Orgia", "A Morte do Atleta", "A Noviça", e "O Remorso do Facínora"; "A História de Jesus" em 1883 (tendência agora calma e cristã) ; "Fim do Mundo" (volume com as suas poesias de combate) - 1899 -; "Mefistófele em Lisboa" e "Retratos Femininos" ( novas sátiras e quadros da vida urbana) - obras extraordinárias onde conflui o Ultra-Romantismo, satanismo byrónico, Parnasianismo e Simbolismo.

Foram publicadas em 2000 pela Assírio & Alvim, com edição de José Carlos Seabra Pereira, as seguintes obras, até à data esgotadas ou de difícil acesso:

A Fome de Camões e Outros Destinos Poéticos
A Mulher de Luto – Processo Ruidoso e Singular
Claridades do Sul
Fim de um Mundo – Sátiras Modernas
História de Jesus (Para as Criancinhas Lerem)
Mefistófeles em Lisboa e Outros Humorismos Poéticos
O Anti-Cristo – Primeira Parte – Cristo é o Mal
O Anti-Cristo – Segunda Parte – As Teses Selvagens


Para saber mais sobre Gomes Leal:
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5656.pdf
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Gomes_Leal



O Mundo Velho


Nas crises d'este tempo desgraçado,
Quando nos pomos tristes a espalhar
Os olhos pela historia do passado...
Quem não verá, contente ou consternado,
- Mundo velho que estás a desabar - ?!...

Sim tu estás a morrer, vil socio antigo...
E Pae de nossos vicios e paixões!
Camarada dos crimes, torpe amigo...
- Morre, emfim, correrá no teu jazigo,
Em vez de vinho, o sangue das nações!

Deves morrer, provecto criminoso!
Tens vivido de mais, vil sensual!
Tu estás velho, cansado e desgostoso,
E, como um velho principe gotoso,
Ris, cruelmente, ás sensações do mal.

- Que é feito do teu Deus, do teu Direito?
- Onde estão as visões dos teus prophetas?
- Quem te deu esse orgulho satisfeito?
Muribundo Caiphaz, junto ao teu leito,
Morrem, debalde, os gritos dos poetas!

No tempo em que eras forte, foi teu braço
Que apunhalou os grandes ideaes!...
Hoje estás gordo, sensural, devasso,
E andas, torpe a rir, como um palhaço,
N'um circulo lusente de punhaes.

Tu tens vendido os justos no mercado!
Crucificado o nobre, o bello e o bom!
Vaes cahir templo pôdre e abandonado,
Não á voz de Jesus ensanguentado,
- Mas ao verbo sinistro de Proudhon.

É elle que te arrasta ao teu jasigo,
Andas vergado á sua maldição!
Cambalêas ao funebre castigo,
E passas corcovado como o antigo,
Escravo, sob o lenho da paixão!

O seu grande clarão inda t'innunda,
Fulminou-te, morcêgo, á sua luz!
Marcou-te a consciençia rôta e immunda,
E a chaga que te abriu é mais profunda
Que a do lado direito de Jesus!

Nenhum deus, já ninguem póde cural-a!
Has-de morrer, caido amphytrião;
É essa a dôr eterna que te rala,
- Manda erguer o caixão na tua salla,
Prepara o funerario cantochão!

Tu tens quebrado os peitos mais robustos,
Tens dado aos santos o vinagre e o fel...
- Bom conviva de Nero e dos Procustos,
Andas ebrio do sangue de mil justos,
De mil sabios... de Christo e de Rossel!

Tens talhado a teu modo a Sociedade!
E por isso o infeliz que te condemne;
Ensanguentaste as mãos da Mocidade,
Nunca amaste o Direito ou a Equidade,
Matas Vallès...... Deixas viver Bazaine.

Tu viveste contente e agasalhado
Entre os brilhantes, e as visões do gaz!
- Bem te importava a neve... e o ar gelado,
O Frio e a Fome... É tepido o Peccado!
Calvo amigo!... Venceu-te Satanaz!

Tornaste o Templo casa de penhores,
- Mas ninguem ora a Deus nas cathedraes!
E já cheios de lastimas e dôres,
Nós lemos mais nas petalas das flores
Do que em todas as folhas dos missaes!

Morre, morre, venal, sem um gemido!
- Nem podes, levantar as mãos aos ceus!
Ha muito que ris d'isso, aborrecido?
Em nada crêste, em nada!--Adeus vencido!
Morre ahi como um cão!--Vencido, adeus!

Morre, morre, na lucta, pois, soldado!
Corpo cheio de tedio e de bolor!
- Adeus, velho navio destroçado!
- Morre! antigo conviva do peccado!
- Faltou-te sempre Deus, a Lei e o Amor!

António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul'





Acusação à Cruz


Ha muito, ó lenho triste e consagrado!
Desfeita podridão, velho madeiro!
Que tens avassalado o mundo inteiro,
Como um pendão de luto levantado.

Se o que foi nos teus braços cravejado
Foi realmente a Hostia, o Verdadeiro,
Elle está mais ferido que um guerreiro
Para livrar das flexas do Peccado.

Ha muito já que espalhas a tristeza,
Que lutas contra a alegre Natureza,
E vences ó Cruz triste! Cruz escura!

Chega-te o inverno, symbolo tremendo!
Queremos Vida e Acção- Fica-te sendo
Um emblema de morte e sepultura!

António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul





Lisboa


De certo, capital alguma n'este mundo
Tem mais alegre sol e o ceu mais cavo e fundo,
Mais collinas azues, rio d'aguas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pallidas creanças,
Mais graves cathedraes - e ruas, onde a esteira
Seja em tardes d'estio a flor de larangeira!

A Cidade é formosa e esbelta de manhã! -
É mais alegre então, mais limpida, mais sã;
Com certo ar virginal ostenta suas graças,
Ha vida, confusão, murmurios pelas praças;
- E, ás vezes, em roupão, uma violeta bella
Vem regar o craveiro e assoma na janella.

A Cidade é beata - e, ás lucidas estrellas,
O Vicio á noute sae ás ruas e ás viellas,
Sorrindo a perseguir burguezes e estrangeiros;
E á triste e dubia luz dos baços candieiros,
- Em bairos sepulchraes, onde se dão facadas -
Corre ás vezes o sangue e o vinho nas calçadas!

As mulheres são vãs; mas altas e morenas,
D'olhos cheios de luz, nervosas e serenas,
Ebrias de devoções, relendo as suas Horas;
- Outras fortes, crueis, os olhos côr d'amoras,
Os labios sensuaes, cabellos bons, compridos...
- E ás vezes, por enfado, enganam os maridos!

Os burguezes banaes são gordos, chãos, contentes,
Amantes de Cupido, avaros, indolentes,
Graves nas procissões, nas festas e nos lutos,
Bastante sensuaes, bastante dissolutos;
Mas humildes crhistãos! - e, em lugubres momentos,
Tendo, ainda, crueis saudades dos conventos!

E assim ella se apraz n'um somno vegetal,
Contraria ao Pensamento e hostil ao Ideal! -
- Mas mau grado assim ser cruel, avara, dura,
Como Nero tambem dá concertos á lua,
E, em noutes de verão quando o luar consolla,
Põe ao peito a guitarra e a lyrica violla.

No entanto a sua vida é quasi intermitente,
Afunda-se na inação, feliz, gorda, contente;
Adora inda as acções dos seus navegadores
Velhos heroes do mar; detesta os pensadores;
Faz guerra a Vida, á Acção, ao Ideal - e ao cabo
É talvez a melhor amiga do Diabo!

António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul'



O Selvagem


Eu não amo ninguem. Tambem no mundo
Ninguem por mim o peito bater sente,
Ninguem entende meu sofrer profundo,
E rio quando chora a demais gente.

Vivo alheio de todos e de tudo,
Mais callado que o esquife, a Morte e as lousas,
Selvagem, solitario, inerte e mudo,
- Passividade estupida das Cousas.

Fechei, de ha muito, o livro do Passado
Sinto em mim o despreso do Futuro,
E vivo só commigo, amortalhado
N'um egoismo barbaro e escuro.

Rasguei tudo o que li. Vivo nas duras
Regiões dos crueis indifferentes,
Meu peito é um covil, onde, ás escuras,
Minhas penas calquei, como as serpentes.

E não vejo ninguem. Saio sómente
Depois de pôr-se o sol, deserta a rua,
Quando ninguem me espreita, nem me sente,
E, em lamentos, os cães ladram à lua...