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Mahatma Gandhi: o filósofo da não-violência, para quem "tudo o que vive é o teu próximo"
(de Roberto das Neves. Publicado em “Entre Colunas: Ensaios sociológicos e filosóficos”. Editora Germinal, Rio de Janeiro, 1980)
Mohandas Karamchand Gandhi, o "Mahatma", nasceu a 2 de outubro de 1869, em Porbandar, pequena cidade da península de Kativar, na costa do imenso território da Índia. A ele, mais que a outrem, se deve a extraordinária epopeia que foi a emancipação daquele país, então com cerca de 250 milhões de habitantes, e actualmente com 550 milhões.
Para melhor se compreender esta pequena biografia, é conveniente recordar que a protecção à vaca é a característica do hinduísmo, na qual Ghandhi descortina uma das mais altas afirmações da evolução humana. O culto do animal sagrado dos hindus remonta, pelo menos, a três milénios. Vacas e macacos perambulam em liberdade pelas ruas e becos das cidades, onde os homens que lhes passam ao lado os acariciam, agradecendo-lhes a ajuda que, segundo os livros sagrados, os deuses receberam do mundo animal, de "todo o mundo inferior, com o qual o homem selou um pacto de aliança e confraternização". Na expressão do próprio Mahatma, este pacto "transporta o ser humano para além dos limites da sua espécie e afirma a identidade do homem com tudo o que vive". Espancar uma vaca ou um macaco seria terrível sacrilégio. Calcula-se que em Benares, cidade onde foi erigido um templo a esses animais, dezenas de milhares de vacas e macacos cruzam-se diariamente com os 40.000 brâmanes que ali habitam.
Gandhi, que vê "nos meigos olhos da vaca um poema de ternura", atribui a escolha desse animal precisamente ao facto de ser ela "a melhor companheira do homem e fonte de abundância". Para Romain Rolland (in "Mahaíma Gandhi"), o grande revolucionário hindu, cujo pensamento ninguém teria compreendido melhor que o santo de Assis, tem absoluta razão quando afirma que a protecção à vaca "é o presente da religião hinduísta ao mundo", pois ao preceito do Evangelho "ama teu próximo como a ti mesmo!" acrescenta este outro: "Tudo o que vive é o teu próximo!".
O PENSAMENTO DE GANDHI E SUAS FONTES
Mohandas distingue-se sempre, desde criança, por seu apaixonado amor à Verdade. Recorda, a propósito, um de seus biógrafos, que, um dia, na escola primária, estando um inspector britânico a interrogar os alunos sobre a ortografia de uma palavra inglesa, o professor a soprava para os ajudar. Mohandas, a quem tal ajuda repugnou, foi o único, por este motivo, a errar. Outros traços de carácter que os seus biógrafos coincidem em atribuir-lhe são: a marcha, como o seu mais agradável exercício físico; a jardinagem, como o seu predilecto passatempo; uma notável habilidade manual; a pertinácia, e a repugnância pela violência.
Não é difícil descobrir as raízes do pensamento e das inclinações de Gandhi nas tradições hindus. Uma das mais importantes destas é, sem dúvida, o jainismo, corrente fundada por Jinas, guerreiro de estirpe aristocrática, que se crê ter vívido entre 559 e 527 antes da nossa era e se tornou monge, asceta e pregador. À semelhança do budismo, o jainismo repele a autoridade dos Vedas, os sacrifícios e as castas. Os jainas, que se contam hoje por mais de 2 milhões, crêem na reencarnação das almas, mas rejeitam um Deus supremo. Os monges Jainas formulam cinco votos: não fazer mal a qualquer ser vivo, não mentir, não roubar, nada possuir e abster-se de relações sexuais.
Outra visível fonte do pensamento de Gandhi é o famoso poema Ramaiana, composto por Valmiki no século 5°. O autor, antigo bandido, chegou, mais tarde, à santidade, invocando o nome de Rama (protótipo da mais absoluta rectidão moral e sexta encarnação de Vixnu), cuja história, segundo se conta, uma voz baixada do Céu ordenara ao ex-bandido narrar. As derradeiras palavras pronunciadas por Gandhi, ao tombar ferido a tiro pelo seu assassino, foram as seguintes, da famosa oração hindu: "Senhor, perdoa os três pecados devidos às minhas limitações humanas; / Tu estás em toda a parte, mas eu Te adoro aqui; / Tu não tens forma, mas eu Te adoro nestas formas; / Tu não tens necessidade de louvor, mas eu Te ofereço / estas orações e esta minha saudação. / Senhor, perdoa os três pecados devidos às minhas limitações humanas!"
O VEGETARISMO COMO NORMA DAS RELIGIÕES ORIENTAIS E PRÁTICA DA MAIORIA DOS HABITANTES DO NOSSO PLANETA
O vegetarismo, ou seja a ausência da carne (por carne entende-se também peixe, aves e ovos) na dieta habitual da maioria dos habitantes da Terra, é antiquíssima norma devida, recomendada pelas mais seguidas das religiões e correntes filosóficas. Buda, Lao-Tsé, Pitágoras, Platão, Diógenes, Sócrates, Epícteto, Epicuro, Ovídio, Plutarco, Tertuliano, São João Crisóstomo, São Clemente de Alexandria, Leonardo Da Vinci, São Francisco de Assis, Cervantes, Spinoza, Descartes, Danvin, Voltaire, Rousseau, Tolstoi, Elisée Réclus, Ruskin, Lázaro Luís Zamenhof, Thoreau, Albert Shweitzer, Albert Einstein, Jean Rostand. G. Bernard Shaw, Han Ryner, E, Armand, Maria Lacerda de Moura, Anie Besant, Leadbeater, Krishnamúrti, José Oiticica, Alex Carrel, etc., etc., tantos dos mais notáveis homens de todos os tempos, foram ou são vegetarianos. Entre os cristãos, contam-se, além de outros, os Adventistas do Sétimo Dia, que desenvolvem em todo mundo fecunda actividade a favor do vegetarismo, e as ordens monásticas católicas Trapistas, Cartuxos e Cameldulenses.
CABRA BALANDO NO ESTÓMAGO DE GANDHI
Em sua "Autobiografia", recorda Gandhi que, antes da sua partida para Londres, onde se formaria em Direito e seria secretário da Sociedade Vegetariana, fez voto a sua mãe de manter-se fiel às tradições hindus, jamais ingerindo carne, da terra, do ar ou da água. Antes, porém, numa crise mental por que passara, decidiu, por influência de um companheiro de adolescência, comer carne. Demos a palavra ao próprio Mohandas: "Para tal fim, marcamos o dia da experiência. É difícil explicar nitidamente como eu me sentia. Assaltava-me, por um lado, o sentimento de entusiasmo por essa "reforma" e novidade do meu modus vivendi, reviravolta na minha vida; por outro, a vergonha de esconder-me, como um ladrão, para praticar um gesto de tamanho significado. Não sei dizer qual dessas duas sensaçõss prevalecia em mim. Saímos à procura de um lugar solitário, à beira de um rio, e aí vi carne pela primeira vez em minha vida. Era de cabra. Não me agradou. Era dura como couro. Não consegui sequer mastigá-la. Comecei a me sentir mal e parei de comê-la. Passei uma noite horrível. Horroroso pesadelo se apoderou de mim. Todas as vezes que eu procurava adormecer, parecia que uma cabra viva se agitava, balando, dentro de mim, e eu sentia vontade de levantar-me e fugir, roído de remorsos".
A ESPOSA ENSINA-LHE A NÃO-VIOLÊNCIA
De conformidade com os costumes da índia multi-secular, Mohandas ficou noivo, aos 13 anos, de Casturbai, da mesma idade. "Foi (conta ele em sua "Autobiografia") ela quem me ensinou a não-violência, quando tentei dobrá-la à minha vontade. A sua resistência obstinada, de um lado, e, do outro, a tranqüila submissão no sofrimento que padecia por causa da minha estupidez, agiu de tal modo em mim, que comecei a envergonhar-me e deixei de acreditar que tinha o direito de dominá-la. Destarte, ela se tornou o meu mestre de não-violência".
A CUMPLICIDADE DO CRISTIANISMO COM A VIOLÊNCIA
Apesar da sua simpatia pelo Sermão da Montanha, que comparou a uma poesia gujarati, Ghandi só conseguiu ler, de ponta a ponta, um livro da Bíblia, o Gênesis, pois todos os demais lhe provocaram sono. A propósito, escreve o Padrs Balducci, na apresentação do livro "Gandhi, la Forza delia Non Víolenza" de A. Sessa: "Se, não obstante sua ilimitada veneração por Cristo, jamais levou a sério a ideia de se tornar cristão, foi provavelmente porque nunca logrou descobrir que relação pudesse haver entre Cristo e o cristianismo das várias igrejas que, durante muitos séculos, foram cúmplices da lógica da violência". "Na Europa (acrescentou) milhões crêem no cristianismo, mas estão comprometidos contra os próprios ensinos de Jesus, numa orgia fratricida, que se traduz em crimes e derrame de sangue, o que significa negar o cristianismo".
É DO ANARQUISMO CRISTÃO DE TOLSTOI A MAIS FORTE INFLUÊNCIA RECEBIDA POR GÂNDI NO TERRENO DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO
Como assinala Giorgio Borsa, em sua obra sobre "Gandhi e o Ressurgimento Indiano", é do pensamento sociológico do filósofo, genial romancista e anarquista cristão russo Leon Tolstoi, a maior influência recebida pelo revolucionário hindu. Gandhi continua as suas leituras, sempre à procura de uma verdade religiosa. Lê o Corão e, de Max Miiller, "Índia: What can it teach us?" (Índia: que coisa pode ensinar-nos?). Relê os Upanishad e O Reino de Deus está Dentro de Nós, de Tolstoi. È a leitura deste último livro que lhe revela, de maneira clara e definitiva, o significado positivo e activo da não-violência, que o Bhagavad-Gíta e o Sermão da Montanha lhe tinham já deixado entrever.
A Satyagraha ("força da alma", literalmente) e o Ahimsa ("não violência") são como que "os pulmões espirituais" de Gandhi. A desobediência civil, um aspecto do Satyagraha, é uma violação civil, uma violação não-violenta das leis imorais do Estado. Outro aspecto do Satyagraha é a não-cooperação, a recusa de colaboração com o Estado, quando, na opinião do colaborador, ele se torna corrupto. A não-colaboração é acessível, segundo Gândi, até mesm aos de mentalidade mais infantil, e pode ser praticada pelas massas. Ela liberta o mundo das cadeias da violência, do alternar sem fim da ofensa e da vingança. A Justiça, na opinião de Lanza del Vasto, não é suficiente. "É necessária aquela Justiça não-abundante, que se chama não-Violência ou Bondade e que desabrocha no Amor".
O primeiro a aplicar a rejeição da violência como método de acção pública (resistência passiva, desobediência civil, boicote) foi Gandhi, nos anos de renascimento indiano. O mesmo método foi, mais tarde, aplicado, com igual êxito, nos Estados Unidos, por Martin Luther King (condecorado, em 1964, com o prémio Nobel da Paz), no movimento cm defesa dos direitos civis dos negros daquele país, e, na Itália, pelos anarquistas Aldo Capitani e. Danilo Dolci, na recusa do serviço militar.
O JEJUM, COMO INSTRUMENTO DE CURA FISIOLÓGICA E DE REPARAÇÃO MORAL
Gandhi utilizou o jejum como instrumento principal de prevenção e cura das doenças e como reparação moral. "Eu compreendia (explica em sua autobiografia) que o tutor ou professor é responsável pelas faltas dos seus discípulos. Percebia, ainda, que os culpados não podiam dar-se conta de todo o meu desgosto e do que significava o erro, se não me vissem fazer penitência por eles. Impus-me, por isso, um jejum de sete dias e jurei não mais fazer senão uma refeição diária durante quatro meses e meio. Outro incidente relacionado com esse obrigou-me a outro jejum de quatorze dias. Os resultados morais obtidos superaram todas as minhas perspectivas".
OS "ASHRANS" "PHOENIX" E "TOLSTOI"
Para melhor realização dos seus ideais pedagógicos e sociológicos, idealizou Gandhi os ashrans (colónias) "Phoenix" e, mais tarde, "Tolstoi". Na primeira teve como principais colaboradores o tipógrafo inglês Albert West, Henry Polak (jovem advogado israelita, que o aconselhou a ler o Unto this Last, a famosa obra do anarquista inglês Ruskin); o arquitecto alemão Hermann Kallenbaeh e o sul-africano católico e terciário franciscano Vicent Lawrence, que na velhice foi recebido e condecorado pelo papa João 23. Para a primeira, a "Phoenix", inspirou-se na experiência dos mosteiros trapistas, um dos quais existente em Marian Hill, perto de Durban, na África do Sul, onde Gandhi então vivia. Sabendo que os Trapistas, como outra comunidade católica, a dos Cartuxos, não comem carne, fora visitá-la, descrevendo-a, numa reportagem para a revista "The Vegetarian", órgão da Sociedade Vegetariana de Londres, de que era secretário, como "uma pequena e pacífica vila modelo, verdadeira república situada numa esplêndida localidade nas colinas em frente ao mar. A maior parte dos monges eram alemães, mas ali se vivia a mais absoluta igualdade racial". Gandhi, que conhecia o catolicismo apenas através da literatura protestante da época, acrescentou: "Se isso é catolicismo, tudo o que contra ele se diz não passa de dolorosa mentira". O ashram ou colónia "Phoenix" tinha uma população de seis famílias, européias e indianas. Era uma mini-república dirigida segundo o pensamento de Gandhi, onde se vivia uma vida de grande intensidade espiritual, e centro propulsor de nova vida.
A "Fazenda Tolstoi" surgiu perto de Johannesburgo, onde Gandhi tinha necessidade de um ashram, de uma comunidade que fosse exemplo vivo da sociedade que ele preconizava, um ambiente estável para as famílias do Satyagraha, continuamente em viagem e nas prisões, Seu devotado amigo, o arquiteto alemão Hermann Kallembach, que possuía uma fazenda de mil e cem hectares, próximo de Lawley, nas imediações de Johanesburgo, cedeu-a, gratuitamente, aos satyagraios. Foi, sob o nome de Tolstoi Farm, cópia fiel da Phoenix.
70% DE TERRAS DA ENORME EXTENSÃO DA ÍNDIA DOADAS ÀS COOPERATIVAS
Seguindo métodos totalmente distintos dos de Marx, em cujas teorias não acreditava, logrou Gandhi, com a colaboracão do seu amigo, o conhecido anarquista Vinoba, levar os proprietários dos maiores latifúndios da índia a doarem cerca de 70 % das terras às cooperativas fundadas pelos dois, tornando coleticvas enormes extensões de terra, que por muitos séculos haviam sido propriedade particular e fonte de crimes sem conta.
Desta maneira, pôde o Mahatma, esse homem de olhos escuros, pequenos e cheios de bondade, de pés descalços e de vestes simples, de palavras singelas e bondosas, que poderão parecer estranhas a muitos de nós, mas das quais Jesus e Francisco de Assis poderiam assumir a paternidade, derrubar o maior Império do mundo, e levar a cabo uma das maiores e mais pacíficas revoluções da História.
Bibliografia: M. Gandhi, "An Autobiography"; Romain Rolland, "Mahatma Gandhi"; Geoffrey Aske, "A Study in Revolution"; M. Biardeau, "India"; B. R. Nanda, "Gandhi, the Mahatma"; Taya Zinkin, "Gandhi, the heroe of the no-violence"; Louis Fischer, "A Vida de Gândi"; J. D. Brown, "India"; Eleanor Morton, "Womenbeind Mahatma Gandhi"; Padre Balducci, '"Gandhi, Ia Forza delia Non Violenza"; Jean Roracin, "Le Siècle de l’Asie".