Os pretextos são diferentes, tal como a comunidade. Não cantam de punho erguido, nem mobilizam a sociedade. Não há um empenhamento político e partidário, nem um discurso intelectualizado. Mudar o mundo é uma miragem. A marginalidade é cultivada, quase uma condição. Partem do gueto (real e ou figurado) para o mundo. Mas as questões ideológicas estão presentes e a autenticidade é uma exigência. E a palavra quem mais ordena.
Rap significa Rhythm and Poetry (ritmo e poesia). E assim se define, como a arte de articular o ritmo com as palavras. E, como em nenhum outro estilo musical, as palavras tornam-se a essência. Os MC (mestres de cerimónias) digladiam-se em batalhas de rimas espontâneas, vence aquele que consegue a melhor metáfora. Um caso recente corre na Internet: num dia azarado, Black Mastah, um rapper já veterano e com provas dadas, foi derrotado por Cristal, abalando assim a credibilidade junto de alguns dos seus fãs.
À primeira vista o trabalho do MC pode parecer fácil. Mas a estrutura rítmica de articulação de vocábulos é muitas vezes complexa. Em nenhum outro estilo se dizem tantas palavras por minuto, por faixa, e com um imperativo fonético. Sem nunca esquecer a importância da mensagem. Há de tudo. Os estilistas conseguem resultados sofisticados, através de jogos de palavras. O flow é uma técnica só ao alcance dos mais engenhosos, que consiste em rimar fora da sílaba tónica. Como faz Sam the Kid, em Poetas do Karaoke: «Eu sou Dom Dinis, tu és donde estiveres melhor». Ou o artifício do tema 100 em que o rapper repete cem vezes «cem/sem».
Não há qualquer tipo de preconceito linguístico. Sem barreiras, é usada a linguagem das ruas, dos bairros, com calão e estrangeirismos. Mas tal não impede o uso de palavras mais eruditas. A língua de lés a lés.
A ideia de espontaneidade é uma das regras. Dentro da comunidade, as sessões de improviso são muito apreciadas. Assemelham-se à tradição da desgarrada no fado ou do «lá vai mote» renascentista. Contudo, é óbvio que as letras dos temas gravados são escritas e estudadas: apesar de poder passar a ideia de improviso, tudo está assente no papel.
Ideologicamente, o hip hop de intervenção identifica-se com a esquerda. É a voz das margens da sociedade, dos excluídos. A denúncia das desigualdades sociais e, por vezes, do racismo. Nem todos são tão directos quanto Valete, o Che Guevara do rap, que se afirma de extrema-esquerda. Mas muitos alinham num discurso engajado, como Chullage, Micro, NBC, Black Mastah, MAC ou Sir Scratch.
No seu tema Hip Hop, Boss AC descreve-o assim: «De certa forma Hip Hop é estar na política/ Não aceitar tudo calado/ é desenvolver a consciência crítica».
Todavia nem todo hip hop é de intervenção. Há vários traços que se desenham nos rappers portugueses. Como o combate, a exaltação do ego e a rivalidade com outros MC. Como diz PacMan: «Um gajo para ser rapper, à partida, tem que ter um ganda ego. É uma cena mais ou menos egocêntrica e gabarolas.» Um bom exemplo é o primeiro álbum de Sir Scratch, em que se ouve: «Eu conheci o Sir Scratch em casa do Sam ele tinha 12 anos, já fazia melhor rap que muitos niggers que têm 30, 35 e 40 anos/ o gajo podia ser filho de metade desses rappers e já cuspia melhor que os rappers». Ou esta letra dos MAC, chamada Toma: «Bem podes continuar a treinar frente ao espelho/ se me chegas aos calcanhares não me passas do joelho». Por vezes, os rappers descrevem o que vêem ou têm intuitos pedagógicos, alertando para os perigos da droga, da sida, da violência ou da gravidez adolescente. Noutros casos, os textos são meramente biográficos.
História em movimento
O hip hop tal como o conhecemos nasceu no Bronx, em Nova Iorque, nos anos 70, com a chamada Zulu Nation, de Afrika Bombataa. As suas origens, segundo algumas teorias, estão na Jamaica, nos sound systems: carrinhas que percorriam o país a passar reggae. Antes dos espectáculos, o locutor fazia uma apresentação, numa fala ritmada, com tal talento, que passou a ser tão cativante quanto a música em si. Mas podem adivinhar-se origens mais remotas, no spoken word da beat generation, na verborreia de algumas canções folk de Woodie Guthrie, ou mesmo nos vendedores de feiras, nos apresentadores do circo e nos locutores desportivos.
Tal como apareceu no Bronx, o movimento divide-se em três vertentes: a música dos MC e DJ, as artes plásticas dos graffiters e a dança dos breakdancers. No início teve a positiva função de apaziguar as rivalidades entre negros e porto-riquenhos nos guetos. Em vez de lutas físicas, passaram a batalhar através da arte. Vários grupos se destacaram internacionalmente, desde o início dos anos 80, como Run DMC, Public Enemy ou Afrika Bobataa.
Em Portugal começou por se adaptar o movimento americano à realidade suburbana de Lisboa e do Porto. António Concorda Contador e Emanuel Lemos Ferreira, no seu livro Ritmo e Poesia, afirmam: «Miratejo está para o rap português, como o Bronx está para o rap americano.»
1994 foi o ano em que o rap português saiu dos bairros. O país ficou a saber da sua existência. Para tal foi determinante o lançamento da colectânea Rapública, que incluía o hit dos Black Company, Nadar – um tema que esquecia a intervenção e defendia o lado festivo do hip hop.
No mesmo ano, saíram os marcantes primeiros álbuns dos Da Weasel e General D. Para rappar em português foi igualmente importante o sucesso do brasileiro Gabriel, o Pensador. No início, houve quem associasse Pedro Abrunhosa & Bandemónio ao movimento, embora seja óbvio que é um parentesco muito afastado. O músico do Porto enquadra-se mais no soul funk, na herança de James Brown.
Dinamizadores importantes do hip hop foram os DJ Bomberjack e Cruzfader. Desde 1996 que Bomberjack grava mixtapes, onde compila talentos. De início vendia directamente nas lojas. Agora formou a sua própria editora, a Footmovin’, e distribuidora, a Sóhiphop. Estas empresas, a que se dedica a tempo inteiro, são grandes divulgadoras. Só em 2006, lançaram mais de 20 títulos. «Não há mercado para tudo – explica –, a partir de agora teremos de ser mais selectivos.» Bomberjack defende uma música de temática plural: «Nem todos têm que ser interventivos, é bom que haja vários estilos». Reconhece que o género é maioritariamente procurado por «adolescentes», mas que a regra tende a mudar. Aliás, os nomes que têm surgido nos últimos tempos são de MC mais velhos. E chama a atenção: «Hoje a cena é mais individual, já não há tanto aquela coisa dos grupos e dos bairros.»
Verdade, orgulho e preconceito
Tal como no fado, em que puristas e inovadores facilmente entram em conflito, o hip hop, que é um estilo musical com regras definidas, também tem as suas bipolaridades. A primeira é a «Old School» e a «New School». Está sobretudo ligada à componente musical. As bandas fundadoras usavam apenas samplers, gira-discos, caixa de ritmos ou, em alternativa, o beat-box – instrumentação vocal feita com a ajuda das mãos. Essa simplicidade permitiu que o movimento emergisse na rua, nos bairros mais pobres, sem recursos para instrumentos caros. Com o tempo, foram aparecendo novas tendências, que usam instrumentos e se afastam destes cânones. E até mesmo sub-estilos, muito apreciados, como o hip hop estratosférico ou trip hop.
Underground versus comercial é uma discussão permanente. Nos Estados Unidos é totalmente justificada. Vários são os grupos ou MC que desvirtuam os princípios do hip hop com objectivos comerciais. E o rap tem como regra de ouro a autenticidade. O rapper tem que acreditar no que diz. Em Portugal, não há grandes exemplos de ‘Gangsta Rap’ (que apelam ao crime, à violência e ao machismo, como é o caso de 50 cent), quem mais se aproxima é Halloween. Obviamente, uns têm mais sucesso do que outros. Mas vender bem não é sinónimo de traição. Como explica Sam the Kid: «Então de que lado é que eu estou? Aceito que me chamem comercial, porque os meus discos estão nas lojas. E aceito que me chamem undergound porque nunca traí os meus princípios».
É um lugar comum nos álbuns de hip hop português apontar o dedo àqueles que se vendem. É, por exemplo, o que faz Valete em Pela Música: «Vais da glória ao fracasso corrido ao pontapé/ E a história nem guardará para ti um rodapé/ Se vives de joelhos nem te vale a camisa do Che/ Eu estou na horizontal mas hei-de morrer de pé».
O cenário do hip-hop nacional está em constante mutação. Nos últimos anos houve um boom de artistas. Poucos deles chegam aos discos. E alguns limitam-se a edições de autor de circulação restrita. Mas os sucessos de Sam the Kid, Valete, Da Weasel e Boss AC alargaram o espectro de forma transversal na sociedade: definitivamente já não é uma cena do bairro.
Em termos geográficos, os subúrbios de Lisboa e do Porto continuam a ter grande protagonismo: bairros como Chelas, Odivelas, Damaia, Miratejo ou Matosinhos. Quarteira, no Algarve, pode considerar-se já um pólo relevante, graças ao dinamismo do MC e produtor Twism. Mas um pouco por todo o lado, de Norte a Sul, aparecem movimentos. Observe-se o caso do Alentejo, uma das regiões mais pobres, desertificadas e envelhecidas da Europa. Por ali existem núcleos. Em Sines a cena é particularmente forte. Mas nas cidades do interior tal também acontece. É o caso de Beja, onde mora o rapper e produtor Suarez, que se prepara para lançar o seu primeiro disco com distribuição nacional. «Comecei em 1999, fui um dos pioneiros no distrito, mas agora já foi formado um circuito na região, com o hip hop em todas as suas vertentes.» Chegou a participar em algumas colectâneas e a lançar um disco de distribuição local. A distância das grandes urbes marcam a diferença no discurso: «Falo do que vivo, das discrepâncias que há no país, do desemprego e da falta de patriotismo.»
O universo do hip hop é dominado por homens. O que talvez se explique por uma certa ideia de virilidade dominante nas suas origens, nos despiques entre gangs. Em Portugal, a ausência de mulheres é flagrante. Dama Bete, que se prepara para editar o primeiro álbum, com produção e arranjos de Filipe Larsen, é uma das raras excepções. «O hip hop é um movimento machista, as mulheres continuam a ser reprimidas» – diz. Desde os 16 anos que se interessa pelo estilo. Oriunda da linha de Sintra, integrou vários grupos femininos. «Muitas vezes éramos convidadas para concertos pela curiosidade de sermos mulheres, e não pela validade do projecto em si. Diziam: ‘para rapariga está bom’». Sam the Kid, em conversa com o JL, também sustentou: «Infelizmente, ainda não apareceu nenhuma em que dissesse mais do que essa coisa horrível: ‘para mulher não está mal’». As letras de Dama Bete, falam de injustiças sociais. Em Dama no Rap, refere-se a essa discriminação: «Ser dama no rap é antes de abrir a boca ser ignorada/ Ser logo posta de parte por pensarem “n’ sabe nada”/ É subir no palco e olharem-me como se fosse E.T./ Começar uma actuação, ouvir “vens fazer o quê?”/ É a todo momento ouvir, porque não cantas R&B?». Pode ser que este disco, com beats do seu irmão (Macaco Simão), ajude a abolir o preconceito.
A abertura ao hip hop feminino é uma possível saída para um estilo em expansão, que em Portugal pode vir a entrar num impasse criativo e ideológico. E cada vez mais se afirma no mainstream. Seguindo o exemplo americano, corre o risco de se institucionalizar. Só que, ao contrário da música pop, o verdadeiro hip hop nunca poderá ser dominante, sob a pena de trair os seus princípios. Abandonando as margens, abandona-se a si próprio. Confundindo-se com o poder, ficará corrompido. De forma triste e irremediável.