11.11.06

Os narizes das classes dirigentes








«Suas Excelências estão contemplando ou estão simplesmente dormindo? Seria talvez tempo de sairmos desta dúvida, apoderando-nos dos narizes das classes dirigentes, e sacudindo-lhes por algum tempo com o respeito vigoroso, profundo e tenaz que todos os narizes altamente colocados devem merecer à crítica e à opinião das massas»
Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão,
in As Farpas



Cruel dilema: serão os narizes verdadeiros ou de cera? No museu das Tristes Figuras há muito que os escultores aguardam impacientes, perante a quantidade de narizes ( e de cera) que se lhes anuncia. Há-os de todos os feitios: a classe dirigente é fértil em figuras, quase todas tristes. Sinais do fado ( o nosso, não o deles…). Narizes há que convergem, outros que divergem, outros que se mantêm orgulhosamente sós. O narigal, mercê do método de Hondt, apresenta ao olhar dos observadores, tipos e tamanhos de pencas variegadas. Nem a reforma agrária, já na sua versão corrigida, consegue colectivizar tais apêndices: eles são uma reserva preciosa como argumento eleitoral.
Sem o seu nariz identificador, que seria dos líderes partidários, dos ministros, secretários de Estado e demais políticos que fazem a delícia e a alegria dos Portugueses e das Portuguesas.
Senhores dos seus narizes, mas indiferentes aos odores que perfumam de norte a sul este jardim plantado, passeiam-se impávidos e serenos por entre os lenços dos seus concidadãos nasalmente menos resistentes. Nem um oceano de desodorizantes chagaria para proteger a capital de certas pestilências. Apetece-nos neste momento citar Cambronne!
Ou as massas abanam os narizes ou os narizes abanam-se sobre as massas.
Há opiniões controversas, críticas perversas: mas quem tem mais nariz sensível, que não seja de cera, arrisca-se à asfixia, se quer a todo o custo ignorar os maus cheiros. Também nós fizemos um inquérito, coisa tão em voga na jovem democracia, e concluímos que a hipersensibilidade é pecha do cidadão comum, a que escapam os políticos. E por que escapam?
A resposta é fácil: Tapam os narizes ( ou as orelhas, ou os olhos, etc, o que vem a dar no mesmo)! No fundo é tudo uma questão de tapume. Isto é: a política do tapa aqui, tapa acolá. Mas os buracos sucedem-se e a produção nacional bruta de tapume não atinge os objectivos do plano, que pelo menos neste aspecto é ambicioso.

No outro dia, um cidadão respeitável torcia cepticamente o nariz a um discurso pré-eleitoral ( os discursos políticos em Portugal são sempre pré-eleitorais). É que o nariz do orador ameaçava romper o pequeno ecrã e esparramar-se sobre os telespectadores. Já intimidade da vida privada não está a salvo das narigadas! Nasaladamente, as promessas ritmadas e repetidas penetram pelos tímpanos mais virgens: nada há que lhes resista.
Os narizes tornaram-se eróticos, à medida que a cera funde.
Desesperado, o cidadão desligou o interruptor, mas a imagem do nariz não lhe deu tréguas. No dia seguinte, foi ao psicanalista e constatou estupefacto que o consultório estava cheio de narizes! Deu maia volta e foi postar frente do televisor, arengando às massas: o nariz crescera-lhe assustadoramente.

Moralidade: se não começarmos a sacudir os narizes às nossas classes dirigentes, ficaremos todos de nariz à banda.


( texto publicado no Suplemento «Das Artes e Letras» de 6 de Novembro de 2006 do jornal «O Primeiro de Janeiro»)

Editorial do jornal anarca «A Merda»

«A Merda» foi um jornal do Grupo Anarca Autónomo editado em 1974/1975, em Portugal, e que foi profusamente distribuído( teve centenas de milhares de exemplares) pelas ruas e praças de Lisboa e Porto no período imediato do pós-25 de Abril, com um enorme impacto público.

Na verdade, essa publicação constitui, talvez, nos últimos cinquenta anos a referência anarca que mais eco teve junto da população em geral, subsistindo ainda hoje na memória e no subconsciente de muita gente que viveu naquela época ( o jornal teve quatro números).


Reproduzimos o editorial do seu primeiro número que rapidamente se esgotou, tal foi a procura e o êxito que encontrou nos anos eufóricos, vividos em Portugal em 1974 e 1975.





O editorial do jornal anarca «A Merda»


No mundo de hoje, as pessoas apaixonam-se pela merda duma bandeira, porque têm o sexo na cabeça;
Sentem a emoção a invadir-lhes o corpo quando cantam a merda do hino (à boa maneira hitleriana);
Põem na merda da palavra nação um acento rácico mal disfarçado;
Criam-se merdas como as pides para reforçar a defesa da merda do Estado e a sua consequente merda doutrinária;
Fazem coincidir a merda do Estado com a merda da nação;
Criam-se partidos de merda para agrupar os carneiros de merda;
Preparam-se eleições de merda para eleger as merdas dos governantes;
Prestam-se homenagens a merdas que se distinguiram pelos seus serviços de merda;
Fazem com que o povo se orgulhe pelo passado de merda e festejam-se os heróis de merda, da merda da nossa história;
Fazem-se leis de merda para obstar a que se derrube a merda do sistema;
Há toda uma merda de papéis a invadir as ruas, os bairros e as nossas casas para que as leis de merda sejam cumpridas;
Agora até se servem da merda sonora da rádio e da merda televisiva;
Mas como muitos procuram fugir à merda das leis, mandam os merdas dos polícias ( autoridades da merda das democracias da merda, tanto de leste como da merda do oeste);
E como os merdas dos polícias não chegassem para chatear a malta, é preciso a merda do exército com a hierarquia de merda;
Os senhores de merda, bem situados na merda desta sociedade, vêm com a merda dos discursos exaltar a sua moral de merda;
Os merdas dos burocratas, os cívicos de merda e toda a classe dos merdas exploradores são os que melhor se sentem na merda da sociedade e são os mais zelosos defensores da merda;
Nesta sociedade de merda, as pessoas já se não dão conta da merda em que estão;

E o homem?
O homem está em vias de extinção devido à repressão exercida pela merda do Estado e pelos seus lacaios de merda que são quem possibilita a merda das igrejas civis e religiosas que escravizam o homem;
O homem és tu, leitor.

Deves começar já hoje a guerra contra a poluição.
Mas atenção!

É preciso começar por tirar a merda da tua própria cabeça.

O mais espantoso de tudo é...


«O que espanta não é o facto de haver gente que rouba, de haver quem faça greve; mas sim o facto de haver esfomeados que não roubam, de haver explorados que não fazem greve»

Wilhelm Reich