Eles podem colocar as prisões sob prisão preventiva, mas não o vento nem a luz Texto da tradução para português retirado do website: http://www.radioleonor.org/
Entrevista a Julien Coupat, realizada ainda na prisão e por escrito pelas jornalistas Isabelle Mandraud e Caroline Monnot e publicada a 25 de Maio pelo Le Monde [diário francês].
Coupat esteve em prisão preventiva entre 15 de Novembro de 2008 e 28 de Maio de 2009 acusado de “terrorismo”, no seguimento dos acontecimentos de “Tarnac”.
“É o aspecto mais formidável deste processo: um livro transcrito integralmente no dossier da instrução, interrogatórios onde se tenta fazer-nos dizer que vivemos como está escrito em «A insurreição que vem», que nos manifestamos como é preconizado em «A Insurreição que vem», que sabotamos linhas de comboio para comemorar o golpe de Estado bolchevique de Outubro 1917, como é mencionado em «A Insurreição que vem», um editor convocado pelos serviços anti-terroristas para interrogatório. Na memória francesa, há muito tempo que não se via o poder ter medo por causa de um livro. Havia mais o hábito de considerar que enquanto os esquerdistas estavam ocupados a escrever, pelo menos não estavam a fazer a revolução. Os tempos estão a mudar, seguramente. Regressa a seriedade histórica.”
Como está a viver a sua detenção?
Muito bem, obrigado. Exercício, corrida, leitura.
Pode recordar-nos as circunstâncias da vossa detenção?
Um bando de jovens encapuzados e armados até aos dentes arrombou-nos a casa., Depois de terem destruído tudo, ameaçaram-nos, algemaram-nos e levaram-nos. Fomos sequestrados a bordo de potentes carros de alta cilindrada, que rodavam a mais de 170 km/h pela auto-estrada. Nas suas conversas, aparecia frequentemente um certo M. Marion [antigo chefe da polícia antiterrorista] cujas façanhas viris os deixava bastante divertidos - como a de esbofetear com bom humor um colega no ambiente divertido de uma festa de despedida. Estivemos sequestrados durante 4 dias numas das suas “prisões do povo”, atordoados com questões onde o absurdo rivalizava com o obsceno.
Aquele que parecia ser o cérebro das operações descartava-se vagamente de todo este circo, explicando que era tudo culpa dos “serviços”, lá em cima, onde se move todo o tipo de gente que nos desejaria bastante. Até hoje, os meus raptores permanecem a monte. Diversos factos recentes atestam mesmo que eles continuam as sevícias com toda a impunidade.
As sabotagens das catenárias dos caminhos de ferro (SNCF) em França foram reivindicadas na Alemanha. Que diz disto?
No momento da nossa detenção, a polícia francesa tinha já em sua posse um comunicado que reivindicava, além das sabotagens que nos foram atribuídas, outros ataques ocorridos simultaneamente na Alemanha. Este panfleto apresentava numerosos inconvenientes: foi redigido em alemão e enviado de Hanôver exclusivamente para jornais alemães, mas sobretudo não encaixava bem na fábula mediática feita à nossa custa - a de um pequeno núcleo de fanáticos que conduz o ataque ao coração do Estado pendurando três pedaços de ferro sobre catenárias. Adoptar-se-à, desde logo, o extremo cuidado de não mencionar demasiado este comunicado, nem no processo, nem na mentira pública.
É verdade que a sabotagem de linhas de comboio perde aí muita da sua aura misteriosa: tratava-se apenas de protestar contra o transporte para a Alemanha, por via ferroviária, de resíduos nucleares ultra-radioactivos e de denunciar de passagem a grande burla da “crise”. O comunicado termina com um muito SNCF “agradecemos a compreensão dos passageiros dos comboios afectados”. Há que sublinhar o tacto revelado por estes “terroristas”!
Reconhecem-se nas qualificações de “cena anarco-autónoma” e de “ultra-esquerda”?
Permitam-me ir um pouco mais longe. Vivemos actualmente em França, o fim de um período de paralisia histórica, cujo acto fundador foi o acordo entre gaullistas e estalinistas em 1945 para desarmar o povo sob o pretexto de “evitar uma guerra civil”. Os termos deste pacto poderiam formular-se assim, para ser breve: enquanto a direita renunciava às suas tendências abertamente fascistas, a esquerda abandonava no seu interior qualquer perspectiva séria de revolução. A vantagem que tem e goza, desde há quatro anos, a clique sarkoziana, é a de ter tomado unilateralmente a iniciativa de romper este pacto, reatando “sem complexos” com os clássicos da reacção pura – sobre os loucos, a religião, o Ocidente, a África, o trabalho, a história de França, ou a identidade nacional.
Face a este poder em guerra, que ousa pensar estrategicamente e dividir o mundo em amigos, inimigos e quantidades neglicenciáveis, a esquerda permanece paralisada. É demasiado cobarde, demasiado comprometida, em suma, demasiado desacreditada para poder opor a mais pequena resistência a um poder que ela própria não ousa tratar como inimigo, e que lhe subtrai, um a um, os mais engenhosos entre as suas fileiras. Quanto à extrema-esquerda à-la-Besancenot, sejam quais forem os resultados eleitorais, e mesmo saindo do estado grupúscular onde desde sempre vegetou, ela não tem um perspectiva mais ambiciosa a oferecer que não seja o cinzentismo soviético, agora retocado em Photoshop. O seu destino é desiludir.
Na esfera da representação política, o poder em funções não tem portanto nada a recear de ninguém. E não são certamente as burocracias sindicais, mais vendidas do que nunca, que o irão importunar, elas que desde há dois anos dançam com o governo um ballet bem obsceno. Nestas condições, a única força que enfrenta directamente o gangue sarkoziano, o seu único inimigo real neste país, é a rua, a rua e as suas velhas inclinações revolucionárias. Apenas ela, de facto, nas revoltas que se seguiram à segunda volta do ritual plebiscitário de Maio de 2007, soube erguer-se por um instante à altura da situação. Apenas ela, nas Antilhas ou nas recentes ocupações de empresas ou de faculdades, soube fazer passar uma outra palavra.
Esta análise sumária do teatro de operações conseguiu impor-se bastante cedo, desde que os serviços de informação fizeram aparecer a partir de Junho de 2007, sob a pluma de jornalistas às ordens (e nomeadamente no Le Monde), os primeiros artigos que revelavam o terrível perigo que os “anarco-autónomos” representam para toda a vida social. Era-lhes atribuída, desde logo, a organização dos motins espontâneos que em muitas cidades saudaram o “triunfo eleitoral” do novo presidente.
Com esta fábula dos “anarco-autónomos”, ficou desenhado o perfil da ameaça à qual a ministra do interior se dedicou docilmente; de detenções arbitrárias a rusgas mediáticas, conseguiu um pouco de carne e algumas caras. Quando já não se pode conter o que transborda, pode-se ainda criar um caso e aí encarcerá-lo. Ora a figura dos “violentos” - onde daqui para a frente se cruzam aos encontrões os trabalhadores de Clairoix, os putos dos subúrbios, os estudantes que fecham escolas e os manifestantes das contra-cimeiras - certamente eficaz na gestão corrente da pacificação social, permite criminalizar os actos mas não as existências. E está bem patente na intenção do novo poder atacar o inimigo, enquanto tal, sem esperar que este se exprima. É esta a vocação das novas categorias da repressão.
Pouco importa, finalmente, que não exista ninguém em França que se reconheça como “anarco-autónomo”, nem que a ultra-esquerda seja uma corrente política que conheceu a sua glória na década de 1920 e que depois disso nada mais tenha produzido do que inofensivos volumes de marxologia. De resto, o recente sucesso do termo “ultra-esquerda”, que permitiu a certos jornalistas apressados catalogar sem esforço os revoltosos gregos de Dezembro último, deve muito ao facto de ninguém saber o que foi a ultra-esquerda, nem mesmo que ela tinha alguma vez existido.
Neste ponto, tendo em contra os levantamento que não podem senão sistematizar-se face às provocações de uma oligarquia mundial e francesa vociferante, a utilidade policial destas categorias já não carece de debate. Não é portanto possível antever qual das categorias - “anarco-autónomo” ou “ultra-esquerda” - servirá por fim os favores do Espectáculo, a fim de remeter para o inexplicável uma revolta que tudo justifica.
A policia considera-o chefe de um grupo a ponto de resvalar para o terrorismo. Que pensa disto?
Uma alegação tão patética só pode ser o produto de um regime a ponto de resvalar para o nada.
Que significa para si a palavra terrorismo?
Nada pode explicar que o departamento de informações e segurança argelino, suspeito de ter orquestrado a vaga de atentados de 1995 sob orientação da DST (Direction de Surveillance du Térritoire, serviços franceses anti-terrorismo), não seja colocado a par de outras organizações terroristas internacionais. Nada permite explicar também a súbita transmutação do “terrorista” em herói de libertação, em parceiro recomendado pelos acordos de Evian, em polícia iraquiano ou em “talibã moderado” dos nossos dias, ao sabor das últimas alterações da doutrina estratégica americana.
Nada, a não ser a soberania. É soberano, neste mundo, aquele que designa o terrorista. Quem se recusa a fazer parte desta soberania evitará por isso responder à vossa questão. Quem apenas pedincha por algumas migalhas não hesitará em fazê-lo. Quem não estiver entupido de má fé achará muito instrutivo o caso desses dois ex-“terroristas” tornados, um o primeiro-ministro de Israel, o outro o presidente da Autoridade palestiniana, tendo ambos recebido, para cúmulo, o Prémio Nobel da paz.
A névoa que envolve a qualificação de “terrorismo”, a impossibilidade manifesta de a definir, não remete para uma qualquer lacuna provisória da legislação francesa - constituem o princípio dessa coisa que se pode definir bastante bem: o anti-terrorismo, de cujo funcionamento são uma das condições. O anti-terrorismo é uma técnica de governo que mergulha as suas raízes na velha arte da contra-insurreição, da guerra dita “psicológica”, para não ir mais longe.
O anti-terrorismo, ao contrário do que o termo insinua, não é um meio de luta contra o terrorismo, é o método através do qual se produz, positivamente, o inimigo político enquanto terrorista. É sobretudo um luxo de provocações, de infiltrações, de vigilância, intimidação e propaganda, uma ciência da manipulação mediática, da “acção psicológica”, da fabricação de provas e crimes, através da fusão do policial com o judiciário, trata-se de aniquilar a “ameaça subversiva” associando entre a população, o inimigo interior, o inimigo político, com o adepto do terror.
O essencial, na guerra moderna, é esta “batalha pelos corações e pelos espíritos” onde todos os golpes são permitidos. O procedimento elementar é, aqui, invariável: individualizar o inimigo de modo a separá-lo do o povo e do senso comum, expô-lo com as vestes de um monstro, difamá-lo, humilhá-lo publicamente, e incitar os mais infames a destilarem ódio sobre ele. “A lei deve ser utilizada como apenas uma outra arma do arsenal do governo e neste caso não representa mais do que uma cobertura de propaganda para desembaraçar-se dos membros indesejáveis do público. Para uma maior eficácia, convém que as actividades dos serviços judiciários estejam ligadas ao esforço de guerra de maneira o mais discreta possível”, aconselhava já, em 1971, o brigadeiro Frank Kitson [antigo general do exército britânico, teórico de guerra contra-insurreccional] que sabia algumas coisas acerca do assunto.
Uma andorinha não faz a primavera e, no nosso caso, o anti-terrorismo foi um fracasso. A França não está pronta a deixar-se aterrorizar por nós. O prolongamento da minha detenção por uma duração “razoável” é uma pequena vingança bem compreensível, considerando os meios mobilizados e a profundidade do fracasso; como é compreensível a obstinação um pouco mesquinha dos “serviços”, desde o 11 de Novembro, em responsabilizar-nos atravé da imprensa pelos delitos mais incríveis, ou em seguir qualquer um dos nossos camaradas. Até que ponto esta lógica de represálias se apoderou da instituição policial e do pequeno coração dos juízes, eis o que foi revelado nos últimos tempos pelas detenções cadenciadas de “pessoas próximas de Julien de Coupat”.
É necessário dizer que alguns apostam neste processo toda a sua lamentável carreira, como Alain Bauer [criminólogo], outros o lançamento dos seus novos serviços, como o pobre M. Squarcini [director central do serviço de informações interiores], outros ainda a credibilidade que nunca tiveram e que jamais terão, como Michèle Alliot-Marie [Ministra da Administração Interna ]
Saiu de um meio muito confortável que poderia orientá-lo noutra direcção….
“Existe plebe em todas as classes” (Hegel).
Porquê Tarnac?
Vá lá, você compreende. Se não compreende, receio que ninguém lhe poderá explicar.
Você define-se como um intelectual? Um filósofo?
A filosofia nasceu enquanto luto tagarela da sabedoria originária. Platão entendia já a palavra de Heraclito como algo que escapou de um mundo defunto. Numa época de intelectualidade difusa, não vemos o que poderia especificar “o intelectual”, senão a extensão do fosso que separa, nele próprio, a faculdade de pensar da aptidão de viver. Tristes títulos esses, na verdade. Mas, para quem, afinal, seria necessário alguém definir-se?
Você é o autor do livro A insurreição que vem?
É o aspecto mais formidável deste processo: um livro transcrito integralmente no dossier da instrução, interrogatórios onde se tenta fazer-nos dizer que vivemos como está escrito em A insurreição que vem, que nos manifestamos como é preconizado em A Insurreição que vem, que sabotamos linhas de comboio para comemorar o golpe de Estado bolchevique de Outubro 1917, como é mencionado em A Insurreição que vem, o seu editor convocado pelos serviços anti-terroristas para interrogatório.
Na memória francesa, há muito tempo que não se via o poder ter medo por causa de um livro. Havia mais o hábito de considerar que enquanto os esquerdistas estavam ocupados a escrever, pelo menos não estavam a fazer a revolução. Os tempos estão a mudar, seguramente. Regressa a seriedade histórica.
O que funda a acusação de terrorismo, no que nos diz respeito, é a suspeita da coincidência entre um pensamento e uma vida; o que faz a associação de malfeitores, é a suspeita de que esta coincidência não é deixada ao heroísmo individual, mas antes se torna o objecto de uma atenção comum. Negativamente, isto significa que não se suspeita de nenhum daqueles que assinam com o seu nome ferozes críticas ao sistema, sem alguma vez pôr em prática a mais ínfima das suas firmes resoluções; a injúria é quanto baste. Infelizmente, não sou o autor de A insurreição que vem - e todo este assunto deveria antes conseguir convencer-nos do carácter essencialmente policial da função do autor.
Eu sou, em retaliação, um leitor. Ao reler o livro, há menos de uma semana, compreendi melhor a irritação histérica que provocou, nas altas esferas, na perseguição aos seus presumíveis autores. O escândalo deste livro, é que tudo o que aí figura é rigorosamente, catastroficamente verdadeiro, e não pára de se revelar cada dia mais enquanto tal. Porque aquilo que se evidencia, para lá da “crise económica”, de uma “perda de confiança”, de uma “rejeição massiva das classes dirigentes”, é exactamente o fim de uma civilização, a implosão de um paradigma: o do governo, que tudo comandava no Ocidente - a relação dos seres entre si não menos do que a ordem política, a religião ou a organização das empresas. Existe, em todos os escalões do presente, uma gigantesca perda de controlo para a qual nenhuma espectacular operação policial servirá como remédio.
Não será por nos trespassarem com penas de prisão, com vigilância minuciosa, com controlo judiciário, e interdições de comunicação sob o pretexto de que somos os autores desta constatação lúcida, que se fará evaporar o que foi constatado. É próprio das verdades, uma vez enunciadas, libertarem-se de quem as formulou. Governantes, não vos servirá de nada entregar-nos à justiça, muito pelo contrário.
Está a lêr «Vigiar e punir», de Michel Foucault. Essa análise ainda lhe parece pertinente?
A prisão é o pequeno segredo sórdido da sociedade francesa, não está na margem de relações sociais mais apresentáveis, é antes a sua peça-chave. O que se concentra aqui num todo compacto não é, como se encarregam de nos fazer crer, um amontoado de bárbaros selvagens, mas antes o conjunto das disciplinas que tecem, cá fora, a existência dita «normal». Vigilantes, cantina, jogos de futebol no pátio, emprego do tempo, divisões, camaradagem, cenas de porrada, arquitectura repressiva: é necessário ter já passado algumas noites na prisão para tomar plena consciência de tudo o que a escola, a inocente escola da República, contém, por exemplo, de carcerário.
Encarada a partir deste ângulo inexpugnável, não é a prisão que serve de tapete para esconder os fracassos da sociedade, mas antes a sociedade actual que assume a forma de uma prisão fracassada. A mesma organização da separação, a mesma administração da miséria pela droga, pela televisão, pelo desporto e pela pornografia reinam em toda parte, ainda que certamente de modo menos metódico que aqui. Finalmente, estes muros altos não ocultam senão esta verdade de uma explosiva banalidade: são vidas e almas em tudo semelhantes as que se desenrolam de um lado e de outro do arame farpado, e por causa dele.
Se são seguidos com tamanha avidez os testemunhos «do interior», que deveriam finalmente expor os segredos que a prisão oculta, é apenas para melhor ocultar o segredo do que ela é: o da vossa servidão, vocês que são considerados livres ao mesmo tempo que a sua ameaça pesa invisivelmente sobre cada um dos vossos gestos.
Toda a virtuosa indignação que acompanha o buraco negro das prisões francesas e os seus repetidos suicídios, toda a grosseira contra-propaganda da administração penitenciária, que apresenta perante as câmaras guardas prisionais dedicados ao bem-estar dos detidos e directores de prisão zelosos do «objectivo da sentença», resumindo: todo esse debate acerca do horror do encarceramento e da necessidade de humanizar a detenção, é tão velho como a prisão. É necessário partir precisamente da sua eficácia, que permite combinar o terror que deve inspirar com o hipócrita estatuto de punição «civilizada». O pequeno sistema de espionagem, de humilhação e de devastação que o Estado francês emprega em relação aos detidos, mais fanaticamente do que qualquer outro na Europa, não é sequer escandaloso. O Estado paga por ele todos os dias, multiplicado por cem, nos seus subúrbios e isso não é claramente mais do que um princípio: a vingança é a higiene da plebe.
Mas a mais notável impostura do sistema judicial e penitenciário consiste certamente em pretender que ele serve para punir os criminosos quando ele não faz outra coisa senão gerar as ilegalidades. Não interessa que qualquer patrão – e não apenas o da Total –, qualquer autarca – e não apenas o do Hauts-de-Seine [subúrbio ocidental de Paris] -, qualquer bófia, saiba quantas ilegalidades são necessárias para o correcto exercício da sua profissão. O caos das leis é tal, nestes dias, que se torna prudente não procurar fazê-las respeitar em demasia e os próprios stups [polícia francesa encarregue dos narcóticos], fazem bem em apenas regular o tráfico em vez de o reprimir - o que seria social e politicamente suicidário.
A divisão não passa por isso, como pretenderia a ficção judicial, entre o legal e o ilegal, entre os inocentes e os criminosos, mas entre os criminosos que se julga oportuno perseguir e aqueles que são deixados em paz, conforme o exigido pelo policiamento geral da sociedade.
A raça dos inocentes está extinta há muito tempo e a punição não é aquilo a que a justiça nos condena: a punição é a própria justiça. Não se trata por isso, para mim e para os meus camaradas, de «clamar pela nossa inocência», como a imprensa ritualmente se encarregou de escrever, mas de derrotar a arriscada ofensiva política em que consiste todo este infecto processo judicial. Eis algumas das conclusões às quais o espírito é conduzido, ao reler «Vigiar e punir» desde Santé [Prisão parisiense]. Não saberíamos como sugerir, à luz do que vêm fazendo os foucaultianos com os trabalhos de Foucault ao longo de vinte anos, que estes sejam colocados na reforma por estes lados durante uns tempos…
Como analisa aquilo que vos aconteceu?
Desenganem-se: o que nos aconteceu, a mim e aos meus camaradas, há-de vos acontecer também. É desde logo essa a primeira mistificação do poder: nove pessoas vêm-se perseguidas no quadro de um procedimento judicial por “associação de malfeitores relacionados com objectivos terroristas” e deveriam sentir-se particularmente preocupadas com essa grave acusação. Mas não se trata do “caso Tarnac”, mais do que do “caso Coupat”, ou do “caso Hazan” [editor de La Fabrique, chancela que publicou A insurreição que vem].
Trata-se antes de uma oligarquia vacilante em todos os aspectos, que se torna feroz como todo o poder se torna feroz quando se sente realmente ameaçado. O Príncipe não tem qualquer outro apoio que não seja o medo que inspira, a partir do momento em que a sua figura não suscita mais do que o ódio e o desprezo entre o povo.
Trata-se de uma bifurcação com a qual estamos confrontados, simultaneamente histórica e metafísica: ou passamos de um paradigma de governação para um paradigma de habitação, ao preço de uma revolta cruel mas perturbadora, ou deixamos instaurar à escala planetária este desastre climatizado em que coexistem, sob o controlo de uma gestão “descomplexada”, uma elite imperial de cidadãos e massas plebeias mantidas à margem de tudo. Trata-se portanto, em todo o seu esplendor, de uma guerra, uma guerra entre os beneficiários dessa catástrofe e aqueles que possuem da vida uma ideia um pouco menos esquálida. Nunca se viu uma classe dominante suicidar-se com boa vontade.
A revolta tem condições, não tem causas. Quantos ministérios da Identidade nacional, despedimentos à moda da Continental, perseguições aos imigrantes sem documentos ou aos opositores políticos, crianças assassinadas pela polícia nos subúrbios e ministros que ameaçam privar de diploma os que ainda ousam ocupar a sua faculdade, serão necessários para decidir que semelhante regime, mesmo se instalado por um plebiscito aparentemente democrático, não tem qualquer razão para existir e merece apenas ser derrubado? É uma questão de sensibilidade.
A servidão é o intolerável que pode ser infinitamente tolerado. Porque é uma questão de sensibilidade e porque essa sensibilidade é imediatamente política (não na medida em que se coloca a questão “porque vou votar?”, mas antes “será a minha existência compatível com isto?”), torna-se para o Poder uma questão de anestesia, à qual este deve responder pela administração de doses incessantemente mais massivas de diversão, medo e embrutecimento. E lá onde a anestesia deixa de ser operativa, esta ordem, que reuniu contra si todas as razões para a revolta, tenta dissuadir-nos através de uma pequena administração de terror.
Eu e os meus camaradas não somos senão uma variável desse ajustamento. Somos suspeitos, como tantos outros, como tantos “jovens”, como tantos “gangs”, de nos dessolidarizarmos para com um mundo que se afunda. A esse respeito, não dizemos qualquer mentira. Felizmente, o amontoado de escroques, impostores, industriais, financeiros e prostitutas, toda essa corte de Mazarin sob efeito de neurolépticos, de Louis Napoleão em versão Disney, de Fouché domingueiro, que neste momento domina o país, carece do mais elementar sentido da dialéctica. Cada passo que dão no sentido de tudo controlar aproxima-os da sua queda. Cada nova “vitória” da qual se vangloriam alarga um pouco mais o desejo de os ver vencidos a todos. Cada manobra através da qual julgam sustentar o seu Poder acaba por torná-lo mais odioso. Para dizê-lo noutros termos: a situação é excelente. Não é o momento de perder a coragem.