29.6.06

Eles inventam máquinas para vivermos sentados !




Retirado de:

A nossa sociedade está constantemente a inventar máquinas, aparelhos e artifícios que nos fazem estar sentados, a desfrutar cheios de stress, a rir como drogados e a viver como mortos.

Andar é deslocar-se ao longo de um espaço utilizando o movimento das pernas, primeiro uma e logo depois a outra, fazendo com que o músculo unido aos ossos por tendões e tecido, converta a energia químia em tensão e contracção, fazendo assim mover os ossos. A coordenação destes movimentos, fruto de aprendizagem desde a primeira infância, permite mover o corpo para outro local.

Hoje em dia, cada vez que temos de fazer coisas em lugares afastados, preferimos cada vez mais a deslocação do nosso corpo por via de outros meios que não o do próprio, meios esses, que as mais das vezes, são autopropulsionados por combustíveis fósseis, e que permitem poupar tempo e esforço. Graças a isso podemos dedicarmo-nos a outras actividades, como trabalhar horas extraprdinárias ou ver TV (4 horas em média por dia). Evitamos também com isso encontros de rua com vizinhos ou caras conhecidas, ou ouvir anedotas e histórias sobre o quotidiano, que certamente nos roubariam tempo e constituiriam perdas irreparáveis e nos impediam de ver a nossa telenovela preferida ou a partida de futebol entre os clubes da actualidade.

Ora acontece que gerir as nossas deslocações constitui uma das mais importantes e valiosas possibilidades. E andar e caminhar é uma recomendação que se revela vital uma vez que pelo seu efeito o corpo activa a circulação, reduz o stress e queima 300 calorias ( a andar a pé durante uma hora). Daí que o ginásio se tenha transformado quase que num ritual de executivos: almoçam rápido e vão de carro até ao ginásio do shopping center, sobem as escadas rolantes, enfiam-se no recinto e passam horas a andar – imóveis - sobre uma máquina rolante… !!!

Sob a bandeira do socialismo (texto de Eduardo Subirats)


Texto de Eduardo Subirats, professor de Filosofia, Estética e Literatura; actualmente ensina na Universidade de Nueva York

(Texto publicado em EL PAÍS, 27/06/06)

A sentença de morte da academia pós-modernista norte-americana contra a teoria crítica de Marx foi uma fraude. Tornou-se mesmo o novo credo «cuia absurdum» das ciências humanas corporativamente departamentalizadas. Face às guerras coloniais que inauguraram o século XXI, os genocídios económicos administrados pelos bancos mundiais e as organizações do comércio global, e aos infinitos fenómenos de violência local e global, esta «superação de Marx» adquire hoje um significado patético.

O poder militar e financeiro do mundo concentra-se nas mãos de um pequeno número de empresas. Os sistemas jurídicos democráticos permitem doses mínimas de soberania social, quando não ocultam autênticos sistemas tirânicos em que reina a corrupção. O terror do Estado, que Hobbes definiu programaticamente por via da metáfora totalitária do Leviatã, impõe-se nos quatro cantos do mundo com a mesma naturalidade como se tratasse de uma vontade divina. Nos centros privilegiados do poder mundial, em Londres, Moscovo, Nova Iorque, este terror encena-se como um sistema de segurança nacional, e uma guerra contra um terrorismo que abrange dentro da mesma caixa conceptual as altas tecnologias de destruição nuclear e biológica do planeta, e, no seu outro extremo, o controlo digital de todos os seres humanos. Nas cordilheiras e nas selvas da Colômbia, Equador e Peru, nos povos curdos e Tchechenos, a nas altas montanhas do Tibete, ou nas civilizações sunitas e chiítas do Próximo Oriente tudo jaz em ruínas.

As estratégias do espectáculo encobrem por detrás das suas infinitas montras e da sua propaganda permanente os processos de liquidação de recursos naturais vitais como a água, a terra e o ar, e as subsequentes deslocalizações, e genocídios, de milhões de indivíduos. Em vez de um sistema de produção agrícola adaptado aos ciclos reprodutivos da natureza, e das culturas que durante séculos com ela conviveram, tal como sonhava o socialista do século XVIII Charles Fourier, temos que afrontar com as consequências cada vez mais violentas dos desequilíbrios biológicos e atmosféricos gerados pelo desenvolvimento industrial, ecológico e socialmente irresponsável. A racionalização mecânica do trabalho industrial, que Marx e Engels tanto criticaram como processos de alienação humana, nos campos de trabalho e extermínio do século passado, e nas actuais fábricas do Terceiro Mundo, adquire hoje em dia dimensões delirantes.

O Manifesto Comunista antecipava a culminação de uma idade da barbárie, com fome em todo o planeta e a extensão de guerras devastadoras em consequência de uma «demasiada civilização, com demasiados meios de subsistência, indústria em demasia e demasiado comércio». E anunciava justamente a delirante dissolução «no ar de tudo o que era sólido», desde os desejos mais íntimos até aos meios de sobrevivência. E falava ainda dos «contínuos distúrbios sociais», das reiteradas «revoluções dos meios de produção», da «permanente incerteza» e de uma imparável «agitação».

A ambiguidade d teoria crítica de Marx não reside na sua visão da barbárie civilizada do capitalismo global, cujas expressões de podridão e devastação podemos hoje observar por todo o lado. A sua debilidade consistia antes em ter elevado à posição messiânica do proletariado a categoria do povo, eleito como um deus de uma história concebida segundo uma progressão linear. A sua fé residia na salvação graças a um espírito histórico providencial. Sobre os ombros deste proletariado repousava a redenção de uma humanidade nova e universal, nem mais nem menos como Paulo a tinha projectado. Ao mesmo tempo que dotou o proletariado desta magnitude cristológica e transcendente, Marx construiu-o empiricamente a partir da racionalidade produtiva e da disciplina industrial. Por isso, por ser simultaneamente a representação de uma salvação transcendente e o representante dos valores racionais da indústria pesada, o proletariado levantou, nos comunismos soviético e chinês, um sistema totalitário de opressão e de violentos processos de acumulação capitalista.

Contra esta lógica congelada de progresso, Gramsci redefiniu a revolução dos sovietes como o triunfo da vontade contra Das Kapital. Por seu turno, e face ao historicismo marxista, Mahatma Gandhi reivindicou um socialismo enraizado nas sabedorias e tradições culturais milenárias. E José Carlos Mariátegui fundou o socialismo peruano sobre a compreensão cósmica da unidade d pessoa e a comunidade, que ainda vive nas culturas quechua e aimara. Paul Tillich concebeu o socialismo sobre as bases de uma ética cristã que se aproximava das suas raízes judaicas, e das noções biblícas de comunidade, lei e salvação. Martin Buber entendeu o socialismo como a restauração dos vínculos do humano com a criação e a comunidade. Num sentido similar, a crítica de Karl Polanyi ao fascismo, concebendo-o como uma consequência política necessária da economia de mercado, e como correspondente do liberalismo económico, com a consequente proposta daquele autor de uma ampliação e radicalização dos direitos humanos, arrancava de premissas metafísicas e éticas de um humanismo cristão.

É absurdo dizer que foram superados os ideais sociais como os que estavam representados nos falanstérios de Fourier. Na realidade, tratam-se de modelos racionais de sobrevivência, face à destruição biológica do planeta pelas empresas transnacionais, que são hoje mais do que nunca actuais. O anarquismo de Piotr A. Kropotkin encerra em si os valores comunitários mais radicalmente democráticos que a sociedade moderna pode conceber. A crítica do militarismo de Lenine é hoje mais actual, face às guerras coloniais do Iraque ou da Colômbia, do que o foi alguma vez face ao militarismo industrial do século passado.

Tudo isto não quer dizer que não haja que redefinir as categorias do socialismo numa época em que sob a sua bandeira coabitam políticas socialmente vazias. É necessário renovar a sua crítica à civilização pós-moderna. E recuperar uma tradição intelectual esquecida, que ao longo do século passado, fez frente à guerra nuclear e biológica, e às tendências totalitárias inerentes à economia empresarial e da cultura do espectáculo.

Carta aberta a Régis Debray sobre o trágico, o utópico e a esquerda do séc. XXI




Régis Debray, escritor, filósofo e ex-guerrilheiro, companheiro de Che Guevara, lançou recentemente na Gallimard um livro com o sugestivo título «Súplica aos novos progressistas do séc. XXI»

O sociólogo Philippe Corcuff acaba de fazer publicar no jornal Le Monde uma carta aberta dirigida justamente a Debray a propósito daquele texto. É esta carta aberta que abaixo reproduzimos em tradução para português.

Caro Régis,

A tua Súplica aos novos progressistas do século XXI (edição da Gallimard) orienta-nos oportunamente para uma reflexão sobre a armadura intelectual da política num momento em que não faltam na cena mediático-política golpes baixos e manobras eleitoralistas.

Com as tragédias do século XX, e com a corrida neoliberal em vento em popa, com todos os riscos ecológicos, é tempos de re-avaliar a nossa concepção do Progresso. Tens razão quando escreves:«O século crê na História porque acreditou em Deus, e para continuar a crer, mas de uma outra maneira, depois que perdeu a fé. O que se designa de Providência na igreja, chama-se de Progresso na cidade.»

Todavia, para um agnóstico de história, não há senão lugar a progressos, no plural. Neste sentido, toda a tradição não seria, à priori, de carácter negativo, nem toda a novidade se mostraria, por si mesma, positiva.

Não se trata de acabar com as Luzes, mas antes de «renovar a ferramenta intelectual». E que não se confunda isto com qualquer relativismo pós-moderno, onde tudo vale, porque nada vale. Esboçar-se-ia assim umas Luzes mitigadas, menos arrogantes, para uma esquerda que não abandona a tripla aposta do conhecimento, da modificação de si e da transformação do mundo. Donde o teu apelo à emergência de uma «esquerda trágica», «tingida de pessimismo», bem distinta quer daquela «esquerda divina», submergida no optimismo, quer da «esquerda gestora», enredada no presente, sem memória histórica nem projecção para o futuro.

A esquerda tem certamente necessidade de se alimentar do trágico. Basta recordarmo-nos das fragilidades da acção humana face às circunstâncias que se mostram independentes da sua vontade e que, permanentemente, lhe escapam. Basta lembrarmo-nos da componente de incerteza das nossas histórias, dos nossos riscos e dos nossos desafios. Basta lançarmos um olhar sobre a condição humana, com as suas potencialidades criadores mas também destrutivas, imersa numa história com clarões emancipadores quanto inércias opressivas. Abandonemos as ilusões antropológicas do «homem bom por natureza que é pervertido pelo capitalismo». Façamos a economia da hipótese, irrealista e por vezes mortífera, do nascimento rápido de um «homem novo» que resolveria como um milagre todas as contradições das políticas de mudança. Sim, mas…

As tuas análises surgem-nos unilateralmente negras. Como se a pretensão a uma lucidez última alimentasse na tua boca a nostalgia do definitivo e do absoluto, que estariam ligados mais ao trabalho do negativo do que ao «futuro radioso». O teu auto-retrato de «navegador solitário», a remar contra-a-corrente, leva-nos directos ao rídiculo a uma pretensão de um lucidez omnisciente. Desde o teu livro «Critica da Razão Política»(1981), na qual pretendeste conhecer, graças aos teus conceitos, o enigma de toda a sociedade humana ( o seu fundamento supostamente religioso), tomaste a direcção dos filósofos-reis. Ao fazê-lo não estás a confundir rápido demais o carácter heurístico de uma analogia ( entre o religioso e o político) com uma verdade eterna? Sem dúvida que és mais convincente nas narrativas autobiográficas, quando colocas em cena as nossas deficiências face aos desregulamentos da vida política e amorosa: Les rendez-vous manqués (1975), Les masques (1988), Loués soient nos seigneurs (1996)...

E se fosse necessário recusar definitivamente a lucidez definitiva e as poses inspiradas dos que crêem ver o essencial? Interrogar, através de perspectivas sempre parciais, as sinuosidades das contingências históricas como as nossas próprias limitações individuais. Apoiando-nos em referências de tradições do passado, que funcionariam como bússolas revisíveis pelo caminho, e que valem mais que o cocktail relativista das insignificâncias pós-modernas e menos que os absolutos de antanho. Transcendências relativas, de qualquer forma.

A tua esquerda trágica» parece ter esquecido a tensão dialéctica entre o trágico e o utópico. Não serão as características parecidas da história humana, a sua abertura, os seus movimentos, a sua parte de imprevisibilidade, que dão conta da sua dupla face? Maurice Merleau-Ponty teve a intuição: « O mundo humano é um sistema aberto ou inacabado e a mesma contingência fundamental que o ameaça de discórdia o subtrai à fatalidade da desordem e impede o desespero» (Humanisme et terreur, 1947). As flores da utopia continuam a eclodir um pouco por todo o lado nos mundos confusos dos altermundismos ou, bem perto de nós, nas revoltas dos «banlieues» ou nos movimentos anti-CPE, com as suas contradições, e os seus maniqueísmos. Na tensão, pois, com o trágico. «Homem da chuva e criança do bom tempo, as vossas mãos de erros e progressos me são igualmente necessários», dizia René Char (Seuls demeurent, 1938-1944), poeta em armas no meio da resistência «maquis».

A dupla possibilidade de novos avanços emancipadores e novas regressões bárbaras jogam-se hoje em França por um fio. Num contexto menos dramático, estaremos nós, um pouco como Walter Benjamin em 1940, «ao alcance do perigo», tentando discernir no «aqui-presente» uma frágil esperança libertadora? De uma lado: a etnicização das relações sociais, protagonizada pela FN e pelo marketing anti-muçulmano de Villiers, estimulado pelas demagogias securitárias. No meio: a gestão social-liberal da precarização generalizada da UMP-PS, sobre o fundo do esgotamento das instituições da nossa democracia representativa. Do outro lado: a estrela de uma nova questão social, respeitadora das individualidades, vacilante na vitalidade dos movimentos sociais anti-liberais e com falta de tradução política. Quando os fogos cruzados da utopia anti-capitalista desafiam as mecânicas ameaçadoras do mais provável.

Que tal, Régis, uma esquerda utópica e trágica para o século XXI? O desafio é imenso, as urgências iminentes, tudo à altura das nossas fraquezas.

Philip Corcuff

(texto publicado no Le Monde, 23 de Junho de 2006)