13.4.05

Em memória de Ricardo Marques: Médico e Objector

Ricardo Marques, objector de consciência ao serviço militar, e médico ginecologista, foi assassinado na Somália pelos senhores da guerra, quando participava numa missão humanitária


Ricardo Marques foi objector de consciência ao serviço militar e médico ginecologista do Hospital se Santo António, no Porto. Numa missão humanitária da conhecida ONG "Médicos Sem Fronteiras" à Somália, o Ricardo Marques foi selvaticamente assassinado em 20 de Junho de 1997 por um bando de um dos senhores de guerra somalis,, ele que tanto trabalho médico tinha desenvolvido no continente africano.

Em sua homenagem reproduzimos um texto de autoria do Ricardo Marques que foi publicado no nº 5 de Abril de 1981 do Boletim de Objectores ao serviço militar, editado pelo Núcleo de Objectores do Porto.
Um médico pacifista, internacionalista, amigo da espécie humana.
Nunca mais te esqueceremos, Companheiro.


Porque sou Objector (texto de Ricardo Marques)


"Jorge, meu velho amigo, como foste parar à tropa?" W. H. Auden

Objecto, agora, enquanto tenho ainda razões para permanecer vivo. Faço-o com plena consciência e conhecimento de causa. Não me enrolam com os velhos mitos de masculinidade com que metem mais um nas fileiras. Se homem não é ter os peitorais maciços. Nem ter a coragem de espetar a barriga nas baionetas inimigas. Ser homem não é cumprir ordens cegamente, mesmo que elas violentem os imperativos da nossa consciência. Pelo menos não é essa a minha definição. Homem, é ser capaz de desobedecer, mesmo que isso signifique a morte. É ser, sobretudo e sempre, civil, individual, autêntico...

Objecto porque é urgente que o faça. Enquanto nas fábricas de armamento os técnicos militares constroem bombas capazes de destruir repetidas vezes o planeta, labutando afanosamente no seu próprio suicídio, o homem comum, a quem a vida não diz demasiado, encara a perspectiva de destruição eminente como uma ligeira comichão. Talvez espere o lançamento dos mísseis para lhes dizer que parem a meio da sua trajectória...

Objecto, agora, enquanto não há uma verdadeira ameaça de agressão externa ( e nunca será demais referir que qualquer guerra a nível europeu, de ataque ou de defesa, nuclear ou convencional, teria efeitos absolutamente desastrosos para a população, a economia ou cultura da Europa). Defender os que me são queridos com a minha velha caçadeira é sinónimo de uma morte heróica e romântica, mas não será, com toda a probabilidade, o mais indicado para a sua própria integridade. É verdade que é difícil defender um país sem um exército organizado (embora a Nicarágua me faça atentar numa perspectiva nova dos factos) mas há também concepções muito inovadoras de defesa não armada - e não seria de desejar que a defesa de um país passasse antes de mais, pela segurança dos seus habitantes e não é menos verdade que dificilmente se encontrarão melhores momentos para desmilitarizar do que este.

Atrever-me-ei mesmo a dizer que, não sendo Portugal um dos países mais avançados a nível da Objecção de Consciência ( não me refiro às leis, mas à divulgação e consequente adesão pública) poderia dar-se o caso de que o simples facto de eu ser incorporado nas forças armadas constituir, por si só, uma ameaça de agressão aos países mais vanguardistas neste campo, e , logo, mais um atentado à paz mundial. Em semelhante situação não posso, de forma alguma, contemporizar. Quero com isto dizer que a minha Objecção de Consciência é espacio-temporalmente madura.

Não me parece , mesmo nada, indicado esperar por uma guerra para objectar; nessa altura, a minha objecção já não poderia evitá-la, enquanto que poderia ter contribuído para isso se fosse feita antes. Isto porque acredito firmemente que, tanto como a objecção em si, o direito a ela, a divulgação da sua existência e o seu reconhecimento legislativo são elementos extremamente profícuos para a paz mundial. Enquanto não estiver perfeitamente claro para todos, governantes e governados, que a vida de cada um está nas suas próprias mãos e que a opção de um modus vivendi é absolutamente individual, continuaremos a ter esses exércitos cegos, insensíveis, brutalizados, esmagando tudo à sua passagem.

Assumo o risco de vos chocar ao dizer-vos que voluntariamente faria um treino militar, se não tivesse a plena consciência de ir contribuir para a minha morte. Um exército poderoso não é, de forma alguma, uma garantia de segurança. Muito pelo contrário: quanto mais forte é um exército, mais agressivo ele se torna.

É inconcebível este grau de militarização que se vive, numa situação que parece sem saída, que ensombra a vida dos nossos filhos e o futuro do nosso planeta. É absolutamente imprescindível desmobilizar, evolucionar no sentido de uma mais sadia liberdade. Quebrar as baionetas. Abandonar a carcaça inacabada da nova bomba que vem aí. É urgente e necessário inventar uma nova convivência, a reconciliação, a solidariedade da espécie...quanto antes! Senão, talvez seja preferível, se queremos ter um túmulo bonito, lançar mão da pá e começar a abrir a cova.

Ricardo Marques

Consultar:
http://www.obgyn.net/ricardo/ricardo.htm

http://www.nortenet.pt/web/agpereira/ricardo.html


Os não-lugares


Os não-lugares é um conceito proposto por Marc Augé, antropólogo francês, para designar um espaço de passagem incapaz de dar forma a qualquer tipo de identidade.

Para fundamentar este novo conceito, Marc Augé começa por discutir a capacidade da antropologia, tal como a conhecemos, em analisar e interpretar a sociedade actual.

Decide por isso construir a noção de sobremodernidade que se diferencia da pósmodernidade, na medida em que esta última é «concebida como a adição arbitrária de traços aleatórios» ao passo que a sobremodernidade releva de 3 figuras de excesso:
a) excesso de tempo por efeito da aceleração da história em que tudo se tornou acontecimento e que, por haver tantos acontecimento, já nada é acontecimento. Por isso, organizar o mundo a partir da categoria tempo deixou de fazer sentido.
b) Excesso de espaço por efeito da mobilidade de pessoas, bens, informações, imagens, o planeta se ter encolhido, e sentirmo-nos implicados em tudo, mesmo nos lugares mais remotos
c) Excesso de individualismo por efeito do enfraquecimento das referências colectivas, e porque as singularidades ( dos objectos, grupos) organizam cada vez mais a nossa relação com o mundo.


Auge define o lugar, enquanto espaço antropológico, como um espaço identitário, relacional e histórico.

O não-lugar será então um lugar que não é relacional, não é identitário e não histórico.

As auto-estradas, os aeroportos, as grande superfícies são exemplos de não-lugares.
Mas também «campos de refugiados, campos de trânsito, grandes espaços antes concebidos para a promoção do mundo operários e tornados insensivelmente o espaço residual onde se encontram os sem abrigo e sem emprego de origens diversas: por toda aparte espaços inqualificáveis, em termos de lugar, acolhem, em princípio provisoriamente, aqueles que as necessidades do emprego, do desemprego, da miséria, da guerra ou da intolerância constrangem à expatriação à urbanização do pobre ou ao encarceramento» ( Marc Auge, in Le Sens des Autres,1994, pgs 169


Os não-lugares são povoados de «viajantes» ou «passeantes» em trânsito. Viajam, solitários, nesses espaços de ninguém. São não-lugares livres de identidades.

No fundo, os não-lugares revelam uma nova forma de viver o mundo. Mas o retorno ao lugar pode ser o sonho dos que frequentam os não-lugares.


Ler:
Augé,Marc (1994) Não-lugares: introdução a uma antropologia da modernidade, Lisboa, Bertrand editora