18.2.08

O que mais adoras na tua terra?

Transcrição do último post do blogue Nadir dos Tempos pela emoção com que é escrito e que, apesar de todas as diferenças geográficas que nos separam, não me é de todo estranho. Por isso, o reproduzo aqui:

No Sotavento de hoje? Da minha geração?
A minha resposta é rápida: as comunidades de chineleiros alemãs da Mexilhoeira Grande a Odeceixe. Os bifes maluques e drogades, com que cresci. Estou convencido que foram o motor de evolução cultural da uma geração portimonense inteira, maior que quaisquer eventos esparsos promovidos pela câmaras, cultura "de dentro para dentro" - a única verdadeira fonte de cosmopolitanismo a que tive acesso na minha adolescência.


O único espaço no Barlavento a albergar consistentemente exposições de artistas livres, e concertos quase todos os dias para "qualquer um que tivesse uma banda e quisesse tocar" era o bar Santa Suzana do
Tim, punk alemão, perto de Aljezur, no meio do monte. Quando fechou passou a não haver nada ... até que abriu o Satori, perto de Querença, do francês Pascal.


Noites e noites passadas na Pereira, Arão, sob as estrelas, e acordar junto de praias selvagens são as melhores memórias que tenho.Há quatro anos, toda essa zona ardeu. Os terrenos desvalorizaram brutalmente. Cada vez mais amigos se vão embora, para a Austrália, para América do Sul, onde as praias ainda são selvagens e a gente ainda se pode sentar à fogueira, a água dos poços ainda se pode beber sem pesticidas dos campos de golf e onde não se toca fogo à terra para construir
autódromos. Perdemos todos.


Não por acaso o lema do
blogue Nadir dos Tempos é retirado do Coro dos Caídos de José Afonso:


Dançai ó parcas vossa negra festa
sobre a planície em redor que o ar empesta.
Cantai ó corvos pela noite fora
neste areal onde não nasce a aurora.




Texto completo:
Coro dos Caídos (José Afonso)

Cantai bichos da treva e da aparência
Na absolvição por incontinência
Cantai cantai no pino do inferno
Em Janeiro ou em Maio é sempre cedo
Cantai cardumes da guerra e da agonia
Neste areal onde não nasce o dia

Cantai cantai melancolias serenas
Como trigo da moda nas verbenas
Canta cantai guisos doidos dos sinos
Os vossos salmos de embalar meninos
Cantai bichos da treva e da opulência
A vossa vil e vã magnificência

Cantai os vossos tronos e impérios
Sobre os degredos sobre os cemitérios
Cantai cantai ó torpes madrugadas
As clavas os clarins e as espadas
Cantai nos matadouros nas trincheiras
As armas os pendões e as bandeiras

Cantai cantai que o ódio já não cansa
Com palavras de amor e de bonança
Dançai ó Parcas vossa negra festa
Sobre a planície em redor que o ar empesta
Cantai ó corvos pela noite fora
Neste areal onde não nasce a aurora

Acervo documental de Maria de Lourdes Pintasilgo disponível pela internet

Apesar de ser aparentemente uma heresia no Pimenta Negra – mas eu gosto de heterodoxias e imprevistos - quero recordar aqui, por interposta pessoa( por via deste excelente blogue, e da sua autora), a figura forte e envolvente de Maria de Lourdes Pintasilgo cuja vida calou fundo a muitos dos seus conterrâneos, independentemente das nossas crenças e opiniões poderem ser diferentes. E a minha modesta homenagem não podia ser outra que não seja a de dar a palavra à autora do blogue – que tenho vindo a consultar diariamente - , e de que me permito reproduzir um seu post a dar conta da disponibilização na Net de um importante acervo de documentação do arquivo de Maria de Lourdes Pintasilgo:


«Por ela equipei o meu mini com megafone e andei freguesias urbanas e rurais a incitar, com esta voz que Deus me deu e o tabaco aperfeiçoou, o voto numa esperança outra, pura, inteligente, límpida e visionária para Portugal. Foi em 86, era a primeira volta para as Presidenciais. Estive na sede de campanha no dia das eleições. Aplaudi-a por fora e chorei por dentro : discursos dignos provocam-me esse efeito. Uma Senhora, com maiúscula, e não só ali: em toda a sua vida. Até na hora da sua morte, atraiçoada por um ataque cardíaco devido a quem não poderia senão indignar-se e assustar-se com a perspectiva de um santanazeco lopes no governo. Jorge Sampaio vai ter que prestar muitas contas a Nosso Senhor.

Foi a única e última pessoa que me motivou tal comprometimento na vida política deste país (e nenhum partido político o houvera feito ou fez desde aí).

Com a sua derrota - e a cada dia que passa mais o entendo em toda a sua evidência - perdeu Portugal, perdemos todos nós.

Ganhámos todavia um pouco hoje: «mais de 10 mil documentos que retratam a vida de Maria de Lourdes Pintasilgo (...) vão estar disponíveis, a partir de hoje, na internet, (...) podendo ser consultado em
http://www.arquivopintasilgo.pt/MLP/ . O projecto, iniciado ainda em vida de Maria de Lourdes Pintasilgo, estará acessível a todos e não apenas a historiadores e estudiosos - como era seu desejo.» (Público de hoje)

A democracia, a verdadeira democracia directa que se sustenta no respeito pelo livre-arbítrio e pela inteligência dos cidadãos, foi mais do que a sua prática - foi a essência da sua alma.

Bem-haja e até sempre, Senhora Presidente»


(fim da transcrição)


Soneto à Liberdade ( Sonnet to Liberty) de Oscar Wilde

Não que eu ame teus filhos cujo olhar obtuso
Somente vê a própria e repugnante dor,
Cuja mente não sabe, ou quer saber, de nada
É que, com seu rugir, tuas Democracias,
Teus reinos de Terror e grandes Anarquias
Refletem meus afãs extremos como o mar,
Dando-me Liberdade! - à cólera uma irmã.
Minha alma circunspeta gosta de teus gritos
Confusos só por causa disso: do contrário,
Reis com sangrento açoite ou seus canhões traiçoeiros
Roubavam às nações seus sagrados direitos,
Deixando-me impassível e ainda, ainda assim,
Esses Cristos que morrem sobre as barricadas,
Deus sabe que os apóio ao menos parcialmente.

No original:

Not that I love thy children, whose dull eyes
See nothing save their own unlovely woe,
Whose minds know nothing, nothing care to know,
But that the roar of the Democracies,
Thy reigns of Terror, thy great Anarchies,
Mirror my wildest passions like the sea
And give my rage a brother Liberty!
For the sake only do thy dissonant cries
Delight my discreet soul, else might all kings
By bloody knout of treacherous cannonades
Rob nations of their rights inviolate
And I remain unmoved and yet, and yet,
These Christs that die upon the barricades,
God knows I am with them, in some things.


Oscar Wilde
Tradução: Nelson Ascher



Poema que encontrei e trouxe até aqui pela mão de um
blogue com óbvias afinidades com o Pimenta Negra, e que recomendo a todos uma merecida visita.

«O conhecimento é a tua arma de guerra mais poderosa e destruidora...»

Citação que encontrei neste blogue que vou passar a frequentar com assiduidade pois surpreendeu-me agradavelmente:


O Mundo, a Vida e a Liberdade podem ser melhores do que isto. Esforça-te para o conseguires, cada segundo, cada vez que respires. Liberta-te a ti mesmo pelo conhecimento, não acreditando nas mentiras das religiões, dos poderes, dos estados... A sabedoria é o único poder maior. Aprende, para saberes mais do que eles. O conhecimento é a tua arma de guerra mais poderosa e destruidora. Usa-a, ataca, mata, destrói.
(World, Life and Liberty can be better than this. Makes an harder effort for obtain it, each second, every time you breath. Liberate youself by the knowledge, not believing in the lies of the religions, of the powers, of the states... The wisdom is the unique one bigger power. Learn more, for know more than they.The knowledge is your more powerful weapon of war and destroyer. Use it, attack, kill, destroy!)


Também no mesmo blogue encontrei este soberbo poema da Sofia de Mello Breyner Andresen que aproveito para reproduzir :


Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

Sofia de Mello Breyner Andresen

O Canto de Intervenção ( 23 de Fev às 21h30) - tertúlia com música e poesia

O CANTO DE INTERVENÇÃO”
Espectáculo a realizar no dia 23 de Fevereiro, pelas 21h 30m, nas instalações do Clube Literário do Porto

Tertúlia com música e poesia.

Com a participação de:
Ana Afonso, Ana Ribeiro, Gabriela Marques, Jorge Ribeiro, José Luís Guimarães, Paulo
Esperança, Tino Flores.



c l u b e l i t e r á r i o d o p o r t o
Rua Nova da Alfândega, 22
PORTO
Telefone 222 089 228

12ª Mostra de Teatro de Almada - 8 a 24 de Fevereiro 2008

As companhias e grupos teatrais do concelho e a Câmara Municipal de Almada (CMA) organizam uma vez mais a Mostra de Teatro de Almada de 8 a 24 de Fevereiro nos diversos auditórios e espaços do concelho.


Esta iniciativa cumpre o objectivo primordial de promover e apoiar a diversidade da produção teatral dos grupos do concelho de Almada. Tendo-se distinguido nas edições anteriores pela variedade apresentada, tanto em termos de grupos apresentados como de actividades desenvolvidas, a 12ª edição afirma o desenvolvimento do projecto através da riqueza dos trabalhos apresentados e acções paralelas, bem como através do envolvimento dos vários espaços formais e alternativos.O início da Mostra este ano é assinalada pela presença muito especial de Ruy de Carvalho, com a abertura oficial a 8 Fevereiro, contando ainda com muita animação. Ruy de Carvalho reconhece o valor do trabalho da Mostra, a desenvolver e a estimular a criação teatral.

Em 2008 a Mostra arranca com os espectáculos a 10 de Fevereiro (domingo), iniciando com a estreia de “Amãenhecer “, um trabalho original da Armadilha – Associação de Teatro e Música com Cultura, dirigido a bebés e crianças dos 0 aos 5, no Auditório Fernando Lopes-Graça. Seguem-se trabalhos do GiTT, OTA e Ninho de Víboras. Serão apresentados 18 trabalhos, 8 dos quais estreias absolutas preparadas para a Mostra.A Mostra começou em 1996 com apresentações de 13 companhias no Salão de Festas da Sociedade Filarmónica Incrível Almandense (ainda hoje parte do circuito obrigatório da Mostra) e que desde então a Câmara Municipal de Almada continua a apostar num projecto de diversidade e estímulo.

De 8 a 24 de Fevereiro de 2008, Almada entra em cena!

Programa dos Grupos e projectos teatrais da 11ª edição da Mostra de Teatro de Almada

Amãenhecer - estreia
Um espectáculo Armadilha – Associação de Teatro e Música com Cultura
de António Rocha
10 de Fevereiro 11h30, 15h00, 16h15 Auditório Fernando Lopes-Graça
17 de Fevereiro 15h00, 16h15 Sala de Ensaios – Teatro Municipal de Almada


A vertigem da falésiaUm espectáculo GITT - Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria de Carlos Alfredo Amaral
10 de Fevereiro 16h00 Sala de Ensaios – Teatro Municipal de Almada


Paixões VeniaisUm espectáculo OTA - Oficina de Teatro de Almada de Fernando Rebelo a partir de Passiones Venéreas de Juan José Millás em
10 de Fevereiro 21h30 Casa Municipal da Juventude de Cacilhas


Feliz Aniversário Um espectáculo Ninho de Víborasde Harold Pinter
12 de Fevereiro 21h30 Sala de Ensaios do Teatro Municipal de Almada

Bonifácio do ParaísoUm espectáculo Teatro da Costa de Carlos G Melo
13 de Fevereiro 21h30 Teatro Extremo


Land EscapeUm espectáculo Murmuriu
14 de Fevereiro Sessões contínuas entre as 20h00 e as 23h00 Casa Municipal da Juventude de Cacilhas


Maria CurieUm espectáculo Teatro Extremo de Mira Michalowska
15 de Fevereiro 21h30 Teatro Extremo


O Fazedor de Vidas - estreiaUm espectáculo Menina dos Meus Olhos, Associação Culturalde Ângela Ribeiro
16 de Fevereiro 16h00 Auditório Fernando Lopes-Graça


Mr. Pipon, cabaret internacionalUm espectáculo Associação Créme de la Créme de Andreas Piper
16 de Fevereiro 21h30 Auditório Fernando Lopes-Graça


Huis Clos (Sem Saída) - estreiaUm espectáculo O Gritode Jean-Paul Sartre
17 de Fevereiro 21h30 Auditório Fernando Lopes-Graça


Bicho
Um espectáculo Útero
de Miguel Moreira
18 de Fevereiro 21h30 Espaço Ginjal


Chez Kantor - estreia
Um espectáculo Novo Nucleo de Teatro da FCT (NNT)
a partir de Tadeusz Kantor
19 de Fevereiro 21h30 Ginjal

A Perca
Um espectáculo Teatro da Costa
de Carlos G Melo
21 de Fevereiro 21h30 Auditório Fernando Lopes-Graça


Teoria Geral dos Maridos - estreia
Um espectáculo Teatro de Areia – Associação Cultural “Mundo do Espectáculo”
de Sarah Adamopoulos
22 de Fevereiro 21h30 Auditório Fernando Lopes-Graça


Pedro e o Lobo Um espectáculo Teatro ExtremoA partir de Esopo e de Serguei Prokofiev
23 de Fevereiro 16h00 Auditório Fernando Lopes-Graça

Tontos - estreiaUm espectáculo Ninho de Víboras de Maria João Garcia, a partir de textos de Anthony Minghella e Ingmar Bergman
23 de Fevereiro 18h00 Espaço Ginjal


Noite de Poesia Inesiana - estreiaUm espectáculo Teatro de Papelde António Ferreira
23 de Fevereiro 21h30 Convento dos Capuchos

Morte e Vida Severina - estreiaUm espectáculo Teatro & Teatro – Associação Cultural “Mundo do Espectáculo"de João Cabral de Melo Neto
24 de Fevereiro 21h30 Auditório Fernando Lopes-Graça


Mais Informação/ esclarecimentos
- DMDS - Divisão Municipal de Acção Cultural da Câmara Municipal de Almada
9h30m - 12h30m / 14h00 - 17h30m
Tel.: 212 724 735/51
Fax: 212 724 779
e-mail:
accao.cultural@cma.m-almada.pt
site:
www.almadadigital.pt/

Debate público sobre o novo modelo de gestão escolar na Fac. de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto

Vai-se realizar um debate aberto ao público em geral sobre o "Projecto de Decreto-Lei sobre o novo regime jurídico de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário" no auditório 2 A da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, pelas 17 horas do dia 20 de Fevereiro de 2008

Maria Lacerda de Moura - Uma Anarquista Individualista Brasileira


Texto publicado no nº 9 da revista Utopia



"Sou "indesejável", estou com os individualistas livres, os que sonham mais alto, uma sociedade onde haja pão para todas as bocas, onde se aproveitem todas as energias humanas, onde se possa cantar um hino à alegria de viver na expansão de todas as forças interiores, num sentido mais alto – para uma limitação cada vez mais ampla da sociedade sobre o indivíduo."

Maria Lacerda de Moura

Um dos temas da história do movimento operário e, particularmente, do anarquismo, que até hoje tem sido pouco pesquisado é o da presença feminina. Na história do anarquismo, e do socialismo no seu conjunto, a atuação das mulheres, mesmo não sendo rara, é significativamente menor do que a masculina. Existem razões de sobra que explicam esse fato. Em primeiro lugar, na composição do operariado que viria a gerar esses movimentos, a percentagem de mulheres foi, ao longo de muitas décadas, muito inferior à dos homens. Um fato ainda mais evidente nos círculos da intelectualidade independente que esteve associada ao nascimento das idéias socialistas. Por outro lado, a cultura familiar reacionária, ou revestida de valores conservadores, estava bem presente no mundo operário do século XIX e primeira metade do século XX, fazendo com que as mulheres acabassem, mesmo nos movimentos sociais, adotando - ou sendo empurradas em alguns casos - para uma posição subalterna, ligada a velhos preconceitos associados a idéias como "fragilidade feminina", papel "maternal" das mulheres ou da sua "passividade".
É certo que em muitos casos era tão-só a histórica divisão de papéis sociais que relegava as mulheres para uma função doméstica que contrariava, ou dificultava, a sua militância social. Talvez por isso, entre as mulheres que mais se destacaram no movimento anarquista, exista um número importante de personagens femininas que optaram por uma vida pessoal independente, onde o casamento e uma relação familiar mais tradicional, ou até a maternidade, foram recusadas em nome da liberdade e da autonomia.
Evidente que o papel das companheiras e cúmplices - sentimentais e de idéias - dos anarquistas, e dos militantes operários em geral, foi de tal forma relevante que constituiu, por si mesmo, uma destacada presença feminina no movimento. Ainda que um feminismo pseudo-radical, incapaz de situar histórica e culturalmente as relações de gênero, veja nessa relação ou em aspectos tradicionais das relações dentro das famílias dos militantes operários e anarquistas a prova irrefutável da manutenção de valores machistas e de sujeição das mulheres nos movimentos anti-burgueses.
A cultura operária anti-capitalista sempre procurou valorizar os direitos intrínsecos e específicos das mulheres. Era também comum, na imprensa e literatura libertárias, a crítica das instituições familiares, do casamento burguês e a defesa do amor livre3 , tematização que alguns pensadores individualistas chegaram a dar um relevo especial. Foi o caso de Emile Armand4 e Han Ryner5 . Mulheres libertárias, como Emma Goldman6 , também deram uma particular atenção ao tema.
Mesmo sendo assim, há que se reconhecer, a presença efetiva, marcante e autônoma das mulheres, no movimento operário e no anarquismo, foi limitada. O que não impediu que em alguns setores operários, particularmente no têxtil, tecelãs e costureiras tivessem um papel determinante na organização e nas lutas sindicais, a partir das quais se destacaram importantes militantes libertárias e socialistas que contribuíram para o anarco-sindicalismo e para o sindicalismo revolucionário internacional. É no contexto da época e das sociedades onde desenvolveram sua militância que poderemos explicar as diferenças de presença, de importância ou de destaque entre mulheres e homens no movimento operário anarquista ou no movimento socialista em geral. Por essa mesma razão, não é de estranhar a ausência de um número mais significativo de teóricas do anarquismo e do socialismo, principalmente no século XIX.
Apesar de tudo isso, nomes como Mary Wollstonecraft7 , companheira de William Godwin8 e precursora do feminismo, Flora Tristán9 , Louise Michel10 , Emma Goldman, Voltarine de Cleyre11 , Lucy Parsons12 , Tereza Mané13 , Federica Monteseny14 , May Picqueray15 , Giovanna Caleffi16 e Luce Fabri17 , deixaram profundas marcas nos movimentos sociais e no pensamento libertário de seus respectivos países. Em Portugal, alguns nomes se destacam: Miquelina Sardinha18 , Virgínia Dantas e Luisa Franco Adão. No Brasil, Edgar Rodrigues, na sua obra Os Companheiros, que reúne em cinco volumes uma ampla pesquisa biográfica de militantes anarquistas, lista o nome de 52 mulheres que tiveram especial relevância no movimento social, no período que vai do final do século XIX à metade do século XX.
Entre estas mulheres, Maria Lacerda de Moura merece um lugar à parte, não só pela sua personalidade combativa, pela sua múltipla atividade de escritora e conferencista, como pelo destaque que chegou a ter, não só no Brasil, como em outros países da América do Sul, tendo os seus textos divulgados em Portugal, na França e, principalmente, na Espanha.
Nascida em Minas Gerais a 16 de maio de 1887, desde jovem se interessou pelo pensamento social e pelas idéias anticlericais. Formou-se na Escola Normal de Barbacena, em 1904, começando logo a lecionar nessa mesma escola. Inicia então um trabalho junto às mulheres da região, incentivando um mutirão de construção de casas populares para a população carente da cidade. Participou da fundação da Liga Contra o Analfabetismo. Como educadora, adotou a pedagogia libertária de Francisco Ferrer Guardia19 . Após se mudar para São Paulo, começou a dar aulas particulares e a colaborar na imprensa operária e anarquista brasileira e internacional. No jornal A Plebe (SP) escreveu principalmente sobre pedagogia e educação. Seus artigos foram também publicados por jornais independentes e progressistas, como O Combate, de São Paulo e O Ceará (1928), de Fortaleza, de onde se extraiu o texto Feminismo? Caridade?, bem como em diferentes jornais operários e anarquistas de todo o Brasil.
Em Fevereiro de 1923, lançou a revista Renascença, publicação cultural divulgada no movimento anarquista e entre setores progressistas e livre-pensadores. A importância desta militante pode ser avaliada, entre outros, pelo fato de que, em 1928, jovens estudantes e trabalhadores paulistas terem invadido o jornal pró-fascista italiano Il Piccolo, como resposta a um artigo que caluniava violentamente a pensadora libertária. Na mesma época, Rachel de Queiroz20 polemizou acaloradamente, nas páginas d’ O Ceará, com um jornalista cearense que atacou Maria Lacerda.
Ativa conferencista, tratava de temas como educação, direitos da mulher, amor livre, combate ao fascismo e antimilitarismo, tornando-se conhecida não só no Brasil, mas também no Uruguai e Argentina, onde esteve convidada por grupos anarquistas e sindicatos locais. Entre 1928 e 1937, a ativista libertária viveu numa comunidade em Guararema (SP), no período mais intenso da sua atividade intelectual, tendo descrito esse período como uma época em que esteve "livre de escolas, livre de igrejas, livre de dogmas, livre de academias, livre de muletas, livre de prejuízos governamentais, religiosos e sociais".
Maria Lacerda de Moura pode ser considerada uma das pioneiras do feminismo no Brasil e uma das poucas ativistas que se envolveu diretamente com o movimento operário e sindical. Entre os seus numerosos livros destacam-se: Em torno da educação (1918); A mulher moderna e o seu papel na sociedade atual (1923); Amai e não vos multipliqueis (1932); Han Ryner e o amor plural (1928) e Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital (s/d).
O texto de Maria Lacerda de Moura que transcrevemos de seguida foi publicado no jornal independente O Ceará (1928), de Fortaleza, a pedido da então jovem escritora Rachel de Queiroz, que se consagraria como uma das grandes romancistas brasileiras contemporâneas. Esse texto expressa o pensamento de Maria Lacerda de Moura sobre o feminismo e sua visão anarco-individualista. Uma filosofia libertária bastante influenciada por Han Ryner, um pensador libertário original que se destacou em França como ativista anti-militarista, anti-clerical e defensor do amor livre. Outra influência notória no texto é a de Emile Armand.
É certo que ele não representa todo o pensamento da anarquista brasileira. Como todo militante, com larga atividade literária, passou por diferentes fases e sua reflexão abordou temas tão diversos comoa guerra, o malthusianismo e a pedagogia libertária.
Polêmica na literatura e na militância, Maria Lacerda de Moura passou pela Maçonaria e pela Fraternidade Rosa Cruz, com quem rompeu denunciando-a como agente do nazismo. Atravessou algumas fases de maior envolvimento social e outras de isolamento, umas de otimismo e outras de declarado pessimismo. E, se no fim da vida, permanecia num certo pessimismo, isso deve-se certamente às divergências e rupturas que, no fim da década de 20, confrontavam anarquistas e comunistas ao mesmo tempo em que acontecia a ameaçadora ascensão do fascismo. No entanto, quando após a fundação do Partido Comunista dirigentes desse partido, fizeram várias tentativas para aliciá-la, a pensadora libertária recusou-se a abandonar sua visão de mundo, mantendo até ao fim da vida o seu anarquismo individualista21 .
Maria Lacerda de Moura é praticamente desconhecida no Brasil, onde um certo feminismo parece querer ocultar aquela que seria uma das primeiras e mais importantes ativistas das causas das mulheres, mas que nunca reconheceu no Estado, no Direito e no acesso profissional burguês a sua causa. Na verdade, isso acontece porque, antes de tudo, via generosamente a luta feminista como parte integrante do combate social compartilhado igualmente por homens e mulheres engajados na luta pela eliminação de toda exploração, injustiça e preconceito. Talvez por isso mesmo, ela seja ainda um símbolo incômodo para toda a sociedade conservadora, até para o atual conservadorismo feminista, mero arrivismo social de classe média em busca do seu lugar ao sol no Estado e no capitalismo, tal comoo foi para as sufragistas da classe média e das elites do seu tempo.A militante anarquista morreu em 1945, no Rio de Janeiro.
Notas:

1 Historiadora e professora da Universidade Federal do Ceará.
2 Doutor em nada, militante anarquista e colaborador da imprensa libertária
3 Giovanni Rossi (1856-1943), idealizador da Colônia Cecília fundada em 1891 por anarquistas italianos no sul do Brasil, chegou a escrever o livro Un Episodio d’amore nella Colonia Cecilia, onde analisa a sua experiência pessoal de um amor plural e as dificuldades de superação das relações e moral convencional numa comunidade libertária.
4 Emile Armand (1872-1963).Um dos mais importantes militantes anarquistas individualistas franceses. Autor de L’ Iniciation Individualiste Anarchiste e Anarquismo e Individualismo.
5 Han Ryner (1861-1938). Pensador e escritor anarquista individualista francês nascido na Argélia. Pacifista, anticlerical e defensor do amor livre. Autor de O Pequeno Manual Individualista e de O Quinto Evangelho, exerceu grande influência sobre Maria Lacerda Moura, mais visível no seu livro Han Ryner e o Amor Plural, de 1933.
6 Emma Goldman (1868-1940). Militante e pensadora anarquista de origem russa, emigrou para os EUA em 1886. Em 1919 foi expulsa para a Rússia, mas logo teve de abandonar o país por discordar do que denominava a evolução autoritária da Revolução Soviética. Viveu em vários países e teve um importante papel no apoio à Revolução Espanhola de 1936. Viria a falecer no Canadá.
7 Mary Wollstonecraft (1759-1797). Ativista libertária inglesa, companheira de William Godwin e autora do livro precursor do feminismo Vindicatin of the Rights of Woman, editado em 1792.
8 William Godwin (1756-1835). Considerado um dos primeiros pensadores anarquistas modernos foi o autor do livro Investigação Acerca da Justiça Política, editado em 1873.
9 Flora Tristán (1803-1844). Libertária, de pais peruanos, nascida em Paris. Preocupada com o problema social, engajou-se nas lutas operárias e escreveu, em 1843, a União Operária, uma das primeiras propostas de organização internacional dos trabalhadores.
10 Louise Michel (1833-1905). Professora e militante anarquista francesa. Participou da Comuna de Paris e acompanhou de forma ativa o crescimento do movimento operário e do anarquismo francês.
11 Voltairine de Cleyre (1866-1912). Uma das mais ativas agitadoras e oradoras anarquistas americanas, colaborou na revista Mother Earth e destacou-se por tratar dos temas referentes às mulheres e ao amor livre.
12 Lucy Parsons (1853-1942). Militante operária e anarquista americana. Companheira de Albert Parsons, um dos mártires de Chicago, continuou sendo uma ativa militante operária até ao final da sua vida, dando destaque aos temas da mulher e do racismo.
13 Teresa Mané (1865-1939). Militante anarquista e professora, ficou conhecida pelo pseudônimo de Soledad Gustavo, foi companheira de Federico Urales e mãe de Federica Montseny, que constituíram uma das famílias mais ativas no movimento anarquista espanhol.
14 Federica Montseny (1905-1994). Uma das mais conhecidas militantes anarquistas espanholas. Militante da CNT, durante a Revolução de 1936 integrou o governo republicano como ministra da saúde, por decisão majoritária, embora polêmica do movimento anarquista.
15 May Picqueray (1898-1983). Anarquista individualista e ativa pacifista francesa.
16 Giovanna Caleffi (1897-1962). Militante anarquista italiana, companheira de Camilo Berneri, assassinado pelos estalinistas em Barcelona. Continuou sua militância em Itália até morrer. Sua filha Maria Louise Berneri, foi também militante anarquista.
17 Luce Fabri (1908-). Ativa militante anarquista uruguaia ainda viva, filha de Luigi Fabri (1877-1935) um dos mais ativos anarquistas italianos deste século.
18 Miquelina Sardinha (1902-1966). Professora e militante anarquista portuguesa, companheira de Francisco Quintal (1898-1987) ativo militante anarco-sindicalista.
19 Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909). Pedagogo e militante anarquista espanhol que desenvolveu os princípios da Escola Moderna baseada no ensino misto, laico, crítico e científico. O seu método e filosofia de educação espalharam-se por diversos países entre os quais o Brasil. O movimento operário, principalmente o anarco-sindicalista, criou escolas nos sindicatos baseadas no pensamento de Ferrer. Franscisco Ferrer viria a ser fuzilado, em 1909, em razão das suas idéias e da sua militância social.
20 Rachel de Queiroz (1910-). Romancista e cronista brasileira nascida no Ceará. Autora dos romances: O Quinze; João Miguel; Caminho das Pedras e Memorial de Maria Moura, entre outros. Esteve próxima às posições trotskistas e hoje gosta de se definir como "uma anarquista doce".
21 Embora no livro de Míriam Leite, Outra face do feminismo, se tente provar a aproximação de Maria Lacerda de Moura do Partido Comunista, Otávio Brandão, dirigente comunista da época, e ex-anarquista, desmente na sua autobiografia, Combates e Batalhas (São Paulo: Alfa-Omega, 1978), que a sua tentativa tenha resultado.

Bibliografia consultada:
- Combates e Batalhas, Otávio Brandão. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1978.
- Os Companheiros (vol 1 a 5), Edgar Rodrigues. Florianópolis: Editora Insular, 1997-1998.
- Os Libertários, Edgar Rodrigues. Petrópolis: Editora Vozes, 1988.
- Outra Face do Feminismo: Maria Lacerda de Moura, Míriam Lifchtitz Moureira Leite. São Paulo: Editora Ática, 1984.
- Jornal O Ceará, Fortaleza, 1928.
Adelaide Gonçalves(1) e Jorge Silva(2)



Para saber mais, consultar: