9.9.07

Para acabar com o fundamentalismo escolar


(Excerto do livro Uma sociedade sem escola, de Ivan Illich)

Neste livro que teve grande impacto, «Uma sociedade sem escola» ( de 1971), Ivan Illich explica como a instituição escolar confiscou a educação. Tal como o hospital se apropria da saúde, a instituição escolar monopoliza o saber.


Muitos estudantes, em particular aqueles que vêm das famílias modestas, sabem intuitivamente o que lhes traz a instituição escolar. Ela ensina-lhes a confundir os métodos de aquisição do saber e a matéria de aprendizagem e, depois de apagada a distinção, ei-los prontos a admitir a lógica da escola: quanto mais tempo eles ficarem sob o seu império, melhores serão os resultados, ou então, o «processo de escalada» conduz ao sucesso! É assim que os alunos são instruídos na escola. É assim que eles aprendem a confundir ensinar e aprender, a crer que a educação consiste a passar de uma classe para outra, que o diploma é sinónimo de competência, que saber utilizar a linguagem é o mesmo que dizer algo de novo…


A sua imaginação, agora sujeita à norma escolar, deixa-se enredar e substitui a ideia de valor pela ideia de serviço: basta pensar nos cuidados a ter com a saúde, e ele não vê outro remédio que não seja o tratamento médico; a melhoria da vida comunitária passará pelos serviços sociais; confundirá a segurança individual com a protecção da polícia, assim como a segurança nacional com o exército, a luta quotidiana de sobrevivência e o trabalho produtivo. Saúde, instrução, dignidade humana, independência, esforço criativo, tudo isso passará a depender do bom funcionamento das instituições que pretendem servir esses fins, e toda a melhoria é concebida por via da alocação de créditos suplementares aos hospitais, às escolas e aos demais organismos (…)


Os pobres são enganados quando julgam que as crianças devem beneficiar de uma escolaridade. Que isso seja uma promessa como na América latina, ou uma realidade como nos Estados Unidos, tanto num caso como no outro o resultado é o mesmo: esses doze anos de escola fazem das crianças do Norte, deserdadas e adultos inválidos, porque sofredoras, e das crianças do Sul, desalentadas e atrasadas, porque não se sentem beneficiárias. Nem no Norte, nem no Sul as escolas asseguram a igualdade. Pelo contrário, a sua existência desencoraja os pobres, torna-os incapazes de tomar nas suas próprias mãos a educação. Em todo o mundo a escola prejudica a educação, porque arroga-se como a única forma de a dar. E muitos acabam por acreditar que os seus insucessos próvam que a educação é uma tarefa dispendiosa, de uma incompreensível complexidade, e que releva de uma alquimia misteriosa – a pesquisa é – porque não ? – a pedra filosofal.


A escola apropria-se do dinheiro, dos homens e das boas vontades disponíveis para a educação, e , ciosa do seu monopólio, esforça-se em proibir as outras instituições que assumem as tarefas educativas. Além disso , ela desempenha um papel importante nos hábitos e nos conhecimentos que são requisitos para as diferentes actividades da vida social, quer seja no trabalho, os lazeres, a política, a vida na cidade, e até dentro da própria família. Ela não permite a estas diversas actividades tornarem-se meios educativos privilegiados, mesmo quando os preços dos estabelecimentos de ensino se tornam proibitivos…

Os estabelecimentos de ensino levam-nos a uma situação paradoxal: precisam cada vez mais de dinheiro e uma tal escalada orçamental só conduz ao reforço do seu poder de destruição quer nos países que aceitam esse esforço financeiro como no plano internacional. No momento em que se torna visível que o nosso meio físico está ameaçado pela poluição, e em breve ficará inabitável se não tomarmos cuidado e não mudarmos os métodos de produção, talvez seja altura de nos apercebermos que existem outras formas de poluição. A vida social, a existência do indivíduo, são envenenados pelos subprodutos da segurança social, da saúde, considerados como produtos de consumo obrigatório e concorrenciais.



Esta escalada» em matéria escolar é tão perigosa quanto a dos armamentos, sem que tenhamos muito bem consciência disso. Trata-se de um fenómeno geral: por todo o lado os orçamentos escolares enchem desmedidamente, mais que o número de alunos e o produto nacional. Por todo o lado, os créditos alocados se mostram insuficientes e não respondem às expectativas dos pais, dos professores e dos alunos, e embora o problema dos não-escolarizados seja esquecido torna-se impossível encontrar os capitaos e as vontades necessárias para tentar arranjar uma solução.

Excerto do livro Uma sociedade sem escola, de Ivan Illich (1926-2002)


Ivan Illich nasceu em Viena Frequenta os estabelecimentos religiosos até 1941. Expulso pelas leis anti-semitas acaba por terminar os seus estudos secundários em Florença., antes de se formar em Teologia e em Filosofia na Universidade gregoriana de Roma. Quando o Vaticano se preparava para o nomear para a carreira diplomática, ele escolhe ser o vicário duma paróquia em Nova Iorque. Vice-reitor da Universidade católica de Ponse ( em Porto Rico) entre os anos de 1956 a 1969, depois professor na Universidade Fordham ( New York), ele abre em 1961 o Centro Intercultural de Documentação (Cidoc) no México onde ele tenta aplicar as suas teorias sobre a escola, a convivialidade ou a energia.

Será que o ideal do bom aluno é verdadeiramente desejável?

Será que o ideal do bom aluno, do aluno «sério» é verdadeiramente desejável?
Não será que a reverência e a submissão que normalmente vão associadas àquela categoria de aluno não são elas próprias altamente problemáticas, uma vez que implicam frequentemente – mas, nem sempre - uma relação de dependência , isto é, um processo de «infantilização»?




Texto de Charlotte Nordmann, ensaísta, tradutora e professora de filosofia.
Acaba de lançar em França o seu novo livro «La fabrique de l’impuissance. 2. L’École entre domination et emancipation» ( A fábrica da impotência. 2. A Escola entre a dominação e a emancipação)
Face às contradições da escola republicana e às sirenes da reacção, é chegado o momento de sair do impasse e da infantilização. Charlotte Nordmann propugna por uma outra escola, a da autonomia e da emancipação.

Tradução para português do texto publicado no Le Monde de l’Education nº 360, Julho/Agosto de 2007



Para tomar consciência do desafio que aqui lançamos é preciso partir de um problema fundamental que não foi enunciado de forma muito clara até hoje. A escola republicana baseia-se desde a sua origem numa contradição irredutível. A sua função é, com efeito, dupla: ela é, simultaneamente, factor de democratização e de hierarquização.

Estes dois princípios contraditórios casaram-se por força da ideologia do trabalho, do mérito e da sua recompensa: as hierarquias produzidas pela escola teriam pelo menos um fundamento aceitável, elas seriam a manifestação da ascensão legitima dos «melhores», isto é, dos «merecedores do mérito».
Ainda hoje, é-nos dito que a escola deve garantir a «igualdade de oportunidades»: tendo renunciado à igualdade, pelo menos, garantiríamos que todos tivessem as mesmas oportunidades à partida – cabendo depois a cada qual dar provas do seu valor individual e de arranjar meios para assegurar a sua promoção inidividual.

Esta contradição, que sempre se mostrou altamente discutível tanto por quem se preocupasse em ter uma perspectiva objectiva como por quem quisesse salvaguardar a democracia, tornou-se hoje em dia insuportável. Com efeito, quando a percentagem das crianças dos meios populares que acediam à Universidade, pouco relevante nos anos de 1960, diminui ao longo dos últimos anos; quando desemprego massificado veio para ficar; e quando a precariedade no trabalho se tornou a condição de vida mais comum, é mais que premente questionar como é que a ideia de celebrar o trabalho e o mérito tem hoje qualquer eficácia?

É justamente no momento em que os discursos reactivos mostram não terem aprendido nada com a realidade que eles se tornam mais presentes e mais insolentemente ruidosos. Ouvimos continuamente: é preciso «restaurar a autoridade», o «respeito pelos professores», valorizar «o valor do trabalho». Porque tudo isso se perdeu, que tudo isso foi desvalorizado, calcado aos pés dos inconscientes beneficiários é que nos encontramos nesta situação. E eis que Maio 68 é visto como o coveiro de uma escola que era verdadeiramente democrática pois que, pelas suas exigências iguais para todos, dava aos filhos do povo ( aos mais «meritórios» dentre eles, bem entendido) os meios para se alçarem ao nível dos seus superiores, os tais que a pátria devia estar orgulhosa! E teriam sido livros como «A Reprodução» e os «Os Herdeiros» os incendiários que lançaram o fogo ao palácio da República! Denunciando a parcialidade dos princípios de selecção aquelas obras minaram os fundamentos da nossa democracia. A escola da República já não desempenha a sua função de factor de «ascensão social» ( mas quantas vagas existiriam nessa ascensão social?) uma vez que, desde então, ela tinha renunciado a defender os seus princípios fundamentais: o trabalho, o esforço, o mérito, e sobretudo, o respeito. E não falta quem vá ao ponto de dizer que cada um é responsável pelo seu destino e que a sociologia não foi criada senão para fornecer desculpas aos miseráveis – tal como a ficção da liberdade não teria sido criada, a acreditar em Nietzsche, senão para poder punir a quem ela é retirada.

Será que é possível imaginar um discurso mais evanescente como este? Mas a verdade é que é este tipo de discurso melancólico, isto é, desesperado, antecipando a sua própria impotência, que lamenta o fracasso anunciado da cruzada contra-a-corrente de uma época cujo processo foi já instruído, de uma época indigna em que a palavra democracia se tornou o estandarte da vulgaridade e da mediocridade… Poder-se-á imaginar discurso mais odioso do que aquele que culpabiliza os que não tem outro remédio que se levantar cedo acusando-os de ser responsáveis por aquilo que estão a sofrer? De qualquer modo porque é que é preciso levantar cedo e trabalhar? E que trabalho vai ter que ser feito? São questões como estas que estão proibidas agora, depois do regresso em força de um discurso globalmente anacrónico que está hoje muito em moda.

Tratar-se-ia então de fazer o luto de uma certa esperança democrática, de apostar sobretudo em garantir as condições de promoção social de alguns indivíduos. Salvar alguns, desprezando aqueles que pela sua origem social estarão condenados aos cursos técnicos. Tratar-se-ia, no fundo, de reconhecer a ordem social tal como a reconhecemos, os seus princípios e fins, como os únicos possíveis, e desde logo, para nós próprios nos submeter a ela, defendê-la e respeitá-la.

É aqui que se mostra particularmente salutar virarmo-nos para os que, desde há muito tempo, pelo menos, desde que se implantaram as estruturas da sociedade capitalista, procuraram pensar e fazer uma outra escola.

Será que desejamos uma sociedade em que cada um tem que contar só com as suas próprias forças, em que tem de se submeter à ordem porque «é preciso respeitar a autoridade»? E como solucionar o insucesso escolar? Com evitar o abandono escolar?

Mas uma outra questão, talvez fundamental , se poderia levantar: será que o ideal do bom aluno, do aluno «sério» é desejável? Será que a reverência e a submissão não são problemáticas uma vez que implicam frequentemente a dependência , isto é, a «infantilização»?

Uma palavra condensa os efeitos produzidos pelo sistema escolar tal como ele existe actualmente: a impotência. Impotência dos alunos, desprovidos de toda a relação autónoma aos saberes e à prática da escrita e da palavra. Impotência dos professores, constantemente confrontados com esta realidade e desprovidos de meios para fazer que a máquina funcione de outra maneira, resvalando as mais das vezes para um sentimento de absurdo. Impotência dos pais que esperam muito da escola sem compreender porque é que ela é incapaz de satisfazer as suas promessas. A cada um, o funcionamento da escola parece inculcar que «as coisas são assim e não de outro modo», que é preciso passar por isso («Faz o 12º ano e logo se verá!», ouve-se a dizer), que é preciso seguir por esse caminho.

Falam-nos de «democracia na escola», mas qual o controle que os alunos têm sobre a definição do seu curso e a sua organização? Certamente que os princípios da pedagogia institucional permitiriam dar uma resposta concreta. De qualquer modo, se o requisito para uma política democrática é difundir a ideia que um outro mundo é possível, então um dos mitos que urge desfazer é o da escola: será que uma outra escola é possível?

A contradição estruturante da escola está em vias de se agravar hoje em dia (…) acentuando a hierarquia já existente entre os estabelecimentos escolares e reenviando para a universidade o acesso aos saberes e a posse de competências necessárias para uma actividade intelectual autónoma. Esperemos que esta situação insustentável, para os que encaram de outro modo a escola, encontre rapidamente os meios para a sua superação.

Mas para que uma outra escola seja possível, ou para que a escola possa funcionar de outra forma, é preciso acabar com a ideia de que se trata de um problema puramente pedagógico. O que produz a escola não depende simplesmente dos métodos que são utilizados ou dos valores que são defendidos. Mas também não se trata de uma questão de meios de financiamento.

Para começar, mais do que métodos, termo que sugere sempre um espírito instruído e competente guiando o espírito incerto e fraco, deve-se falar de «agenciamentos», de situações simultaneamente materiais e humanas, que produzam o poder de cada sujeito. Nesta matéria Freinet e a pedagogia institucional sugerem dispositivos muito concretos que permitiriam sair da relação dual professor-aluno, e que ajudariam a que a máquina escolar não alimentasse o narcisismo ou a angústia do aluno, ou ainda o desejo de «agradar» ao professor.

Mas o mais urgente é re-politizar a questão – e não apenas nos termos redutores da resistência à «mercantilização da escola», por mais real que seja esta ameaça. Ou seja, é urgente assumir a contradição inerente à lógica da escola a fim de interrogarmo-nos acerca dos meios da majorar a função emancipadora em detrimento da sua função de hierarquização. O que significa interrogarmo-nos acerca dos enquadramento políticos do domínio da leitura, da relação à palavra e da relação aos saberes.

Como fazer com que estas práticas estimulem a autonomia?
Como fazer com que o reconhecimento do valor dos saberes transmitidos não se converta em respeito do princípio da competência dos «instruídos» e dos «especialistas»?

Pretendeu-se democratizar o ensino, pô-lo ao alcance de «novos públicos», «simplificando» o conteúdo dos programas e reduzindo-os aos seus elementos primários. Mas esta saudável aspiração esvaziou de sentido os saberes a ensinar, evacuando sistematicamente a sua dimensão problemática, e tornando invisível o facto de que tais saberes serem construídos historicamente, e que são animados por polémicas e debates, graças aos quais os seus significados políticos são revelados.

Trata-se pois de interrogarmos a nossa própria relação com a escrita, a palavra, o conhecimento, procurando ao mesmo tempo desenvolver também em nós a autonomia.

Não mais cultivar a deferência para com aqueles que são supostos possuir o saber, mas reivindicar para cada um o direito de participar na elaboração desse saber, que deve mostrar aquilo que ele realmente é: algo em construção, de polémico, enfim, vivo.

A emancipação política é indissociável da emancipação intelectual: trata-se de sair do circulo de infantilização e começar a pensar e desejar possíveis outros.

Perante uma situação incontestavelmente precária, portador do pior mal, é urgente sair da angústia que nos paralisa, que nos impede de ver que o esforço para manter o status quo é o caminho mais certo para a ruína do que queremos defender. É tudo menos ingénuo dizer-se que é necessário restaurar a nossa confiança na nossa capacidade de agir e cultivar o nosso desejo de uma real democracia.

Charlotte Nordmann

Sobre a autora:
http://www.liberation.fr/transversales/portraits/218073.FR.php