Texto de Eduardo Subirats, professor de Filosofia, Estética e Literatura; actualmente ensina na Universidade de Nueva York
(Texto publicado em EL PAÍS, 27/06/06)
A sentença de morte da academia pós-modernista norte-americana contra a teoria crítica de Marx foi uma fraude. Tornou-se mesmo o novo credo «cuia absurdum» das ciências humanas corporativamente departamentalizadas. Face às guerras coloniais que inauguraram o século XXI, os genocídios económicos administrados pelos bancos mundiais e as organizações do comércio global, e aos infinitos fenómenos de violência local e global, esta «superação de Marx» adquire hoje um significado patético.
O poder militar e financeiro do mundo concentra-se nas mãos de um pequeno número de empresas. Os sistemas jurídicos democráticos permitem doses mínimas de soberania social, quando não ocultam autênticos sistemas tirânicos em que reina a corrupção. O terror do Estado, que Hobbes definiu programaticamente por via da metáfora totalitária do Leviatã, impõe-se nos quatro cantos do mundo com a mesma naturalidade como se tratasse de uma vontade divina. Nos centros privilegiados do poder mundial, em Londres, Moscovo, Nova Iorque, este terror encena-se como um sistema de segurança nacional, e uma guerra contra um terrorismo que abrange dentro da mesma caixa conceptual as altas tecnologias de destruição nuclear e biológica do planeta, e, no seu outro extremo, o controlo digital de todos os seres humanos. Nas cordilheiras e nas selvas da Colômbia, Equador e Peru, nos povos curdos e Tchechenos, a nas altas montanhas do Tibete, ou nas civilizações sunitas e chiítas do Próximo Oriente tudo jaz em ruínas.
As estratégias do espectáculo encobrem por detrás das suas infinitas montras e da sua propaganda permanente os processos de liquidação de recursos naturais vitais como a água, a terra e o ar, e as subsequentes deslocalizações, e genocídios, de milhões de indivíduos. Em vez de um sistema de produção agrícola adaptado aos ciclos reprodutivos da natureza, e das culturas que durante séculos com ela conviveram, tal como sonhava o socialista do século XVIII Charles Fourier, temos que afrontar com as consequências cada vez mais violentas dos desequilíbrios biológicos e atmosféricos gerados pelo desenvolvimento industrial, ecológico e socialmente irresponsável. A racionalização mecânica do trabalho industrial, que Marx e Engels tanto criticaram como processos de alienação humana, nos campos de trabalho e extermínio do século passado, e nas actuais fábricas do Terceiro Mundo, adquire hoje em dia dimensões delirantes.
O Manifesto Comunista antecipava a culminação de uma idade da barbárie, com fome em todo o planeta e a extensão de guerras devastadoras em consequência de uma «demasiada civilização, com demasiados meios de subsistência, indústria em demasia e demasiado comércio». E anunciava justamente a delirante dissolução «no ar de tudo o que era sólido», desde os desejos mais íntimos até aos meios de sobrevivência. E falava ainda dos «contínuos distúrbios sociais», das reiteradas «revoluções dos meios de produção», da «permanente incerteza» e de uma imparável «agitação».
A ambiguidade d teoria crítica de Marx não reside na sua visão da barbárie civilizada do capitalismo global, cujas expressões de podridão e devastação podemos hoje observar por todo o lado. A sua debilidade consistia antes em ter elevado à posição messiânica do proletariado a categoria do povo, eleito como um deus de uma história concebida segundo uma progressão linear. A sua fé residia na salvação graças a um espírito histórico providencial. Sobre os ombros deste proletariado repousava a redenção de uma humanidade nova e universal, nem mais nem menos como Paulo a tinha projectado. Ao mesmo tempo que dotou o proletariado desta magnitude cristológica e transcendente, Marx construiu-o empiricamente a partir da racionalidade produtiva e da disciplina industrial. Por isso, por ser simultaneamente a representação de uma salvação transcendente e o representante dos valores racionais da indústria pesada, o proletariado levantou, nos comunismos soviético e chinês, um sistema totalitário de opressão e de violentos processos de acumulação capitalista.
Contra esta lógica congelada de progresso, Gramsci redefiniu a revolução dos sovietes como o triunfo da vontade contra Das Kapital. Por seu turno, e face ao historicismo marxista, Mahatma Gandhi reivindicou um socialismo enraizado nas sabedorias e tradições culturais milenárias. E José Carlos Mariátegui fundou o socialismo peruano sobre a compreensão cósmica da unidade d pessoa e a comunidade, que ainda vive nas culturas quechua e aimara. Paul Tillich concebeu o socialismo sobre as bases de uma ética cristã que se aproximava das suas raízes judaicas, e das noções biblícas de comunidade, lei e salvação. Martin Buber entendeu o socialismo como a restauração dos vínculos do humano com a criação e a comunidade. Num sentido similar, a crítica de Karl Polanyi ao fascismo, concebendo-o como uma consequência política necessária da economia de mercado, e como correspondente do liberalismo económico, com a consequente proposta daquele autor de uma ampliação e radicalização dos direitos humanos, arrancava de premissas metafísicas e éticas de um humanismo cristão.
É absurdo dizer que foram superados os ideais sociais como os que estavam representados nos falanstérios de Fourier. Na realidade, tratam-se de modelos racionais de sobrevivência, face à destruição biológica do planeta pelas empresas transnacionais, que são hoje mais do que nunca actuais. O anarquismo de Piotr A. Kropotkin encerra em si os valores comunitários mais radicalmente democráticos que a sociedade moderna pode conceber. A crítica do militarismo de Lenine é hoje mais actual, face às guerras coloniais do Iraque ou da Colômbia, do que o foi alguma vez face ao militarismo industrial do século passado.
Tudo isto não quer dizer que não haja que redefinir as categorias do socialismo numa época em que sob a sua bandeira coabitam políticas socialmente vazias. É necessário renovar a sua crítica à civilização pós-moderna. E recuperar uma tradição intelectual esquecida, que ao longo do século passado, fez frente à guerra nuclear e biológica, e às tendências totalitárias inerentes à economia empresarial e da cultura do espectáculo.