Os índios tupiniquim e guarani pedem a devolução das suas terras. A tensão é grande nas aldeias indígenas envolvidas no conflito no Espírito Santo.
Quando se vê as plantações de eucalipto da Aracruz, a tupiniquim Genira Pinto dos Santos, 68 anos, sente saudades de uma paisagem que desapareceu da região em que fica a aldeia Pau Brasil, no norte do Espírito Santo.
«Isso aqui era tudo mata virgem. Tínhamos caça – veado, tatu, tamanduá, cotia, catitu – e muitos peixes. Plantávamos feijão, milho e mandioca. Quando vieram os tractores – e nem usaram machado – arrasaram a terra. Plantaram o eucalipto e os bichos fugiram. O nosso rio, que era largo, já secou três vezes", conta Genira de 68 anos.
Mesmo assim, Genira não resignou: "Penso que um dia vamos ter nossa terra de volta", diz. "Nossa terra", no caso, são os 11 mil hectares que 2200 índios tupiniquim e guarani pedem de volta da Aracruz Celulose, uma das maiores produtoras de celulose do mundo.
Origem do conflito
Em 1967, um estudo da Fundação Nacional do Índio (Funai) reconheceu que os tupiniquim e guarani tinham direito a uma área de 18 mil hectares, tradicionalmente ocupada por eles no município de Aracruz (ES).
Mais de 30 anos depois, em 1998, os índios ganharam o direito de uso sobre 7 mil hectares. Os outros 11 mil hectares foram negados pelo Ministério da Justiça, por estarem registrados como propriedade da Aracruz Celulose, empresa que possui 150 mil hectares de plantações de eucalipto na região.
Nos últimos anos, o conflito acirrou-se. Para tentar forçar uma decisão que esperam do Ministério da Justiça desde maio de 2005, os índios chegaram a demarcar por conta própria a área reivindicada e construíram uma aldeia. Em Janeiro deste ano, foram despejados por decisão judicial e acção da Polícia Federal. A clareira onde estava a aldeia hoje está tomada pelo capim.
Luta para corrigir um erro
O cacique tupiniquim Valdeir de Almeida Silva e outros 12 índios da aldeia Pau Brasil ainda têm manchas azuis no corpo, resultado da truculência da polícia, que usou balas de borracha e bombas de efeito moral no despejo.
"A empresa não quer dar o braço a torcer, porque daí também os quilombolas vão bater à sua porta. O que está em jogo é a madeira plantada na nossa terra, pela qual a empresa quer 300 milhões de dólares. Mas no passado, ela destruiu muito mais do que isso", diz o cacique.
Outdoors e cartilha
A situação continua tensa. A Funai apoia os índios. Já quanto a Aracruz, ela é a maior empregadora da região – e responsável por cerca de 10 mil empregos directos e 80 mil indirectos e tem pelo menos 100 índios entre funcionários – contando com o apoio da maioria da população local.
A empresa diz que já teve um prejuízo material da ordem de 2,5 milhões de reais por causa do confito: "Durante os meses de setembro e outubro, índios apoiados por manifestantes queimaram mais de 200 mil árvores em uma área de aproximadamente 170 hectares da Aracruz Celulose".
Através de um estudo científico de 14 volumes, com cerca de 15 mil páginas de documentos, a multinacional rebate linha por linha um relatório da Funai de 1998, que confirmou o direito dos índios à terra. A Aracruz garante ter provas de que a área reivindicada jamais foi território indígena. Numa cartilha distribuída às escolas locais, informa que os índios não são mais índios, são "aculturados", teriam até ar condicionado nas casas.
Algumas firmas que mantêm negócios com a produtora de celulose colocaram outdoors na beira de estradas com os dizeres: "A Aracruz trouxe o progresso. A Funai trouxe os índios". Contra os outodoors e a cartilha da Aracruz, a Funai move acção na Justiça, pedindo indemnização por considerar a campanha discriminatória aos índios e à fundação.
Segundo cacique Wetá Kwatay, da aldeia Boa Esperança. , "antes da chegada do eucalipto não tínhamos o progresso da morte, que se destrói a si mesmo. O plantio de eucalipto no Espírito Santo acabou com a nossa base de subsistência
Esta versão é compartilhada pelo caboclo Edson (Zé) Barbosa, 91 anos, na aldeia Comboios. Como dona Genira na aldeia Pau Brasil, também "seu" Zé Barbosa sente saudades da caça e pesca farta "do tempo em que vivíamos em casa de palha e quase sem roupa. Nos últimos 18 anos, a Aracruz destruiu a mata virgem e matou o rio Comboios".
Sua esposa, Nilsa, mãe de dez filhos, no entanto, diz não ter perdido a esperança. "Eles dizem que aqui não tem índio, que caboclo não é índio. Podem fazer o que quiserem, mas não ganham a terra que é dos índios", diz.
A mesma esperança é alimentada pelos jovens tupiniquim da aldeia Pau Brasil. Que não deixam de guardar sementes em saquinhos de plástico cheios de terra. "Estamos preparando mudas de árvores nativas, para plantar no lugar dos eucaliptos, quando nos devolverem a nossa terra", disse um deles.
Entre os cerca de 370 mil índios existentes no Brasil, os guarani e seus subgrupos kaiowa, ñandéva e mbya formam a maior etnia. A maior parte vive no Mato Grosso do Sul, Estado dominado por grandes plantações de soja e fazendas de gado. No município de Dourados, por exemplo, 11 mil índios vivem numa área de 3500 hectares
O antropólogo Rubem Thomaz de Almeida é um dos maiores conhecedores no Brasil da cultura e da realidade dos índios guarani e kaiowa de Mato Grosso do Sul. Já realizou vários estudos científicos sobre a etnia e assessorou órgãos governametais e ONGs que atuam na região.
È com ele que é realizada a seguinte entrevista.
Jornalista: Como está a situação actual dos guarani no Mato Grosso do Sul?
Rubem Thomaz de Almeida: A situação dos guarani do Mato Grosso do Sul se acirrou e piorou consideravelmente, depois do trágico episódio do assassinato dos dois policiais civis no Paso Piraju em 1º. de abril de 2006. Nos 33 anos em que atuo com os guarani, nunca vi uma situação tão problemática como hoje, em especial por inoperância e omissão do Estado. A atual gestão da Funai [Fundação Nacional do Índio] simplesmente "abandonou" os guarani do Mato Grosso do Sul. Ela não atua para amenizar a situação, mas aloca o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para assistir os índios. O Ministério Público defende com unhas e dentes os índios, mas a Justiça não reconhece sequer os relatórios de identificação de terras feitos pelos antropólogos e cria espaço para prisões aleatórias de índios. É um Estado esquizofrênico em relação aos índios. O que se observa no Mato Grosso do Sul são formas etnocIdas contra os índios, em especial da Justiça e das polícias. Os problemas têm se multiplicado e, para mim, são procedimentos genocidas.
Qual é o balanço que senhor faz da política indigenista brasileira desde a Constituição de 1988, que ampliou os direitos dos povos indígenas?
A política indigenista brasileira não sofreu grandes variações, apesar do cuidado da Constituição 1988 com os povos indígenas do país. O que se observa, por exemplo, é que a referida Constituição abriu vários espaços favoráveis aos índios, cabendo destaque às atribuições do Ministério Público. Mas a política indigenista em si não mudou muito, porque os responsáveis por sua condução atendem interesses políticos e econômicos vários, e não cumprem a lei. Há séculos as leis relativas aos índios são favoráveis, o que não significa que sejam cumpridas. E isso não é nenhuma novidade neste país.
A política indigenista do atual governo é melhor do que era a dos militares?
O atual presidente da Funai é um dos piores gestores da questão indígena no país. No caso dos guarani, os presidentes da Funai que mais contribuíram com esse grupo étnico foram o general Ismarth de Araújo (1974–1978) e o delegado de Polícia Federal Nelson Marabuto (1985–1986). Na primeira reunião do Conselho Indigenista, do qual me demiti junto com outros quatro colegas em fevereiro de 2005, o presidente da Funai disse que "não levaria problemas ao ministro". A ação indigenista foi absolutamente pífia no governo atual, pelo menos em relação aos guarani, fora, como já disse, o atendimento emergencial: fornecimento de cestas básicas, atendimento de saúde, combate à desnutrição e à fome, entre outras ações do MDS – não da Funai. E esses atendimentos não irão terminar enquanto não for solucionado o problema da terra.
Quais são hoje os principais motivos de conflito entre povos indígenas e brancos no Brasil?
O problema crucial dos conflitos entre brancos e índios é a disputa por terras. Uma parte considerável do problema já foi resolvida com demarcações. Alguns poucos grupos étnicos têm problema com a garantia de suas terras, sobretudo os índios do Nordeste e os guarani. Estes formam uma população entre 60 mil e 65 mil pessoas nos Estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, e especialmente no Mato Grosso, onde somam 42 mil pessoas. São a maior etnia em número e também a etnia que tem mais problemas de terra no país.
No Centro-Oeste e na Amazônia observa-se um "cerco do agronegócio" a terras indígenas. Como os índios reagem a isso?
Não sei como os índios mais ao norte da região Centro-Oeste reagem ou mesmo como o agronegócio está afetando essas populações. Quanto aos kaiowa e ñandéva do Mato Grosso do Sul, o cerco do "agronegócio" vem se fechando há muito tempo. Houve a exploração extensiva da erva-mate (1880–1920), daí veio a exploração de madeira e eliminação de florestas (1920–1960), a implantação de fazendas para gado (1960–1970) e o surgimento de grandes empresas agropecuárias com o plantio de soja (1980–2003). Para os próximos anos, prevê-se a construção de 30 usinas de açúcar e álcool no Mato Grosso do Sul, com plantações de aproximadamente 700 mil hectares de cana-de-açúcar em pleno território tradicional kaiowa e ñandéva, que servirão de mão-de-obra para o plantio e a colheita. O Estado brasileiro não está atento ao problema desses indígenas sem-terra. Por isso mesmo, é obrigado a oferecer-lhes cestas básicas para não morrerem de fome.
Houve um tempo em que, no Brasil, "todo dia era dia de índio", diz uma música de Jorge Benjor. Pelos menos virtualmente esse tempo parece estar voltando. Os índios começam a povoar a "aldeia global" formada pela internet.
Um exemplo disso é o portal Índios online
www.indiosonline.org.br .
Trata-se de uma rede de diálogo intercultural, formada pelos povos Kiriri, Tupinambá, Pataxó-Hãhãhãe e Tumbalalá da Bahia, os Xucuru-Kariri e Kariri-Xocó de Alagoas, e os Pankararu de Pernambuco.
A intenção do projeto, desenvolvido pela ONG Thydewa, de Salvador (BA), com o apoio do Ministério da Cultura, da Associação Nacional de Apoio ao Índio (Anai) e assessoria de um etnólogo alemão, é facilitar a inserção digital indígena e apresentar aos internautas "os índios na visão dos índios", dizem os coordenadores.
Segundo o director da Thydewa, Sebastián Gerlic, além de ser útil ao resgate da cultura e da cidadania indígenas, o portal também está dando resultados práticos. "Os índios valeram-se da tecnologia para cobrar salários atrasados, receber merenda escolar, tirar o lixo de suas aldeias e ser cidadãos mais activos".
Além do site Índios Online e de outros projectos nacionais e internacionais desenvolvidos junto aos índios, também as estatística apontam um cenário de renascimento do povos indígenas no Brasil.
Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), a população indígena brasileira cresce em média 3,5% ao ano. Actualmente existem no Brasil entre 450 mil e 460 mil índios, quatro vezes mais do que em 1950, quando se chegou ao mínimo da população indígena brasileira, informou a Funai.
Fonte: Deutsche welle