14.2.11

O Egipto, a Tunísia e o conformismo da canção dos Deolinda




“Notícia de última hora: daqui a minutos vai haver uma festa no palácio presidencial!”.
(Faixa na praça Tahrir empunhada por uma egípcia).

O Egipto, a Tunísia e o conformismo da canção dos Deolinda

Afirmar que aquilo que de mais importante se passou nos últimos tempos em Portugal foi o levantamento popular na Tunísia e no Egipto conduz-nos à necessidade de reflectir sobre o que nos aproxima e o que nos distancia desses dois países da outra margem do Mediterrâneo.

Pese embora num primeiro relance não pareça, é o contexto económico o que mais nos aproxima. As coordenadas da macroeconomia e os ditames do funcionamento do capital, com as relações de poder autocráticas que comportam, são os mesmos: de um lado subsidiarização pelos EUA/CIA, do outro subsidiarização pelo Banco Central Alemão. Em ambas as sociedades, dependência e controlo externo, destruição do tecido social, precarização dos assalariados, crescente sub-emprego e desemprego generalizado de camadas jovens, coesão social estilhaçada.

Separa-nos o contexto político e do imaginário social – sem nos determos nas diferenças culturais e identitárias, frequentemente televisionando o dispositivo integrista de olhar o mundo (quer o eurocentrismo maioritário a Ocidente, quer a violência minoritária de grupos religiosos islâmicos), encobrindo o que nessa diferença e diversidade existe de potência contra a supremacia cultural do capitalismo globalizado e da ordem dominante.

Os tunisinos e os egípcios encontram-se numa fase histórica que explica a razão de reivindicarem um estado social e mais justiça no quadro de uma economia de produção. Mesmo essa crença difusa da democratização da sociedade através da centralização do poder em órgãos representativos do Estado parece admissível, se confrontada com o espectro de uma atroz ditadura de 30 anos.

Assiste-lhes o direito a percorrer pelo próprio pé o logro que representa a sociedade do bem-estar, a mentira da equidade e coesão dentro do quadro de uma economia de produção capitalista, e, ironicamente, arroga-se-lhes o direito a ignorarem a gargalhada sarcástica das personagens cosserynianas, mal estas ouvem o argumento da democratização do poder central…

Paradoxalmente, centenas de milhar de egípcios exigem o advento do liberalismo, com mais fé do que os mollahs arvoram a sharia. Esse conceito que explica, em parte, o vazio político que se criou nas sociedades ocidentais, ou melhor, a política do vazio: aquela que fez crer a cada cidadão que a rua não é dele, que lhe inculcou que a sua actividade política é no máximo insultar o circo governativo à hora do telejornal. Nesse vácuo e nesse controlo do imaginário que estabelece como fronteira política a porta de casa, quando muito a porta do café, e três notas a mais ou a menos na carteira no fim de cada mês, cresceu como nunca o terreno mole e dócil para fortalecer a cultura do “nada se passa” e a hegemonia dos poderes dominantes e das oligarquias que o regulam. Sem o liberalismo e o entretenimento não seria possível chegar ao apagão político da sociedade. Pudesse o levantamento popular no Egipto, que despertou a consciência política em colectivo e com focos generalizados de auto-organização, não ser amansado pela vertigem eurocêntrica do liberalismo ideológico. E se desde a queda de Mubarak o Exército tem tentado dispersar os contestatários da praça, que de pedra e cal fizeram da rua a sua vida e da sua vida um gesto político de dissensão, os apelos e as armadilhas do liberalismo serão bem mais sofisticados e sinuosos do que a mera necessidade de restabelecer “o trânsito” evocada pelos militares.

Se parece certo que os líderes religiosos só entraram na carruagem quando o comboio do levantamento popular já tomara balanço, parece evidente que entre as burocracias que ocuparão o Estado egípcio e que desviarão o eixo do movimento de base, da sua energia, da sua alegria desarmada e desarmante, da sua potência para a auto-organização, a mais politizada e dissidente será a Irmandade Muçulmana.

O terror ao islão fabricado a Ocidente parece encandear e simplificar o facto de no Egipto nenhuma força política ser tão consistentemente contra a ordem dominante como a Irmandade Muçulmana, a única que despreza a submissão ao imperialismo político das potências estrangeiras e aos seus interesses; a única que poderá redefinir a história de opressão e cerco do povo palestiniano; aquela que praticamente a solo manteve uma relação política e social quotidiana com os mais espoliados e desfavorecidos (sem querer esquecer, neste âmbito, os movimentos sociais de defesa dos direitos humanos que ao longo dos últimos anos nunca baixaram os braços no Egipto apesar das prisões, da tortura, da humilhação e do controlo a que estavam sujeitos). E que uma leitura apressada e maniqueísta não veja aqui a defesa de um Estado confessional…

O passo que ficará por dar, quer pelos movimentos de base que alastraram pelo Egipto (como na Tunísia), quer pela Irmandade, é o confronto com o profeta MacDonald: a regulação das relações de poder pelo capitalismo, que vai da fábrica à sala de operações diplomáticas da embaixada estado-unidense.

A acumulação do poder político no Ocidente não precisa de uma via autocrática pura e dura, porque o liberalismo concedeu ao ultra-capitalismo uma arma de regulação espectacular: a abdicação das massas de cidadãos ao seu papel político. Na verdade, à interiorização e politização generalizada do conceito chave do liberalismo: a admissão de que o papel das massas é reproduzir na prática e na teoria a crença de que o papel político de cada um não existe. E esse papel político que se toma por apolítico é desempenhado maciçamente no quotidiano do espaço público, no trabalho, nas escolas, nos tempos livres, na cultura, reproduzindo, socializando, politizando, fazendo crescer a mais perigosa das ideologias, aquela que não se vê e prospera como acções do BPN: a ideologia da não-ideologia. Essa ideologia inconsciente e desapaixonada concorre como nenhuma outra para a desmesura do pensamento único e para manter o pensamento dissidente na inépcia e na aridez.

O liberalismo, juntamente com a tecno-ciência e a indústria do entretenimento/cultura da sociedade de consumo, permitiu uma aceleração da coesão capitalista em todas as esferas, numa transversalidade medonha, numa agonia da dissensão jamais vista.
E essa coesão, regulada e determinada hoje pelas oligarquias financeiras, económicas e militares, tem ainda um inatacável álibi humorístico: os hemiciclos da democracia representativa, que nada podem decidir e que representam apenas uma divisão de honra num campeonato de interesses e poderes próprios e viciados.

Há uma parte do hemiciclo português que devia olhar para a praça Tahrir e perceber que a população egípcia deu um passo decisivo contra a ordem política instalada sem líderes nem burocracia, que a polícia foi derrotada e que não se deve chamá-la para controlar os movimentos sociais, que um minuto do movimento auto-organizado numa praça tem uma alegria e vitalidade que nenhum hemiciclo atinge nem transformando São Bento noutro tipo de parque temático…

Quanto à esquerda parlamentar anti-capitalista, de moção de censura em moção de censura, a sua placa giratória contribui para a ilusão de uma regulação mais funcional do capitalismo, para uma humanização e reforma da economia predatória e global em que vivemos. Reféns da lógica da política parlamentar e unicamente aptos a pensarem o seu papel enquanto instrumentos da própria ordem dominante, que lhes impõe o terreno dócil onde se parlamentam as condições necessárias à preservação do status quo, unificando ilusoriamente o terreno que o capitalismo determina como antagónico, as direcções comunistas e bloquistas negoceiam só aquilo que os Mercados estipulam como possível estabilização dos desequilíbrios e iniquidades, reivindicando direitos e concertando salários de 500€ para recauchutarem um antagonismo de negociata do supérfluo por há muito terem abdicado do necessário.

A deriva de pacotes de promoção revolucionários no Facebook, na visão instantânea e publicitária à la Zeitgeist, e os escassos movimentos precários compõem o ramalhete exigindo a integração na… precariedade do sistema. Não deixa de ser a grande vitória a toda a linha de uma única maneira de pensar a economia de vida: enquanto os operários da geração anterior (das lutas dos anos 60/70) queriam reapropriar-se dos meios de produção, hoje os assalariados virtuais e estatísticos querem a esmola-integradora no sistema que lhes espoliou as bases materiais e utópicas, sem que para tal, o dito sistema, lhes ordene a ampla aceitação de um imaginário de submissão.
Imaginário esse, que tem ainda como legitimação a mitologia do progresso que continua a avançar não só perpetuando a iniquidade social e agravando o fosso económico entre ricos e pobres, como exacerbando a diferença entre Ocidente e países pobres, arruinando economias locais e comunitárias.

A almejada sociedade do lazer e da reapropriação do tempo livre que seria assegurada pela explosão da tecnologia, só garantiu a sempre notável capacidade inspiradora da lógica e das estratégias do capitalismo (bem longe das teorias conspirativas, o capitalismo é “inspirativo”, não conspira as condições da base exploratória que o sustenta, inspira-se nessas condições mutáveis para as degradar e moldar ao vórtice lucrativo).

A ideia do progresso (económico) é a falsa abundância que o capitalismo trouxe. Terrivelmente falsa, porque primeiro fez-nos crer que o progresso se confundia com o excesso material, a abundância de bens e da técnica, e depois porque perpetuou num contexto de “abundância” a iniquidade social e a exploração. Como corolário calamitoso, a ideia do progresso acelerou a lógica suicidária da destruição dos recursos do planeta, gerando com a estratégia ultra-produtivista a delapidação de recursos, num curto-prazo transformados em lixo, desperdício e resíduo, e legando às gerações vindouras a impossibilidade de terem acesso a recursos naturais (entretanto escassos ou extintos) para construírem as bases da sua economia e da sua sustentabilidade, e deixando-lhes ainda o problema adicional de se desembaraçarem do lixo e da sociedade do desperdício, e de terem de inventar energias alternativas.

A questão mais premente não é tanto a de saber como é que as classes dominantes recuperaram o controlo sobre a produção e a distribuição de riquezas, mas como conseguiram estabelecer a crença de que essa riqueza pode ser reapropriada socialmente.

E, mais profundo, desmistificar do imaginário que essa crença da riqueza e da sua distribuição social não deve ser questionada em si, que essa riqueza e acumulação desmesurada são um bem em si e que não pode parar.

Se o mito do progresso económico e tecnológico contaminou uma geração revolucionária, quer a que seguia a corrente marxista-comunista, quer a que praticava as premissas teóricas do anarquismo, se o imaginário revolucionária estava encantado e se esse encanto tinha ou não à época condições generalizadas de ser criticado e desmistificado, é uma questão que não encobre a resposta política e colectiva de uma geração (sem nos determos aqui naquilo que as distinguia).

Resposta que fracassou a quase toda a linha – a política, a da transformação das relações de poder, e a económica –, mas que teve como condão alargar o imaginário da geração que deitou ao mundo, ultrapassando as meras conquistas de conforto e bem-estar económico, oferecendo-lhe as condições materiais e conceptuais para uma libertação das possibilidades do que fazer com a realização da sua vida no seio de uma economia excedentária.

Se é compreensível que milhões de jovens tenham perdido a capacidade para a autonomia e a auto-organização, é terrivelmente obsceno que a geração que se auto-descreve como mais culta, mais crítica, mais “academizada”, não veja a chantagem onde se acoita e deseja cumprir a sua vida e a sua realização humana.

(É tão cego e pobre como a última grande concentração de protesto contínuo no país, a luta dos professores, cujo leit-motiv da sua reivindicação era a questão da progressão na carreira e a auto-avaliação dos professores, com a concomitante redução de salários, fazendo da questão remuneratória a base do seu antagonismo à política educativa liberal-capitalista, ignorando a questão do sistema educativo em si, essa fábrica de produção dos valores caros ao capital: competição, individualismo, salve-se quem puder, violência, primado da técnica e da estatística, e menosprezo da auto-organização, da autonomia, da consciência crítica, da solidariedade, do trabalho colectivo e do conhecimento holístico dos saberes).

A magia do liberalismo, ao serviço da sofisticação do imaginário do capital, levou-nos a pensar que a vida económica de cada um é um reduto do mérito e da liberdade individual e não um processo de conquista e participação colectiva.

O único compromisso de que um jovem europeu, excedentário e mergulhado na abundância, faz finca-pé é o compromisso com a sua exploração. Se o insulto que representa na Europa de hoje uma esmagadora maioria “lutar” com a miséria conceptual deste pressuposto, o insulto vai directo e concreto para a geração operária, da classe média e/ou da contra-cultura, que nos anos 60/70 do século passado, encetou processos colectivos de transformação social.

O espantoso não é só esta geração em Portugal, na Espanha, na Grécia, constatar que a economia de produção não lhe garante essa liberdade – quanto mais uma liberdade colectiva e ecologicamente sustentável – como, em vez de pôr em causa essa economia de produção, abdicar desse imaginário do que fazer com a possibilidade da sua liberdade de realização, esvaziando de sentido o legado de lutas emancipatórias da geração que a precedeu e, ainda mais grave, fazendo descer o nível do imaginário da próxima geração à servidão voluntária.

Engrossando call-centers, saltando de shopping em shopping, fazendo de caixa nos hiper-mercados, especializando-se em estágios, “tecnificando-se” com pós-licenciaturas, ou reivindicando, na qualidade de precário ultra-qualificado, um lugar na exploração do sistema, baixará o nível do imaginário da próxima geração a um patamar insolitamente miserável nesta velha e respeitável Europa do século XXI.

Especializado em pedir pela integração na selva do capital, quem é este precário? Aquele a quem nunca faltou nada de básico para sobreviver e que alienou a sua capacidade de viver além do imaginário dado pela fase actual do capitalismo. O precário é aquele que agora se apressa a desejar aquilo que os pais (ou uma parte deles…) conquistaram, o (falhado) Estado social e do bem-estar, aquilo que o capitalismo já nem sequer se dá ao trabalho de vender!

O precário reivindica a integração na sociedade que o abandona, lhe disseca o imaginário, lhe mutila a dimensão emancipatória. O precário europeu é aquele que não sabe escapar à chantagem do sistema. De petição em petição, milhares de jovens precário-privilegiados – essa minoria mundial que tropeça no excesso de bens, de recursos tecnológicos e no património cultural – vive incapaz de se organizar para refazer a (sua) economia, repensar as suas necessidades, e de garantir a autonomia das suas condições de susbsistência e os meios de realização pessoal e colectiva.

Ironia confrangedora, um jovem argelino, tunisino ou egípcio, ao olhar para as vagas migratórias que a Europa tenta regurgitar ou para as bolsas de pobreza do centro do Porto, do Vale do Ave, ou da Andaluzia, sabe melhor do que nós a falsidade do apologético Estado social europeu, assim como entende mais facilmente o cerco e as armadilhas à independência económica montado pelas economias reguladoras do FMI, EUA e Banco Central Europeu.

As loas generalizadas à música dos Deolinda só revelam a miséria ideológica cavada pelo capitalismo: toda a emancipação e dignidade humana se resumem à assunção de um niilismo existencial e colectivo que só pode ser colorido com a plena integração na máquina do capital. A área cinzenta da vida dos canudo-iludidos é a incapacidade de pensarem a sua vida além e aquém do capitalismo e das fronteiras que a sua lógica demarca, através do seu marketing, da sua indústria cultural e de entretenimento, da burocracia governativa, e no seio do império quotidiano da autocracia das empresas.

A canção dos Deolinda “não é um grito de revolta”, é o sussurro do conformismo. E a glorificação do que existe é o conformismo do imaginário. A real e profunda precariedade é a precariedade do imaginário, aquela que dita e exige o direito à exploração. Se quisermos, o apodrecimento e desaparecimento do pensamento utópico.

Já não é apenas tornar-se insensível com a degradação das relações humanas e perder toda a perspectiva de autonomia pessoal e colectiva, mas a pura rendição da consciência.
Entretanto, os palácios na Europa continuarão a fazer a festa.

Júlio do Carmo Gomes