Texto retirado de Jornal universitário de Coimbra A Cabra (06/02/2007)
Autor:
Elísio Estanque
estanque@fe.uc.pt
A actual convulsão do mercado de trabalho e a crescente precariedade no emprego, induzidas pela globalização da economia, recolocaram de novo as desigualdades sociais no centro das preocupações. E a desvalorização dos títulos académicos, no quadro das mudanças em curso no ensino superior, insere-se nesse processo.
Durante o século passado, e sobretudo desde o pós-Guerra, o desenvolvimento tecnológico e a modernização do sistema produtivo elegeram as qualificações – e portanto os diplomas escolares – como critério decisivo de recrutamento de funcionários e técnicos nas mais diversas áreas da administração e do mercado de trabalho, fazendo assim engrossar a nova "classe média" ou os, também designados, empregados de "colarinho branco". O alargamento do ensino público e a crescente democratização do acesso à universidade, em particular devido à acção do Estado providência nas sociedades democráticas mais avançadas, instituíram o ensino superior como uma plataforma fundamental de mobilidade social ascendente.
Em Portugal este processo ocorreu, como se sabe, num período bem mais recente do que noutros países, e ainda assim permeado por múltiplas contradições e insuficiências. Durante muito tempo o acesso a um diploma universitário permitiu, no nosso país, aceder com relativa facilidade a um emprego qualificado, com o correspondente estatuto social, e, além disso, o próprio diploma "universitário" constituía em si mesmo um importante símbolo de status. Isto, enquanto o acesso à universidade era exclusivo das elites.
A formação escolar, lado a lado com a situação socioprofissional e o nível de rendimento, constituem os três critérios basilares de definição do "estrato" ou "classe social" a que se pertence. Mas é preciso notar, por um lado, que as condições "de partida" (ou seja, a classe de origem) são muitas vezes determinantes da posição que se consegue alcançar, quer no nível educacional quer em todos os outros indicadores de status, desde logo porque a própria família, as suas posses e por vezes até o nome, é em si mesma um elemento importante na definição do prestígio e das oportunidades de cada um. Por outro lado, a importância de um dado recurso – por exemplo o diploma de "licenciatura" – é tanto maior quanto mais ele for escasso, e portanto, vai-se desvalorizando à medida que se massifica. É nesse sentido que se pode dizer que as desigualdades sociais não se fundam apenas em diferenças gradualistas, mas sim numa lógica de classe que perpetua os privilégios de umas à custa da exclusão ou exploração de outras.
Num cenário como o actual, em que o grau de licenciatura está a tornar-se acessível a uma parte significativa dos jovens portugueses (embora apenas a uma minoria dos filhos da classe baixa), o acesso aos diplomas académicos mais elevados e exigentes obedece à mesma lógica selectiva. O grau de licenciatura vem perdendo valor distintivo à medida que o título de "Dr" se banaliza. Quer isto dizer que a disputa em torno dos títulos escolares é expressão das contradições estruturais e dos conflitos de classe que continuam em vigor na nossa sociedade. Mesmo quando estes se esbatem no plano político continuam muito vivos no plano simbólico. Assim, a tendência será para que as famílias das elites pressionem no sentido de criar condições para que os seus filhos alcancem graus de mestrado e doutoramento e frequentem as escolas mais exigentes (e mais caras). Não se trata aqui de uma estratégia intencional, mas de um processo social que objectivamente cria novas e sucessivas barreiras, de modo a que atravessá-las seja sempre mais difícil. Desde logo, porque subir mais um patamar no ensino superior exige uma despesa incomportável para as classes baixas – além de ser impossível por razões económicas, em geral não chega sequer a ser percepcionado como necessidade – e, depois, porque os critérios de selecção para os bons empregos obedecem aos mesmos valores das próprias elites e tendem, portanto, a fazer prevalecer a defesa dos seus interesses específicos.
Como afirmou recentemente o conhecido sociólogo Ralf Dahrendorf, mesmo aqueles (poucos) que chegam às elites pelo seu talento fecham as portas atrás de si logo que tenham alcançado o seu status. "os que lá chegaram por ‘mérito’ passam a querer ter tudo o resto – não apenas poder e dinheiro, mas também a oportunidade de decidir quem entra e quem fica de fora". Assim, pode dizer-se que a retórica da "meritocracia" não passa, regra geral, disso mesmo, nomeadamente no acesso ao emprego de um jovem recém formado. Em vez disso, parecem cada vez mais fortes as redes informais e o "capital social", o que remete directamente para a questão das influências que a família de origem possui. Muito embora a formação superior e o diploma avançado seja um requisito fundamental, ele exige como complemento decisivo, não apenas o mérito e o conhecimento, mas sim conhecer quem vai abrir a porta. Como dizem os ingleses «the important is not what you know, but who you know». E isto é também uma questão "de classe".
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