21.12.05

As experiências de colectivos de advogados nos Estados Unidos ( «Law Commune»)


( Nota: Reprodução de um texto publicado no nº 7 da revista «Actes, cahiers de l’action juridique» e que foi incluído no livro «Justiça nos Estados Unidos», editado pela Centelha, na sua colecção «Direito e Sociedade» numa tradução de Manuela Leandro. Como o livro já se encontra esgotado, e de difícil consulta, julgamos útil a divulgação deste texto. )


O primeiro colectivo de advogados «Law Commune» - «Legal Collective » ou «Communal Law Firms» surgiu nos Estados Unidos do misto manifestação-repressão. Estava-se em Março de 1969 em Nova Iorque.
Um período de prisões em massa tinha-se seguido à agitação nas Universidades, o movimento contra a guerra no Vietname e as lutas dos negros que tinham abandonado as tácticas não violentas do período dos direitos civis.

Desde o Outono de 1968 que jovens juristas, estudantes de direito, escritores, organizadores e militantes do «Movement» - alguns dos quais tendo conhecido a prisão e o cárcere – buscavam uma solução para a carência de advogados tradicionais. Estes, com efeito, quando os manifestantes se lhes dirigiam para que os defendessem, litigavam a maior parte das vezes, tentando despolitizar a questão – o que não correspondia, de modo nenhum, aos desejos dos seus clientes.

Mas, fazer face à necessidade imediata da defesa dos militantes - «um militante na rua é mais útil do que um militante encarcerado» - não era a única preocupação dos fundadores desta comuna.

Numa análise mais profunda, o colectivo testemunhava o fim de uma ilusão – a que tinha levado ao aparecimento dos programas de assistência jurídica ( os «Legal-Services» e os «Public Defenders»)

Não existe nos Estados Unidos um sistema único e uniforme para assegurar aos pobres o acesso à justiça. Mas uma coexistência de estruturas e de diversas instituições de apoio judiciário. Pode-se encontrar lá, simultaneamente, o que tem sido a nossa assistência judiciária gratuita e apoio judiciário e , desde os anos de 1960, uma nova forma de instituição: «os Public Defenders» e os «Legal Services».
Este tipo de instituições podem ser financiadas, quer pelos fundos públicos ( Federais e do Estado), quer por fundos privados ( doações particulares, de empresas, de associações – tais como a American Bar Association – ou de fundações).

Neste sistema, os advogados são assalariados, empregados contratualmente a tempo inteiro para a defesa dos pobres.

Sem negar que este sistema representa um progresso considerável em relação a outras formas de assistência judiciária, uma vez que os pobres podiam, a partir de agora, obter o concurso e o apoio de advogados não apenas em casos de processo, mas de maneira contínua e preventiva, muitos jovens advogados que tinham sido «defensores públicos» faziam questão em denunciar os limites e insuficiências e, no fim de contas, a burla.

É certo que não se trata para eles de preconizar a política do pior e de recusar a defesa das reivindicações dos «Public Defenders» que lutam para obter melhores condições de trabalho e um funcionamento mais eficaz dessas instituições, mas parece-lhes ilusório acreditar que um aumento dos créditos concedidos a esses programas – que sofreram, aliás, severas restrições sob a administração de Nixon – possa resolver os problemas.

Pois, na realidade, esses programas não fazem senão institucionalizar a pobreza.

Tomar os meios pelos fins é, com efeito, recusar-se a reconhecer a desigualdade fundamental das relações económicas na sociedade capitalista.

«Nem advogados de ricos, nem advogados de pobres, recusamos ser gestores ou cúmplices de um sistema que reforça a visão de um direito separado de toda a realidade social, espécie Deus ex machina, agindo com toda a neutralidade»

O colectivo de advogados de Nova Iorque, e os que se fundaram em seguida, têm portanto, antes de mais, raízes, motivações, objectivos políticos.

Foi neste tecido político que seguidamente se enxertaram os considerandos propriamente jurídicos.

O colectivo resulta da vontade de apoiar a «nova esquerda», as organizações e os movimentos implicados na luta social e política. A «Law Commune » assenta na convicção de que as mudanças são necessárias na sociedade e que uma vez que o direito não é neutro, os advogados não poderiam ser simples técnicos do direito contentando-se em tratar individualmente e caso a caso os problemas, ignorando as raízes económicas e sociais da pobreza e da opressão.

É um desafio lançado a uma profissão conservadora, elitista, protectora, sobretudo, dos interesses das classes no poder.

É também um desafio lançado à ideologia jurídica tradicional, bem como ao sistema económico e político em vigor.

Está-se, portanto, a ver quais são os meios utilizados: defender os militantes, rejeitar o estatuto de advogado profissional – membros de uma elite e de uma confraria – investido de um saber especial, estabelecer uma nova forma de organização e de prática jurídica conforme aos seus fins.

A partir daqui, os colectivos de advogados norte-americanos conhecidos por «Law Commune» não são comparáveis ou assimiláveis aos escritores associados ou às «Law firms» de tipo tradicional. Trata-se de algo completamente diferente e, sobretudo, uma organização ideológica.

No domínio jurídico, quais são os objectivos definidos pelos iniciadores desta fórmula?

Se as «Law Commune » pretendem ser a arma jurídica dos grupos ou dos indivíduos que travam uma luta política ou social, o seu fim é, para além dessa missão, definir uma estratégia jurídica geral.

Importa quebrar a mística da lei, desvelar-lhe os mistérios, dissipar as suas obscuridades, explicar os seus modos de funcionamento e de intervenção, em resumo, desmistificá-la.

Os advogados dos colectivos tentam instituir relações de igualdade, de participação com os seus clientes, mesmo dentro dos seus escritórios. E não mais alimentar relações de autoridade, de hierarquia ou de subordinação.

«Tentámos criar novos tipos de relações com os nossos clientes. Não queremos servir-nos das nossas competências jurídicas para nos colocarmos numa posição dominante. Explicamos-lhes o que fazemos e porque é que o fazemos e esperamos que eles participem nas tomadas de decisões. Quando supomos que os nossos clientes se podem defender a eles próprios encorajamo-los a fazerem-no.»
( Nota: Nos Estados Unidos é sempre possível às partes num processo apresentarem-se elas próprias perante os tribunais. O concurso de um advogado nunca é obrigatório, qualquer seja a jurisdição).

Os colectivos de advogados têm, em primeiro lugar, tendência para apoiar juridicamente os indivíduos que, como eles, põem em prática o espírito comunitário, organizando-se em grupo de acção ou de defesa 8 por exemplo, associações de inquilinos, movimentos de libertação da mulher, comités de bairro, etc) ou que militem em formações políticas.

Os colectivos de advogados consideram-se como os auxiliares daqueles que lutam para obter maiores poderes de decisão e de controlo sobre a sua vida quotidiana.

«Apercebemo-nos rapidamente que era preciso seleccionarmos a nossa clientela», explica um dos membros do colectivo de advogados de Bóston; «quando fundámos o nosso colectivo, pretendíamos prestar serviços jurídicos de qualidade às pessoas que antes os não podiam obter, os abandonados, os marginais. Mas depressa apercebemo-nos de que isso era uma ratoeira na qual era muito fácil deixar-se cair; toda a gente tem necessidade de ser ajudada – ora, o que nós verdadeiramente queremos é utilizar as nossas qualificações profissionais para apoiarmos aqueles que se organizam colectivamente e estão implicados nas lutas políticas.»

No fim de contas, evidentemente, é entre os militantes políticos que os colectivos encontram os clientes mais aptos a compreenderem a apreciarem a sua organização.
Mas as relações com os grupos políticos são por vezes desencorajantes.

«A nossa experiência com as organizações políticas foi realmente frustrante porque, com efeito, os militantes vêm ver-nos porque nós somos advogados e não porque sejamos politicamente comprometidos. Tentamos agora ter relações mais políticas do que jurídicas com essas organizações.»

Certos clientes vêm consultar um advogado em especial, outros vêm pelo colectivo no seu conjunto; os colectivos tentam evitar a personalização das relações clientes-advogados.

«Visto que somos um colectivo, esperamos que os nossos clientes nos tratem como tal e sejam capazes de ter relações com qualquer membro do colectivo. É por isso que, quando os clientes fazem questão em contactar um advogado em particular para determinado processo, nós tentámos que, na vez seguinte, eles contactem um outro membro do colectivo.»

Sendo a gratuitidade a regra para os processos políticos, para sobreviver, os colectivos são levados a dedicarem-se também a causas não directamente ligadas aos combates políticos e ideológicos. O que representa para muitos, sobrecarregados com essas questões, uma frustração constante.

«Não pensamos que deva ser nossa obrigação ocuparmo-nos de todas as pessoas que connosco contactem e tentamos escolher os clientes de que nos queremos ocupar em função das nossas opções políticas.

Aquilo que, em termos ideais, gostaríamos de fazer era organizar o nosso trabalho de maneira a não estarmos assoberbados pelos problemas jurídicos para podermos ocupar-nos mais activamente de problemas políticos. Não queremos despender inutilmente a nossa energia em questões que, de facto, não nos interessam.

É certo que uma parte do nosso trabalho político compreende trabalho jurídico, mas gostaríamos de ter a possibilidade de nos dedicarmos mais ao trabalho político.»

O peso destas questões pagas é portanto muitas vezes mal suportado pelos membros do colectivo e é muitas vezes encarado como uma perda de energia e de tempo, que os afasta daquilo que eles consideram o seu verdadeiro trabalho.

Tentar conciliar as exigências políticas e as necessidades financeiras não é tarefa fácil, e certos colectivos que confundem por vezes moral e política, têm dificuldades em sobreviver.

Em geral, os colectivos recusam-se a defender os culpados de violação ( nota: nos USA regista-se uma violação em cada 10 minutos), os traficantes de droga, os racistas, as grandes sociedades capitalistas, os proprietários contra os inquilinos, e alguns não aceitam, nos divórcios, defender os maridos ( considerando-se que o homem beneficia de uma vantagem económica e social, sendo a relação de forças a seu favor), excepto se os cônjuges estão em total acordo. Os clientes «não políticos» que podem beneficiar do serviço de assistência judiciária e não o sabem são informados disso e orientados para esses serviços.

A reputação de bons advogados cobrando honorários razoáveis, não impede os colectivos de, quando os clientes podem pagar, cobrar honorários equivalentes aos praticados pelos escritórios tradicionais, os quais, de resto, não hesitam em enviar para as «Law Commune» aqueles clientes que consideram mais «bizarros».

No fundo, as questões típicas de que as «Law Commune» se ocupam são a defesa dos militantes, das objecções de consciência, dos prisioneiros, dos inquilinos com problemas com os seus senhorios e as questões de descriminação racial e sexual.

Alguns conseguiram aquilo com que os outros apenas sonham fazer: trabalhar com os sindicatos. É o caso de um colectivo de advogadas em Bóston, cuja actividade é essencialmente orientada para o mundo do trabalho e sobretudo para os trabalhadores que elas ajudam na criação de secções sindicais.

Mas os poderosos sindicatos não são normalmente seus clientes. E compreende-se porquê…

O colectivo de advogados considera iguais, todos os membros do colectivo. Nem a antiguidade, nem a experiência, nem os diplomas conferem privilégios. Todos os membros do colectivo, quer sejam advogados, estudantes ou secretários são trabalhadores jurídicos e têm voz igual nas decisões a tomar relativamente à política geral do conjunto, à escolha dos clientes, aos vencimentos de cada um e até a distribuição dos processos está sujeita a uma deliberação colegial.

Habitualmente é no decorrer de uma reunião semanal que as questões são debatidas e tratadas em comum. A organização surge deste modo como antídoto do síndroma individualismo/espírito de competição.

No sistema das « Law Communes» uma secretária pode ser mais bem paga do que um advogado – os vencimentos são fixados em função das necessidades e não de uma hierarquia social convencional. De qualquer forma, as remunerações são fixadas num máximo, sendo o excesso das receitas afectadas à luta política e ao desenvolvimento do colectivo e servindo para assegurar a defesa jurídica das causas políticas.

É assim que um dos colectivos de Nova Iorque investiu parte dos seus lucros na edição de um manual de militante «The bust book» - espécie de vademecum destinado a informar os militantes político das disposições legais de que se devem fazer valer e da estratégia a seguir no caso de serem presos.


Outros colectivos puderam destacar, a tempo inteiro, alguns dos seus membros para prestar o seu concurso gratuito, aquando da revolta da prisão de Áttica. Um outro colectivo decidiu proporcionar aos seus membros cursos de espanhol afim de poder ocupar-se com mais eficiências dos seus clientes portoriquenhos e mexicanos.

Os encargos sociais e as despesas profissionais são realmente suportadas pelo colectivo. Alguns colectivos vão mesmo ao ponto de reembolsar empréstimos feitos para estudos.

As sedes, sem decoração, com as paredes cobertas de cartazes políticos, estão em geral situadas em bairros abandonados pelas «law firms». Bairros populares, onde os colectivos podem verdadeiramente implantar-se para participarem na vida política.

Alguns colectivos – levando até ao fim aquilo que eles consideram como a sua lógica própria – formaram verdadeiras comunas: os seus membros vivem juntos.

Tais são, portanto os traços significativos de uma nova forma de organização e de prática jurídica nos Estados Unidos.

Serão os colectivos de advogados o esboço de uma fórmula para o futuro? Ou deverão ser considerados como epifenómenos? É difícil fazer um balanço.

Há colectivos que já soçobraram, nomeadamente o mais célebre de todos que foi o colectivo pioneiro em Nova Iorque logo no momento em que acabava de alcançar uma vitória retumbante com a absolvição de 21 membros d Partido dos Panteras Negras, contra os quais tinham sido feitas mais de uma centena de acusações.
Houve quem pretendesse que o vedetismo o tinha matado. Quanto aos próprios membros, atribuem a sua dissolução a uma dimensão desmedida que não lhes permitia já funcionar colectivamente de forma eficaz. Mas outros colectivos surgem.

É certo que num país onde a ideologia e o formalismo jurídico têm tanta importância, onde todos os problemas políticos só são postos ( e escamoteados) em termos jurídicos - a questão Watergate foi um exemplo flagrante – o isolamento dos colectivos é grande, tanto mais quanto não beneficiam do apoio de um verdadeiro movimento de oposição estruturado.

Nestas condições, assumir as contradições que atingem aqueles que vivem num regime que recusam, conduz muitas vezes muitos deles a porem problemas mais morais ou psicológicos do que políticos, e a confundirem comprometimento político e apostolado.

Mas não se contentando em esperar pelo «grande dia», os colectivos de advogados provam, desde já, que é possível organizarem-se e trabalharem de maneira verdadeiramente democrática.


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Nota de esclarecimento sobre o
Sistema Judicial nos Estados Unidos


Existem duas jurisdições ou sistemas:



A) As Jurisdições Federais


I – De Direito Comum ou de assuntos constitucionais, com 3 graus:

a) 100 tribunais distritais (US Districts Courts) com cerca de 300 juízes distritais que decidem sobretudo as questões relativas à Constituição, às leis federais, aos tratados, bem assim como nas questões relativas ao Estado federal ou entre os Estados e entre cidadãos de diferentes Estados.


b) 11 Tribunais de Recurso (US Courts of Appeal for the Circuit) com 80 juízes de círculo que decidem em recurso

c) O Supremo Tribunal, com 1 presidente ( The Chief Justice of US) e 8 Conselheiros ( Associates Justices)

II – De Excepção ou legislativos

Existem vários como:
- Os «US Courts of Claim» que regulam os conflitos entre os cidadãos e a administração federal

- Os US Customs Courts» que regulam as questões alfandegárias

- Os «United Court of Customs and patente appeals» que decidem em recursp os casos precedentes.



B) As Jurisdições de Estado

São formadas por quatro instâncias:

a) Juízes de Paz no campo e magistrados nas cidades que estão reunidos nos «Municipale Court» ( Direito Comum), «Family Court» (Direito de Família) e «Juvenile Court» ( Direito dos menores)

b) Vários Countys Courts em cada Estado e que são constituídos por um juiz único e um júri, e que julgam em primeira instância matéria civil ( direito das pessoas e dos bens) e matéria penal.

c) 1 ou 3 Superior Courts por cada Estado ( Juízes colegiais e júris) que julgam em recurso

d) 1 Supremo Tribunal por Estado ( juízes colegiais)

Só há liberdade a sério...



Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
Habitação, Saúde, educação

Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
Quando pertencer ao povo o que o povo produzir


Sérgio Godinho