6.9.05

Para uma sociologia do hiperpoder ( o caso dos Estados Unidos)



A editora catalã Anthropos Editorial, que publica uma revista de sociologia com o mesmo nome, acaba de editar o livro «Repensar los Estados Unidos, para una sociologia del hiperpoder» com a direcção de Loic Wacquant, que reúne os textos distribuídos por dois números da revista francesa Actes de la Recherce en Scences Sociales (nº 138 e 139, de Junho e Setembro de 2001, respectivamente) sob o lema « A excepção americana». Nele se inclui as contribuições de vários investigadores como Pierre Bourdieu( dos imperialismos do universal), Roger Brubaker (para além a identidade), Dan Clawson, Peter Cookson, Frederick Cooper, Rick Fantasia ( uma ditadura sobre o proletariado), Paul Farmer (Quando amedicina se converte em indústria), Neil Fligstein ( o mito do mercado), Nicolas Guilhot ( os profissionais da democracia), Carole Persell ( o sofrimento do priviligiado:internados de élite e transmissão do poder), Barbara Rylko-Bauer, Teresa Sullivan, Elizabeth Warren, Jay Lawrence Westbrook.

Segue-se a tradução do prólogo de autoria de Loic Wacquant, sob o título «A América como profecia de autocumprimento»


A América como profecia de autocumprimento


Poucas sociedades opõem ao esforço de objectivação científica tantos obstáculos como os Estados Unidos. Tal não se deve à imensidade do seu território nem à sua diversidade social e cultural, mas antes ao facto de tratar-se de um país que, desde a sua origem, se pensou e sempre viveu como uma «nação à parte», que escapava às leis e as determinações que habitualmente governam a estrutura e trajectória das sociedades. A noção de «excepção», introduzida na era jacksoniana pelo fascinado visitante da nova república que foi Alexis de Tocqueville, e mais tarde retrabalhada por toda uma tradição de pensamento de carácter liberal, é um efeito cosubstancial da ideologia nacional, tal como declara o historiador Richard Hofstadter: «O nosso destino não é o de ser uma nação que gera ideologias, mas sim o de incarnar uma ideologia» (1). Como pode a Sociologia, ciência do normal e do comum, do regular e do secular, consagrada à implantação de «modelos e leis», segundo a formulação de Durkheim, e que provém de instituições sociais europeias com vestígios de um passado multissecular repleto de desigualdades herdadas, conseguir com esta visão apropriar-se desta «Nova Jerusalém»? Isto é, de uma sociedade de imigração fluida e móvel, uma sociedade impregnada de religião e formada no livre jogo do «fim» eternamente inalcançável e virada, não obstante, para o futuro, que encontra precisamente a sua unidade na crença da sua unicidade e na fervente busca de um destino manifesto a que está pretensamente destinada e que crê realizar em nome do género humano.
Outra razão é que o citado postulado da «excepção» não só proporciona uma referência impensada das artes, letras e do pensamento autóctone como também, e sobretudo, nas ciências sociais norte-americanas que se fundamentam, como demonstra Dorothay Roos em The origins of American Social Science (3) , em dois dogmas complementares e que constituem um mito fundador da nação, que só periodicamente é posto em questão para uma melhor renovação com recurso a novos conceitos. O primeiro é aquele que fala do «individualismo metafísico» e que, de Ralph Waldo Emerson a Richard Rorty como de George Herbert Mead a James Coleman, faz do indivíduo o fundamento infundado da acção, o valor e o seu saber. (4) O segundo considera que a América do Norte de deve definir em oposição às velhas sociedades europeias, rígidas e conflitivas, organizadas segundo esquemas colectivos historicamente retrógados e, portanto, condenadas à partida à estagnação e à decadência, a menos que se transformem segundo o padrão norte-americano que se inspira no antiestatismo, tal como o propõem as diferentes variantes do discurso actual sobre a globalização. Assim aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial com a teoria da «modernização», bem recebida por David McLellend, Daniel Lerner e Talcott Parsons.
Um terceiro factor, este mais conjuntural, aumenta ainda mais a força da ilusão da excepcionalidade da América do Norte: é que depois da queda do império soviético, e por efeito da instalação do seu capital económico, militar, jurídico e cultural através do planeta, esta tornou-se a nação-referência de toda a humanidade. O domínio sem precedentes que exercem os Estados Unidos por um duplo movimento articulado de atracção ( através da fuga de cérebros – brain drain – e a exportação, mediante os seus gabinetes estratégicos – think tanks - , fundações, agências comerciais e variados organismos classificados de não-governamentais) no movimento internacional de bens
Imateriais, meios de comunicação, arte, direito, ciência, filantropia, colocam-nos em posição de inculcar em todo o planeta a sua visão particular do mundo.(5) Os Estados Unidos têm, desde logo, a característica excepcional de, nos alvores do século vinte e um, ser a primeira sociedade da história dotada de meios materiais e imateriais para impôr o seu padrão político e social como estrutura de pensamento universal, e excepcional, é também o facto de o fazer, transmutando as suas particularidades em normas ( veja-se o ideal transhistórico) . Procedendo assim transforma toda a realidade à sua imagem e semelhança.
Um último obstáculo à sociologia da sociedade norte-americana reside nos discursos cruzados e cúmplices de celebração e denegação que sempre a acompanham e a envolvem num denso entrelaçar de pré-noções que derivam do senso comum e que, para lá do seu antagonismo, se põem de acordo para travar um conhecimento rigoroso do funcionamento das suas instituições. Por essa razão é que foi necessário reunir aqui os trabalhos de investigadores norte-americanos provenientes de todas as áreas disciplinares e acabar com o encantamento do mito fundador que converte os Estados Unidos na figura emblemática da prosperidade em aliança com a liberdade ( de trabalhar, de iniciativa, de aprender, de votar,etc), mas também para romper com a lógica do processo que pensa em termos de «ser a favor ou contra» a fim de inculpar ou inocentar. Tudo isso para que seja possível encontrar o modo para compreender e explicar as relações e os mecanismos sociais que não pelo facto de pertencerem a um contexto específico, são menos genéricos.
Um mercado de trabalho do proletariado que estala por estar sujeito ao despotismo legal do empresariato graças à repressão sem limites nem descanso dos sindicatos; crescimento da precariedade da classe média no próprio seio da prosperidade reencontrada devido à divisão da protecção social em camadas sociais; escolas de elite que outorgam aos herdeiros um quase monopólio da facto das posições superiores de poder e que se juntam à classe dominante, permitindo as famílias patrícias da costa Este com os novos ricos das outras burguesias regionais(6); um Estado que desregula o emprego e «mercantiliza» ilimitadamente a saúde, desenvolvendo uma política fiscal e industrial em benefício dos accionistas e dos sectores de ponta da «nova economia»; as redes e os estratagemas na base dos quais as grandes empresas dominam a máquina eleitoral, sem esquecer os atributos bizantinos da arquitectura política ( que se revelou na confusão jurídico-política da recontagem dos votos na Florida aquando da primeira eleição de George W. Bush); a relação entra a clivagem racial e o encarceramento massivo como «política social» que se propõe lutar não contra a pobreza mas sim contra os pobres, entendidos como a negação viva da ideologia nacional da oportunidades para todos; por último, a irrupção no campus universitário de um discurso fluído e confuso que releva mais da moral e da política que da teoria social, e que tem como efeito a fusão das estruturas de desigualdade no dissolvente retórico da (pluri)cultura; são outros tantos aspectos desconhecidos da realidade norte-americana e que se opõem a uma visão idealizada da América do Norte, hoje em dia hegemónica tanto dentro como fora das suas fronteiras.
Colocando de manifesto os efeitos da intrusão violenta e do império crescente do capital económico em todos os sectores da vida social, as análises deste livro contribuem para o progresso do conhecimento empírico dos Estados Unidos enquanto sociedade singular, mas também servem como analista histórico em tamanho real das transformações que se operam nos nossos dias em todas as instituições sociais submetidas ao seu tropismo. O facto de radiografarmos as instituições norte-americanas permite proporcionar materiais indispensáveis para uma antropologia comparativa de uma invenção do neoliberalismo na prática, já que os Estados Unidos, após a evolução sociopolítica dos anos setenta, se tornaram no motor teórico e prático da codificação e disseminação transnacional de um projecto ideológico que pretende submeter o conjunto das actividades humanas à tutela do mercado. Daí que o compêndio de trabalhos aqui reunidos apresenta não apenas um interesse científico mas também um interesse cívico, o que faz com que não fique apenas limita a um público universitário.


(1) Richard Hofstader, citado por S.M. Lipset, American Exceptionalism: A Double-Edged Sword, Nova Iorque, Norton, 1996,p.18, obra de grande utilidade pois oferece um catálogo dos tópicos mais importantes sobre esta temática; veja-se igualmente J.P. Greene, The Intellectual Construction of América: Exceptionalim and Identify from 1492 to 1800, Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1993; e Byron E. Shafer (dir.), Is América Different? A New Look at American Exceptionalim, Oxford, Oxford University Press, 1991
(2) M.F. Jacobson, Barbarian Virtues: The United States Encounters Foreign Peoples at Home and Abroad 1876-1891, Nova Iorque, Hill and Wang, 2000
(3) D.Ross, The Social Origins of American Social Science, Nova Iorque, Cambridge University Press, 1991, e idem, «An Historian’s View of American Social Science», Journal of the History of the Behavorial Sciences, 29-2 (abril 1993), pp 99-112
(4) O excepcionalismo também serve de refúgio ao espiritualismo e sustenta uma visão heróica da história, tal como indica esta citação cheia de candor.de Seymor Martin Lipset «…a Providência encarregou-se de dotar uma nação de um Washigton, de um Lincoln, de um Roosevelt quando eram necessários…
(5) Y. Dezalay e I. Garth, The Intertionalization of Palace Wars: Lawyers, economists and the contest to transdform Latin American States, Chicago, University of Chicago Press, 2002
(6) Cujo representante caricatural bem pode ser o presidente George W. Bush, multimilionário, filho de Presidente e neto de Senador, nasido numa aldeia no Connecticut, antigo aluno ( medíocre) de uma das «academias» privadas descritas por Caoline Persell e Peter Cookson ( «Pensionnats d’élite: ethnographie d’une transmission de pouvoir», Actes de Recherces…, 138) e também neste livro o texto sobre o «Sofrimento dos privilegiados: internatos de elite », tendo passado mais tarde pelas Universidades de Yale e de Harvard, mas cuja imagem pública é de um jovem de uma cidade do Texas.

A poesia como resistência

O filósofo francês Jean-Luc Nancy lançou há já alguns meses atrás um pequeno livro intitulado «Resistência da poesia», no qual se pode ler a dado passo:

«É preciso contar com a poesia. É preciso contar com ela em tudo o que fazemos e pensamos fazer, nos discursos, no pensamento, na prosa e na arte em geral. O que quer que haja atrás desta palavra, e mesmo supondo que não haja nada que não seja datado, terminado, deslocado, eliminado, mesmo assim resta a palavra. Uma palavra com a qual há que contar porque assim ela exige. Podemos suprimir o «poético», o «poema» e o «poeta» sem grandes prejuízos ( talvez). Mas com a poesia com toda a indeterminação do seu sentido, e não obstante toda essa indeterminação, não há nada a fazer. Ela lá está, e sempre estará mesmo que a rejeitemos, que desconfiemos dela e que a detestemos (p23/3)

No original:


"il faut compter avec la poésie. Il faut compter avec elle en tout ce que nous faisons et pensons devoir faire, en discours, en pensée, en prose et en 'art' en général. Quoi qu'il y ait sous ce mot, et à supposer même qu'il n'y ait là plus rien qui ne soit daté, fini, délogé, arasé, il reste ce mot. Il reste un mot avec lequel il faut compter parce qu'il demande son dû. Nous pouvons supprimer le 'poétique', le 'poème' et le 'poète' sans beaucoup de dommages (peut-être). Mais avec 'la poésie', dans tout l'indéterminé de son sens et malgré toute cette indétermination, il n'y a rien à faire. Elle est là, et elle est là alors même que nous la récusons, la suspectons, la détestons. " (p.23/23)

Revista Crítica das Ciência Sociais dedica número temático aos estudos para a paz.


A revista de sociologia crítica, editada pelo Centro dos Estudos Sociais da cidade de Coimbra acabou de lançar o seu último número (nº71) dedicado à temática dos estudos para a paz. Inclui textos de José Manuel Pureza e Teresa Cravo (Margem crítica e legitimação nos estudos para a paz), Håkan Wiberg (Investigação para a Paz: Passado, presente e futuro), Vicent Martínez Guzmán (Filosofia e investigação para a Paz), John Galtung (Três formas de violência, três formas de paz. A paz, a guerra e a formação social indo-europeia), Tatiana Moura (Novíssimas guerras, novíssimas pazes. Desafios conceptuais e políticos), Rodrigo Tavares (Por que é a Europa uma região pacífica? Um novo quadro de análise), Elísio Estanque (Trabalho, desigualdades sociais e sindicalismo), Hermes Augusto Costa (A política internacional da CGTP e da CUT: Etapas, temas e desafios).
Recorde-se que os Estudos para a Paz aparecem como conhecimento crítico e, portanto, alternativo ao conhecimento paradigmático dominante no domínio das Relações Internacionais determinado pelos interesses egoístas, da violência e força dos Estados. Hoje, mais do que nunca, é preciso revitalizar estes estudos. Boa hora, pois, para o aparecimento de um conjunto de ensaios sobre esta problemática.

A população índia no Brasil


A população índia no actual Brasil não é homogénea: comporta cerca de 220 povos que falam 120 línguas diferentes. Está estimada em 500.000 a 700.000 indivíduos, representando 0,3& a 0,4% da população total do país, e vivendo na sua esmagadora maioria ainda em aldeias.
Recorde-se que em 1500 quando Pedro Alvares Cabral descobriu a costa brasileiras o número de índios residentes no território do actual Brasil era estimado em 5 milhões. Desde então, muitos dos povos indígenas desapareceram por acção de massacres, escravatura, mortes e maus tratamentos, epidemias e a penetração da civilização predatória do capitalismo europeu.
Fonte: Le Monde