(onde se pode ler e consultar outros textos)
ALGUNS AFLUENTES ( INCLUINDO IDEOLÓGICOS)
DO MOVIMENTO ECOLÓGICO EM PORTUGAL
Lisboa 26/Julho/1997 - Se o chamado «óbvio ululante», na feliz expressão de um brasileiro (Millor Fernandes?), constitui a matéria do ecologismo e das ecologias, não há dúvida que o Movimento Ecológico Português, quando nasceu, em Maio de 1974 e se legalizou em Fevereiro de 1975, vinha antecedido de algumas ideias óbvias e movimentos sociais que deram bastante brado.
Ser vivo e Ambiente constituem uma unidade indissociável: eis a mais óbvia de todas as coisas óbvias. Ninguém, por exemplo, pode viver sem respirar. Mas foi preciso chegar ao século XX para a nossa «civilização» ter pensado nisso.
O facto de a cultura ocidental nunca ter assumido nem compreendido este tipo de evidências básicas, terá levado, em boa parte, à catastrófica e em certos aspectos patética, crise ecológica actual. Crise que, antes do 25 de Abril, era apenas óbvia para alguns mas que hoje, sem ter decrescido um milímetro, ainda continua a não ser sentida por muito boa gente.
- O congestionamento das cidades modernas, ligado à macrocefalia urbana que atrofia e desertifica os campos, eis outra óbvia realidade que estando na base de muitos problemas modernos, conduziria a uma consciência que, por sua vez, o movimento ecológico procuraria traduzir, através dos múltiplos textos editados.
- A sintomatologia na Medicina, na Sociologia e na Política (as chamadas «sopas depois de almoço» ou aposteriorismo das soluções), provocaria necessariamente uma reacção adversa naqueles que, cultivando uma mentalidade simplista de ligação causa-efeito (outro óbvio ululante), perceberam sempre que as doenças, quer sociais quer individuais, não caem do céu e que a melhor forma de não as ter é prevenir, fazer profilaxia das ditas doenças.
Todas as doenças - sociais e individuais - estão no ambiente físico - ar, água, solos -, mas também sócio-mitológico - todo o sistema de manipulação do homem pelo homem que, desde a publicidade comercial à propaganda político-partidária, condiciona de raiz os comportamentos, conforma e deforma o cérebro humano.
Neste sentido, a poluição - a famosa e famigerada poluição - é atmosférica, é agrícola, é hídrica mas é também, como alguns perceberam, psíquica e moral.
Ou seja: não se trata de corrigir pontualmente o sistema mas trata-se de «mudar de sistema».
Este radicalismo, a que mais tarde se chamaria fundamentalismo, foi sempre muito mal visto por todos os quadrantes ideológicos, incluindo os próprios que se diziam ecologistas e ambientalistas.
Radicalizar posições era um propósito do movimento ecológico mas que nunca teve expressão real e só se manifestou nos múltiplos textos publicados pelas edições «Frente Ecológica».
Os excessos de linguagem, note-se, foram sempre e aliás, para certas boas almas, mais intoleráveis do que as mais abomináveis agressões ambientais.
A expressão «crime ecológico» e o neologismo «biocídio» foram utilizados, pela primeira e última vez, nas edições «Frente Ecológica».
- A dominante «catastrofista» da sociedade industrial foi outra realidade, bastante óbvia, que levaria necessariamente à ideia e à constelação ecologista radical.
Alguns dos que fizeram o M.E.P. nunca chegariam a reconciliar-se com a síndrome de catástrofe intrínseca à sociedade industrial. Ficariam sempre os eternos «inimigos da civilização», como premonitoriamente lhes chamou Freud.
O que não deixou de provocar uma patética acusação dos estalinistas que tinham como insulto predilecto contra os ecologistas, chamarem-lhes catastrofistas. Isto, até que eles próprios, com o Partido dos Verdes, se fizeram também «catastrofistas».
- Ao cerco sem saída da crise ambiental constatado pelo norte-americano Barry Commoner - os retrocessos do progresso, como se dizia na «Frente Ecológica» - chamou Herbert Marcuse «homem unidimensional». Foram marcusianos os estudantes de Maio 68 e marcusianos foram os que dotaram o M.E.P dos seus fundamentos ideológicos.
A «ideologia ecológica», porém, nunca teve qualquer expressão além dos textos, normalmente muito críticos e polémicos, da «Frente Ecológica».
Nesse sentido, o ecologismo português foi totalmente desmiolado. Embora Antero de Quental perguntasse, atónito: «Mas, meus senhores, será possível viver sem ideias?», Portugal dos últimos 500 anos prova que sim: que é possível viver sem ideias, ou seja, sobreviver. O que já não é nada mau, em tempo de sobrevivência planetária.
Termo-nos habituado a sobreviver em vez de aprender a viver, poderá ser outra subtil nuance que fundamenta a revolta de alguns ecologistas «avant la lettre». Ou seja, antes do 25 de Abril de 1974.
- Se é o sistema cultural que leva à crise ecológica, é óbvio (ululante) que a crise só pode ter solução mudando de sistema - o que leva ao chamado «fundamentalismo» ecologista e que, depois do 25 de Abril, na «Frente Ecológica», se chamou «realismo ecologista» ou «eco-realismo», para o distinguir das derivantes reformistas e utopistas.
Entre a Utopia e a Reforma, o ecorealismo das edições «Frente Ecológica» marcou uma posição solitária, sem companhias nem aderentes, tentando reafirmar, em vão, o primado do real, do quotidiano, face a todas as mitologias modernas, nomeadamente as do hedonismo consumista.
Em vão também, porque a lógica consumista e a economia de marketing, sendo intrínsecas à lógica do macrosistema são também intrínsecas à devastadora crise ecológica.
O caso do sistema médico rentabilizando a doença em vez de conservar a saúde (higiene holística), mostra a perversidade estrutural intrínseca do hedonismo consumista.
Se a doença dá dinheiro e lucros a tanta gente, a tantos profissionais que da doença vivem, a tanta empresa, é evidente que tudo será feito para que a doença progrida e nada para que a saúde se conserve.
- «Congestionamento» é uma das palavras-chave nos antecedentes mais antigos do movimento ecológico.
Congestionamento físico - nas cidades e nas sociedades - mas principalmente congestionamento de dados, de informação. E ainda não fora inventado o chafurdo da Internet.
A sensibilidade ao congestionamento de dados constituiu uma componente de um mal-estar que necessitaria uma atitude chamada movimento ecologista.
- A industrialização em geral e a industrialização da agricultura em particular (com adubos químicos, pesticidas e monoculturas gigantescas) dadas como tabu intocável por todas as ideologias no terreno - capitalistas e socialistas - foram as componentes que atrasaram, por medo às aparências, a eclosão das manifestações ecologistas e, portanto, do movimento.
Também a indústria nuclear, dita pacífica para a demarcar do átomo militar, sacralizada por todas as ideologias, blocos e superpotências mundiais, seria um terreno onde dificilmente surgiria qualquer contestação.
Neste sentido, o movimento ecologista era mesmo um movimento de alto risco para quem o proclamasse e assumisse.
Foi, portanto, necessário atingir o limiar do insuportável - onde aliás ainda estamos e continuaremos - para que alguns, muito poucos, se atrevessem a fazer as primeiras críticas:
a) Ao nuclear (dito) pacífico
b) À industrialização em geral e à agricultura química em particular
c) A ciência e à tecnologia
Os tabus mantidos por todas as ideologias em confronto, mostram duas coisas:
a) Embora aparentemente se digladiem em aspectos pontuais (guerras em que se disputa o mesmo bolo), no fundamental as ideologias e os blocos têm alguns mitos que se tornam seus alicerces de suporte, permanência e eterna auto-reprodução.
b) Como o ecologismo tem de começar por denunciar esses tabus ideológicos, ele próprio, enquanto movimento, se tornará também tabu, passando automaticamente à clandestinidade.
- Significativo, no aspecto da industrialização, é o título da colecção «Zero», da editora Arcádia, «A Indústria do Ruído».
Para o director da colecção e autor do prefácio do livro, o Ruído era uma das muitas manifestações que, pelas repercussões na saúde pública, tinha sido e continua a ser rentabilizada.
Se o Ruído é «fábrica de doenças», como nesse livro se procura mostrar, certamente que o Ruído não será eliminado e, se for preciso, irá ser fomentado. É o que tem acontecido até hoje, 26 de Julho de 1997.
Este «cinismo» eco-realista chocou muito algumas boas almas que se queriam e diziam ecologistas, amigas do ambiente como o Persil e sempre dispostas a perdoar ao chamado Progresso os crimes e artimanhas do Progresso.
- Ecologia da doença, Ecologia do Trabalho (Doenças do Trabalho), Ecologia Alimentar ( Doenças do ambiente alimentar) aparecem bastante cedo nos textos de pessoas que, mais tarde, pós 25 de Abril, integrariam o M.E.P, a «Frente Ecológica» , a «Esquerda Ecológica», a «Ecologia em Diálogo» e outros títulos que agitaram as águas no pós 25 de Abril.
- Mas o atrevimento eco-realista do chamado «grupo coordenador» do M.E.P, da «F.E.» e de outras «frentes», ia até ao ponto de contestar as apregoadas virtudes e a própria legitimidade da ciência ordinária, essa «vaca sagrada» das modernas sociedades tecnológicas, que não dão um peido sem primeiro ir perguntar à ilustre classe universitária se é científico.
A crítica à Tecnologia era, de facto, algo impensável.
E muito em especial se essa tecnologia implicava mortes maciças da população.
O caso do que, na «Frente Ecológica», se chamou «sindroma sísmico-nuclear» - 30 anos de sismos provocados por rebentamentos subterrâneos de bombas termonucleares - é exemplar como fenómeno de dimensão planetária e como silenciamento total e totalitário sobre o maior crime de genocídio contra a Humanidade, ocultado em nome da ciência, do progresso tecnológico-militar e das conveniências da coexistência pacífica, tão em voga nos anos que precederam o 25 de Abril.
Foi talvez este «dossier maldito» - sismos provocados por bombas - o que mais cedo suscitou a revolta no espírito daquele (s) que, pós-25 de Abril, decidiram a reunião do 14 de Maio de 1974 para o lançamento do M.E.P.
O que não impede de ter ficado o mais maldito dos dossiês malditos, através de todos estes anos e até hoje, em que a frequência sísmica tem decrescido em resultado do decréscimo do número de bombas rebentadas nos poços de Semipalantinsk, Nevada e Muroroa.
- Pela positiva, o dossiê mais maldito é certamente o das eco-alternativas energéticas: Solar, Eólica, Maremotriz e Biogás.
Classificado como escândalo público o abandono a que todos - incluindo grupos ditos ecologistas - votaram a luta pelas alternativas energéticas, que é a luta pela sociedade paralela, única saída para a catástrofe, este dossiê das eco-energias é o barómetro que, só por si, dá bem o estado a que tudo isto - ecologistas e movimento ecológico incluídos - chegou.
O total silêncio e silenciamento sobre o crime nacional de Alqueva - só porque todos os partidos estão de acordo no crime - é outro dossier significativo do apodrecimento a que tudo isto - País, políticos, economistas, partidos e tutti quanti - chegou.
Não há fundamentalismo que nos livre desta neurose suprema.
- Sendo o diagnóstico da neurose totalitária um dos que induziram alguns carolas a sonhar, pós 25 de Abril, um 25 de Abril ecológico, esse facto diz bem e bastante da realidade que efectivamente se verificou: a clandestinidade do movimento e dos que nele podiam ter militado.
- Em autores de grande síntese - como Teilhard de Chardin, Arnold Toynbee ou Bertrand Russell - que podiam ter aberto a civilização ocidental a uma autocrítica e, portanto, a uma consciência ecológica profunda, foram assinaladas, no entanto, limitações estruturais por alguns precursores do movimento ecologista.
Relativamente às teses de Ivan Illich, adoptado pelo M.E.P. como seu farol e timoneiro, eram aqueles autores considerados reformistas dentro do sistema que vive de ir matando os ecossistemas.
- Os antecessores do M.E.P. foram buscar a um filósofo do materialismo dialéctico, Henri Lefèbvre, 2 noções-chave do movimento: o diferencialismo (o chamado «respeito à diferença» muito explorado pelos «hippies») e a «crítica da vida quotidiana», título de um livro de Henri Lefèbvre.
Uma «política do quotidiano» foi preconizada, pela 1ª vez, em textos da «Frente Ecológica». Pela 1ª e última vez, diga-se de passagem, sendo matéria de mais um dossier que ficou e continua maldito.
- A voga das «transplantações cirúrgicas» e o «boom» do cirurgião Barnard motivaram em alguns descontentes do Progresso um tremendo mal-estar.
Era o típico exemplo do progresso que não podia ser criticado, porque «salvava» vidas.
A demagogia do discurso científico e cientifista foi, com certeza, dos obstáculos a que o movimento ecologista nascente nunca saberia (nem poderia) dar resposta adequada.
Essa mesma demagogia verificar-se-ia, também, com o discurso dos sindicatos relativamente às indústrias mais devastadoras do meio ambiente ou aos empreendimentos mais calamitosos.
Tudo o que gera emprego (e todas as indústrias geram um emprego acrescentado - o de coveiro) é automaticamente bom e intocável.
Fosse a eucaliptação maciça do País (com os inerentes fogos de Verão), fosse a barragem de Alqueva (projecto salazarista, não o esqueçamos), fosse o encerramento de centrais nucleares, o alibi era e é sempre a criação de novos postos de trabalho.
Nunca o movimento ecologista poderia dar a volta a isto. O que significa, portanto, que a crise ecológica é irreversível e conduzirá inevitavelmente à catástrofe. Com todos a gritar «Vivó Progresso».
Catástrofe que evidentemente criará milhares de postos de trabalho - o de Coveiro.
A medicina das transplantações a salvar vidas e o industrialismo em geral, mesmo o mais catastrófico e mortífero, a criar postos de trabalho e a agricultura química a matar a fome mundial enquanto faz subir em flecha a incidência de cancros, são os dogmas da demagogia moderna, a Leste e a Oeste, à esquerda e à direita, a Norte e a Sul, que, à partida, o ecologismo teria de enfrentar. Claro que saiu literalmente derrotado.
- A rentabilização da doença, já citada, era apenas, bem vistas as coisas, um aspecto particular daquilo que, nos manuscritos de juventude, Karl Marx designou de alienação e que filósofos marxistas designaram de Reificação.
Uma página inédita de um diário, de 26/3/1971, assinala, em termos mais prosaicos e menos filosóficos, essa realidade de fundo que justificaria, mais do que nenhuma, o advento de uma «democracia ecológica», expressão que viria a aparecer, mais tarde, em escritos da «Frente Ecológica».
A alienação ou reificação marxista, alguém, em 1971, lhe chamava «patalogia administrativa», acrescentando: « Tudo se administra: o sexo, a educação, os tempos livres, a liberdade. Tudo se consome e se vende. Tudo se compra.»
- A crítica da agricultura química não se desligava do contexto mundial da Fome.
Ao contrário do que os agrónomos da F.A.O. e seus sequazes largamente defendiam, nos termos demagógicos que se conhecem, a agricultura química provoca mais fome em vez de a combater.
Mas esta afirmação precisava de uma demonstração autorizada que procedesse à desmontagem de 2 sofismas habilmente instilados na opinião pública:
1º sofisma - A fome decorre do excesso de população (teoria neomaltusiana a que, aliás, muitos alegados ecologistas, para não dizer todos, aderiram)
2º sofisma - Só com a agricultura química é possível matar a fome no Mundo.
O primeiro sofisma foi desmascarado pelo sociólogo brasileiro Josué de Castro, que demonstrou exactamente o contrário: a Fome provoca o excesso de população.
O segundo sofisma seria mais difícil de desmontar, embora sejam óbvias duas coisas:
a) Em 40 anos de agroquímica, a Fome alastrou em vez de recuar
b) Com a destruição dos solos pelas culturas químicas, a fome alastrará até aos países que até agora se julgavam imunes a ela.
Se houve fracassos estrondosos no movimento ecologista, este foi o maior: não ter conseguido fazer passar a verdade face aos sofismas e à demagogia generalizada sobre a Fome do Terceiro Mundo.
Em publicações da «Frente Ecológica» ler-se-ia que é o desenvolvimento que gera o subdesenvolvimento - heresia que, evidentemente, seria logo abafada pela retórica das multinacionais em geral e as do agrobusiness em especial.
- A reacção dita de esquerda às propostas ecologistas foi, sem dúvida e desde cedo, o sapo mais difícil de engolir pelo movimento ecologista nascente.
Em 1971, era bastante claro para alguns dos que viriam a dar forma ao M.E.P., esse flanco da reacção.
Com a crítica ao imperialismo norte-americano, a esquerda resolvia tudo: de um lado, os maus capitalistas, do outro lado os bons dos comunistas. Com este maniqueísmo se tentava calar toda a opinião que alinhasse pela alternativa.
Poluição era um mal do capitalismo e não da industrialização. Críticas ao industrialismo, portanto, eram automaticamente reduzidas ao industrialismo capitalista.
A denúncia de tudo o que era comum a leste e a Oeste, era considerado «inimigo da ordem e do progresso».
A denúncia da Bomba, da Poluição, da Burocracia de Estado, da Tortura, da Maratona termonuclear, da maratona olímpica, da maratona supersónica e espacial, do falhanço da medicina sintomática, etc, só tinha sentido se se inscrevesse tudo isso no rótulo geral de capitalismo. Tudo isso, a Leste, era o cúmulo da virtude.