17.1.05

A baixa tendencial da taxa de motivação derrubará o capitalismo?

«O dinheiro não dá felicidade» é um adágio, inventado certamente pelos ricos, que se tornou cada vez mais verdadeiro.
Nos estados Unidos, a acreditar numa sondagem Gallup, a riqueza média por habitante triplicou desde a última guerra passando de 15.000 para 35.000 dólares ( cerca de 11.500 a 26.700 euros) anuais, enquanto a proporção das pessoas «muito felizes» não pára de descer desde 1960.
Face a esta realidade os economistas não deixam de se preocupar. Entre eles está Daniel Kahneman, Prémio Nobel da Economia de 2002 que acaba de abrir um centro de investigação para compreender o que cada vez mais parece ser um sério revés para a a civilização capitalista, nas palavras do Financial Times desta semana.
Karl Max profetizara que o capitalismo destruir-se-ia por ele mesmo, minado por uma baixa tendencial da taxa de lucro. Era até irremediável o seu fim por efeito da substituição do trabalho pelo capital e uma mais-valia extraída a uma mão-de-obra cada vez mais reduzida.
A verdade é que, não obstante estes prognósticos, o capitalismo regista hoje mais do que nunca lucros records, dignos dos anos mais lucrativos do século XIX.
Porém, a experiência de vida de todos nós, ao olhar à nossa volta, leva-nos a uma nova profecia do declínio capitalista. Com efeito, a motivação no trabalho desce rapidamente a olhos vistos, e atinge um número crescente de categorias sociais. O que gera um paradoxo. É que enquanto o novo capitalismo cognitivo e high-tech sente a carência de maiores recursos humanos, o que se passa na realidade é justamente o contrário: os assalariados, os quadros superiores, a até os dirigentes sentem-se fatigados, e mostram-se críticos face à situação, pretendendo dedicar mais do seu tempo à «vida pessoal».
E, na verdade, o debate sobre o trabalho nos países desenvolvidos ainda mal começou. 62 assalariados norte-americanos, em cada cem, são de opinião que a sua carga horária de trabalho é pesada, enquanto 53 sobre cem declaram-se «muito fatigados».
Até o custo dos medicamentos e dos tratamentos anti-stress atingiu a soma de 300biliões de dólares anuais segundo o New York Times, ou seja, 3% do PIB.
No Japão o fenómeno do karoshi ( a morte por sobrecarga de actividade) tomou proporções alarmantes.
E na Inglaterra, o Ministério da Saúde calcula que o stress provoque um absentismo calculado em 13 milhões de dias, em cada ano.
E para completar o cenário começam a aparecer livros como o de Corinne Maier, investigadora na EDF francesa ( a correspondente à nossa EDP) com títulos que retratam bem esse mal-estar : ««Bom dia, preguiça. Da arte e da necessidade da fazer omens possível numa empresa( edição francesa da Michalon ).
zero de falhas, zero de stocks, externalização, emagrecimento permanente, responsabilização dos agentes, avaliação contínua das suas prestações: o management moderno provocou uma revolução nas relações de trabalho, desde os operadores das máquinas até aos criativos. As trajectórias profissionais são regidas pela sacrossanta mobilidade: Richard Sennet, sociólogo da Universidade de New York, estima que um jovem americano que entra hoje no mercado de trabalho terá que mudar 11 vezes de emprego ao longo da sua vida. O emprego foi repartido em vários contratos de trabalho a prazo e a tempo parcial. Antes, a condição do assalariado era a estabilidade, hoje tornou-se a insegurança, como bem nota Robert Castel no seu livro «L’Insécurité Sociale» ( edição francesa da Seuil)
E nem os quadros superiores escapam à tormenta. Todos os estudos revelam o ser enorme descontentamento. « Os quadros tinham um contrato de lealdade para com a a sua empresa, que lhes conferia prestígio.Mas isso acabou.», declara Gilles Alenxandre, director de estudos do Institut Entreprise et Personnel. E acrescenta: «Os mais novos não deixam de demonstrar apego e ardor, é certo, mas tudo isso não demora a esmorecer, e a converter-se até em desamor.»
Ora como pode o capitalismo resolver esta contradição entre a necessidade de implicação dos seus agentes e a crescente desmotivação que estes dão conta cada vez mais?
A reacção das empresas não deixa de ser lamentável. «Elas não procuram pessoal motivado, mas sim pessoal eficaz Procuram mais a satisfação do cliente que a do seu empregado.», prossegue Gilles Alexandre. E tentam superar essa falta de motivação através da «normalização» à americana das tarefas e dos resultados tal como aparecem nos sistemas informáticos. Restam as adesões locais e circunstanciais que emprestam alguma vida. Mas de uma maneira geral o assalariado sujeita-se pura e simplesmente aos constrangimentos e opta por um desinvestimento pessoal.
Aumentar os salários? É uma resposta possível. Os prémios sempre foram usados como a promissora cenoura que era entregue a quem dela fizesse merecimento. Acontece que duas evoluções retardaram ou modificaram este tipo de dispositivos. Por um lado, a exigência de alto rendimento empresarial ( 15%) na época do capitalismo financeiro desequilibrou a partilha tradicional entre salário-lucro a favor deste último. Por outro lado, a chegada de novos mercados como a China e a Índia promete endurecer a concorrência que se traduzirá por um novo apertar do cinto pelas próprias empresas.
Reinventar um compromisso entre a mobilidade económica e a protecção social constitui para Robert Castel o novo desafio. Pensar no regresso à estabilidade dos modos de trabalho do «fordismo» de ontem releva de algum lirismo. Tornar o Estado social mais flexível e activo seria condená-lo. Resta, assim, reconfigurar os sistemas sociais de modo a que cada qual possa estar em condições de enfrentar a necessidade da mobilidade.

(adaptação de um texto de Eric Le Boucher, publicado no Le Monde de 16/01/2005)






Razões para o desassossego social

Sabias...

- que as multinacionais representam 80% do comércio mundial e que o comércio entre elas já é de 30 % de todas as operações comerciais do mundo

- que entre 1980 e 1993 as 500 maiores multinacionais mundiais suprimiram 4,4 milhões de empregos ao mesmo tempo que multiplicavam as suas vendas por 1,4, os seus activos financeiros por2,3, e os rendimentos dos seus quadros superiores em 6,1

- que a riqueza total das 10 pessoas mais ricas do mundo equivale a uma vez e meia a todos os rendimentos juntos dos países menos desenvolvidos do mundo

- que não há 6000 milhões de dólares anuais para assegurar a educação básica mundial, mas entretanto há 8000 milhões de dólares que anualmente se gasta nos Estados Unidos em cosméticos

- que não há 13000 milhões de dólares anuais para assegurar a saúde e a nutrição para a população mundial, mas em contrapartida já há anualmente 17000 milhões de dólares para gastos em mascotes na Europa e nos Estados Unidos

- que não há 80000 milhões de dólares anuais necessários para prover s todos os serviços básicos a nível mundial, mas um tal montante é inferior á fortuna das 7 pessoas mais ricas do mundo


- que se todos os habitantes da Terra consumissem o mesmo que consomem os cidadãos dos Estados Unidos seriam necessários 3 planetas Terra para alcançar essa produção

- que 2800 milhões de pessoas vivem com 1,80 euros por dia

- que 1300 milhões de pessoas são pobres e que centenas de milhões morrem permanentemente de fome

- que a OCDE prevê para um futuro próximo um desemprego controlado até 30 % da população activa e que 1/3 da população mundial poderá ficar sem meios de subsistência

- que a infraestrutura das 37000 multinacionais tem um valor equivalente a 2 vezes o PIB dos países da América Latina

- que o capital de todas as multinacionais somam, em conjunto, mais de 31000 bilhões de dólares, com os quais podem a qualuqer momento estrangular qualquer economia nacional


E sabias ainda que:


- 4000 milhões de pessoas sobrevivem com rendimento inferiores a 2 dólares diários e uns 800 milhões sofrem de fome

- 17 milhões de crianças morrem cada ano por causa de doenças que são fáceis de tratar

- 900 milhões de pessoas, 15 % da população mundial está sem trabalho

- a terceira parte dos habitantes do hemisfério sul não chega aos 40 anos de vida

- 20 % das crianças do planeta não estão escolarizados; 250 milhões trabalham como mão de obra escrava para as multinacionais a fim de ajudar as suas famílias

- 200 milhões de mulheres estão subempregadas, trabalhando sem qualquer seguro para doença e acidente profissional; e que 70 % das pessoas que vivem na pobreza são mulheres.
Para além de que 80 % da população refugiada e vítima das guerras são mulheres, sendo estas também 60 % da população analfabeta

- em cada hora que passa uma superfície dos bosques tropicais igual a um campo de futebol é pasto de chamas, e que devido à desertificação o mundo já perdeu quase um terço da sua área cultivável ao longo dos últimos 30 anos

- em mais de uma centena de países o rendimento per capita é hoje mais baixo que há 15 anos atrás, isto é, 1600 milhões de pessoas vivem pior hoje do que nos princípios dos anos 80; e que no espaço de uma geração o fosso entre países ricos e países pobres se veio a duplicar

- na União Europeia 50 milhões de pessoas vivem na pobreza e 5 milhões sem tecto

- a miséria e a pobreza de um lado da sociedade significa a riqueza e a opulência do outro – o que é bem demonstrado pelo facto do rendimento das 258 pessoas mais ricas do mundo ultrapassarem o conjunto dos rendimentos recebidos por 45% da população mundial (2.700 milhões de pessoas)


Será que precisas de mais razões para lutar contra a iniquidade capitalista?

A má reputação

Nesta aldeia sem pretensão
Eu tenho má reputação
Maltrapilho ou engravatado
Acham que sou mal comportado.
Porém eu não faço nem mal nem bem
Nesta minha vida de zé-ninguém.
Mas que vida mais triste tenho
Querendo viver fora do rebanho. Sou insultado por toda a gente,
Menos p’los mudos – é evidente

Quando há festa nacional
Fico na cama, isso é fatal.
Porque a música militar
Nunca me fará levantar
Porém não me sinto nada culpado
Por não gostar de me ver fardado.
Mas os outros não gostam que eu siga um caminho sem ser o seu.
De dedo em riste todos me acusam
Salvo os manetas –porque o não usam

Quando vejo um ladrão sem sorte
Fugir dum chui que é bem mais forte, meto o pé e com uma rasteira
Lá vai o chui pela ribanceira.
Nenhum mal faço a quem bem come
Deixando escapar um ladrão com fome.
Mas na Guarda Nacional
Não acham isto natural.
Todos correm atrás de mim
Menos os coxos- seria o fim.

Nunca na vida fui profeta
Mas sei o fim que se projecta.
Vão-me atar a corda ao pescoço
P´ra me lançarem a um poço.
Porque me fecham nesta redoma?
Por o meu caminho não ir dar a Roma
Mas que vida mais triste tenho
Só por viver fora do rebanho.
Todos verão o meu funeral
Menos os cegos – é natural

Tradução de “Mauvaise Reputation” de Georges Brassens, por M. Correia, Luís Cília, inserido no disco deste último “Marginal”