1.7.05

Habitam-me...

«Habitam-me um animal, uma flor e um deus, mergulhados em água e fogo. Ou, por outras palavras, comungo de uma multiplicidade de elementos, que o aspecto social não consegue esgotar, apesar da sua tentação tenaz de os anular. A sociedade exige que eu negue a minha natureza animal, vegetal, mineral e divina. Tal como pretende impedir que eu seja criança só porque já sou adulta, que eu também seja homem, uma vez que sou mulher. Aos meus mil rostos procura apôr uma máscara definitiva. A isso chama ela realização.
Confesso que uma sociedade destas não me interessa.»

Regina Louro, escritora e tradutora

O general obsceno

Esta sociedade é obscena em produzir e exibir indecorosamente uma abundância sufocante de mercadorias, ao mesmo tempo que priva muitos, da satisfação das necessidades vitais; obscena em atolhar-se a si própria de bens, enquanto as latas dos seus desperdícios envenenam o mundo dos explorados (…) Obscena não é a gravura de uma mulher nua que expõe os pêlos do púbis, mas sim o general completamente vestido que exibe as suas medalhas de uma guerra de agressão.

Herbert Marcuse, in «Ensaio para a Libertação»

O vagabundo

Hoje em dia o vagabundo vê-se aflito para vagabundear devido ao aumento da vigilância policial nas auto-estradas, entrepostos ferroviárias, cais marítimos, margens de rios, aterros e mil e um esconderijos da noite industrial.
Na Califórnia, o rato de mochila, o velho tipo que vai a butes de cidade a cidade com as provisões e a cama às costas, o «irmão sem lar», desapareceu praticamente, juntamente com o antigo rato do deserto, peneirador de ouro que costumava percorrer com a esperança no coração as labutadoras cidades do Oeste que são hoje tão prósperas que já não querem velhos vagabundos.
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Grandes e sinistros carros de Polícia, pagos pelos contribuintes ( modelos de 1960 com holofotes tristes) são muito bem capazes de se abater sobre o vagabundo no seu trote idealista para a liberdade e para os montes do santo silêncio e santa intimidade. Não há nada mais nobre do que suportar algumas inconveniências como cobras e poeira por amor da liberdade absoluta.
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Considera-se que acampar um desporto saudável para escuteiros, mas um crime quando é praticado os homens adultos que disso fizeram a sua vocação. A pobreza é considerada uma virtude entre os monges das nações civilizadas, mas passa-se uma noite nos calabouços quando se é apanhado sem o mínimo admissível para vagabundear ( da última vez que tive conhecimento disso, eram cinquenta cêntimos, mas quanto será agora?)
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No tempo de Brueghel as crianças dançavam à roda do vagabundo, que vestia roupas enormes e esfarrapadas e olhava sempre em frente, e as famílias não se importavam de as suas crianças brincarem com o vagabundo, que era uma coisa natural. Mas hoje as mães agarram bem os filhos quando o vagabundo passa pela cidade por causa daquilo em que os jornais o transformaram – violentador, estrangulador, comedor de crianças. Afastam-se de desconhecidos, que lhes dão rebuçados envenenados. Embora o vagabundo de Brueghel e o vagabundo de hoje sejam o mesmo, as crianças mudaram. Onde está sequer o vagabundo chaplinesco? Hoje o vagabundo anda furtivamente – toda a gente passou a ver filmes de polícias, os actuais heróis na TV.

Jack Kerouac, in Viajante Solitário