Em Setembro deste ano de 2007, Roberto das Neves, anarquista individualista português, natural de Pedrogão Grande, completaria 100 anos se ainda vivesse. Em sua memória deixamos aqui a sua bio-bibliografia, alguns poemas, textos e traduções que foram publicados pela editora Germinal, de que foi fundador e principal impulsionador, e a quem se deve um papel ímpar na divulgação do anarquismo e das ideias libertárias no Brasil, para onde foi viver a dada altura da sua vida, e cujo trabalho de difusão também chegou a Portugal, para onde eram enviados igualmente algumas das suas edições.
Todos os textos foram retirados do site do seu filho, com o mesmo nome que o seu pai, expressamente criado para recordar a pessoa e a obra de Roberto das Neves pai, e onde se encontram disponíveis outros textos e informações, para consulta e leitura, e cuja visita recomendamos:
http://betodasneves.multiply.com/journal/item/14
Todos os textos foram retirados do site do seu filho, com o mesmo nome que o seu pai, expressamente criado para recordar a pessoa e a obra de Roberto das Neves pai, e onde se encontram disponíveis outros textos e informações, para consulta e leitura, e cuja visita recomendamos:
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Roberto das Neves
(nota bio-bibliográfica, por Manuel Pedroso Marques)
Roberto das Neves, cidadão do mundo, nascido em Pedrógão Grande, terra de onde resguardava as memórias das gentes e das paisagens que nunca esqueceu ao longo de toda a sua vida.
Anarquista que o acontecimento do 25 de Abril deixou tão feliz que, como então escrevia a um amigo, "quase chegou a cometer o perjúrio de se sentir patriota".
Treze vezes preso por motivos políticos (onze em Portugal e duas no Brasil), foi poucas vezes julgado e nunca condenado.
Individualista fascinado pela criação da inteligência dos outros; solidário em extremo com os seus companheiros de ideias.
Escritor e cultor com peculiar afecto da Língua Portuguesa ("porque não havia uma língua universal"), foi esperantista, professor de Esperanto e publicou em Portugal um Curso de Esperanto e foi co-autor de um Dicionário Português-Esperanto e Esperanto-Português que nunca chegou a ser publicado.
Ateu, não por indiferentismo mas por anti-clericalismo, "convicto das dúvidas sobre a existência de Deus", mas atraído pelas para-ciências e por todas as indagações misteriosas e mais ou menos obscuras que a "ciência académica, oficial, recusa". Panteísta: "se a Natureza for Deus… Deus existe".
Maçon desde novo, numa linha que não reúne consenso generalizado, de afirmação de uma atitude anti-clerical para a maçonaria e de debate de política e não apenas de outros campos de ideias.
Grafólogo, apresentou uma tese de conclusão da sua licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, na Universidade de Lisboa, afirmando o método grafológico como um dos que podem contribuir para caracterizar a personalidade. Apesar daquele curso compreender, na altura, a área da Psicologia, não teve arguente na Faculdade porque o tema era, então, completamente desconhecido, mas obteve aprovação… e dedicou-se durante toda a vida à grafologia.
Vegetariano, macrobiótico e militante de regimes alimentares e de vida a que atribuía os fundamentos de vida saudável, como o nudismo, a vida ao ar livre, o antitabagismo, a abstenção de álcool e a recusa de medicamentos.
A identidade de Roberto Barreto Pedroso Neves poderá definir-se por estas anotações de pensamento e de vida. Há coerência, haverá incoerências. Mas, atenção!, para Roberto das Neves a coerência era o efeito de uma relação dele para com ele mesmo, de uma relação estritamente individual.
Ele era um anarquista individualista, na linha de Max Stirner, sempre em oposição à orientação colectivista, bacunineana. O indivíduo, com sentido de ego, era o fim social. As organizações sociais eram manifestações burocráticas. Os Estados eram a expressão máxima dessa burocracia. A sociedade só se podia organizar com e na perfeição dos indivíduos.
Todavia, era um homem de causas, empenhado nas lutas cívicas que as serviam. As suas actividades cívicas, profissionais e intelectuais depõem sobre ele. Foram vividas intensamente, mais por amor e amadorismo que por profissão e carreirismo profissional, político ou outro, embora rigoroso ao extremo na sua verdade.
O percurso da vida de Roberto das Neves começa em Pedrógão Grande, no dia 7 de Setembro de 1907 e, quando chega a altura do liceu, em Coimbra, onde os seus pais residiam, com mais cinco filhos. Freqüenta os primeiros anos da licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas. Foi dos primeiros estudantes a serem presos a seguir ao "28 de Maio", juntamente com Vasco da Gama Fernandes, seu colega e amigo. Foi-o várias outras vezes. Em 1927 é preso por andar a distribuir panfletos de sua autoria propagando os ideais anarquistas. Dois anos depois é novamente preso como director do jornal "A Egualdade" ligado à Federação Regional dos Anarquistas do Norte. Em 1930, é mais uma vez preso, acusado de divulgar ideias subversivas (…), sendo ferido e preso numa manifestação popular, em Lisboa, no Campo Santana.
Espanha – Passados alguns anos (e mais algumas prisões), já como jornalista de "O Primeiro de Janeiro", vai para Espanha (1931), interrompendo o seu curso, em Coimbra, cujas praxes académicas haviam merecido o seu repúdio expresso, pelo espírito "conservador e alcoólico" que as caracterizava.
Em Madrid liga-se ao movimento anarquista espanhol, ajuda na reestruturação da Federação Anarquista de Portugueses Exilados e escreve no jornal "Rebelião", órgão oficial desta organização. Aqui, conviveu com outros portugueses que lá se encontravam exilados, como Jaime Cortesão, Jaime de Morais e Alberto Moura Pinto, e ainda o Coronel Velez Caroço entre outros. Os três primeiros (os “Budas” como na oposição eram chamados) viria a encontrar mais tarde, no Brasil, para onde fora em 1942.
Vive das crónicas madrilenas e dos artigos que envia para aquele jornal portuense, na altura, um dos melhores do país. Mas o pagamento era pouco e irregular. Quando o dinheiro atrasava para pagar a pensão, algumas vezes dormiu enrolado na sua capa, que conservara de estudante de Coimbra, no jardim de O Retiro, no centro de Madrid, em cuja situação conhece uma jovem atraída por "um homem bonito que se via logo que não era vagabundo"… e com quem vem a casar e a ter uma filha que viera a nascer também em Pedrógão Grande.
(Vinte e seis anos depois, eu e esta sua filha, Primavera, viríamos a casar e a ter a nossa filha Maria Alexandra. Nenhuma pode ler estas linhas. Faleceram. Muito cedo.)
Conspiração em Portugal – De regresso a Portugal, Roberto das Neves vive em Lisboa, escreve para vários jornais vindo a ser jornalista n’O Século. Conclui a sua licenciatura em Histórico-Filosóficas e interessou-o a Psicologia e a Para-Psicologia a que associava a Grafologia. Muito popular na Universidade pela vivacidade da sua inteligência, a originalidade das ideias e pela leitura das letras dos e das colegas, dos namorados e das namoradas…
Faz amizade com José Barão, jornalista de O Século e fundador do "Jornal do Algarve", com Emídio Santana, Mário de Oliveira, Marques da Costa e outros anarquistas, como o anarquista angolano Inocêncio da Câmara Pires, além de outros oposicionistas à ditadura salazarista, de diferentes proveniências ideológicas, como José Magalhães Godinho, Filipe Mendes, Carvalhão Duarte, Henrique de Barros, Piteira Santos, Castro Soromenho e muitos outros com quem mantinha correspondência assídua. Com o poeta goês Adeodato Barreto mantém a amizade que vinha dos tempos de Coimbra, deixando-lhe a sua morte prematura uma inesquecível e terna recordação.
A conspiração contra a ditadura salazarista continua. Há registo de prisões suas nos arquivos da Pide. Duas no Alentejo, em 1933 e 1937, mas consegue convencer a organização local de que não andava em contactos políticos mas sim na prosaica missão de angariar publicidade para uma publicação.
Durante a Guerra Civil de Espanha, quando as forças republicanas já se encontravam em desvantagem, começaram a aparecer em Portugal muitos refugiados espanhóis, clandestinos. Franco e Salazar estabeleceram uma “entente” que se traduzia na entrega dos refugiados que fossem presos às forças franquistas e em deixar em liberdade os que tivessem conseguido obter documentos junto da embaixada do México, em Lisboa, até que fossem transferidos para aquele país longínquo, o que aconteceu por duas vezes, com o afretamento de um navio de passageiros que levou mais de dois mil republicanos espanhóis. Neste período, a mulher de Roberto das Neves, Maria Jesusa Saiz y Diaz, andava acompanhada de uma das suas amigas, muitas vezes a Berta Mendes, mulher do escritor Manuel Mendes, pelas ruas da baixa de Lisboa, a falar espanhol ostensivamente alto… para que algum refugiado se aproximasse a pedir auxílio. Assim conseguiu esconder em casa dezenas de pessoas, até que Roberto das Neves entrava em contacto com a embaixada, com as fotografias, para obter o passaporte e as pessoas pudessem esperar em liberdade a sua transferência para o México.
(Quase trinta anos depois, um destes lê num jornal de Caracas que um “capitão português, genro de Roberto das Neves, se encontrava em asilo político diplomático na Embaixada do Brasil em Lisboa”. O capitão era eu. Recebo uma carta dando-me solidariedade e transportando um cheque com a quantia que um então velho professor de matemática e ex-oficial do Exército republicano espanhol podia dispor.)
Brasil. Editora Germinal – Durante a 2ª Grande Guerra, Roberto das Neves emigra para o Brasil, com a mulher e a filha, passando a viver no Rio de Janeiro. Arranja trabalho em alguns jornais, de início, mas a sua vida de trabalho vem centrar-se na editora Germinal e no Instituto de Pesquisas Grafológicas. A actividade editorial caracteriza-se pela divulgação das suas ideias anarquistas, de concepção de vida e saúde e, indefectivelmente, pela oposição ao regime de Salazar.
Na Germinal – nome sugestivo para anarquista – publica obras de combate à ditadura de Salazar, da autoria do Capitão Henrique Galvão (“Operação Dulcineia”, sobre o assalto ao paquete Santa Maria), do Capitão Fernando Queiroga (“Portugal Oprimido”), do Comandante Oliveira Pio (“Fascismo Ibérico”) e do General Humberto Delgado (“Tufão sobre Portugal”), além de outros, sobre temas anti-clericais, como os de autoria de Tomás da Fonseca (“Sermões da Montanha”, “Bancarrota da Igreja”, etc.).
Publica também livros sobre temas de saúde e alimentação, como Macrobiótica Zen, sobre o regime alimentar de Are Waerland, e outros cultivados na tradição alimentar tibetana, além de prospectos e folhetos que publicava sobre os mais variados temas, desde o anti-tabagismo à ridicularização dos comendadores endinheirados da colónia portuguesa, todos salazaristas, com duas únicas excepções: o Comendador Seabra e o Comendador Feteira.
No campo anarquista, a Germinal tinha duas vertentes: uma editorial e outra livreira. Editava obras de tese anarquista, cujo fundo compreendia autores como Daniel Guérin (O Anarquismo – Da doutrina à acção), José Oiticica (Ação Directa), Han Ryner (Manual filosófico do individualista), E. Armand (A Nova Ética sexual” e “Cooperativas de Amor”), V. Tcherkesof (“Erros e contradições do Marxismo”), entre outros. No catálogo de venda de livros estrangeiros, principalmente clássicos em francês ou espanhol, incluíam-se obras de E. Lanti, (O Manifesto dos Anacionalistas), Sébastien Faure, Proudhon, Kropótkin e outros de oposição à historiografia oficial da Revolução Soviética, como Vóline, que tratavam dos temas polémicos da oposição entre anarquistas e comunistas na então URSS e em Espanha, durante a guerra civil.
A Germinal teria, obviamente, um catálogo de “literaturo en esperanto” que incluía traduções de algumas das obras atrás citadas e de Goethe (“O Fausto”), de Tolstoi, Malatesta, Krishnamurti, Óscar Wilde, Jack London, Eugen Relgis, Rosa Luxemburgo, etc., editadas pelas comunidades esperantistas de todo o mundo e que a Germinal vendia, militante.
Bibliografia – Da sua própria autoria Roberto das Neves publicou, em Portugal, alguns poemas de juventude (“Maio em Flor”) e, de conteúdo mais político, “O Espectro de Buiça”, em 1926, logo apreendido pela polícia, além de uma monografia sobre a sua terra natal – Pedrógão Grande. Publicou ainda o que intitulou “Curso Completo de Esperanto”, em fascículos, que consistia numa adaptação de outros métodos de aprendizagem do Esperanto por falantes doutras línguas ocidentais para os de língua portuguesa. Os exemplares restantes da edição deste livro seriam transportados na bagagem de porão do navio, quando Roberto das Neves se transfere para o Brasil, com a família, e viriam a ser todos devorados por um incêndio ocorrido no 18º. andar de um conhecido edifício no centro do Rio de Janeiro, o edifício Rex, onde tinham acabado de se instalar a Editora Germinal e o Brazilia Instituto de Esperanto. Numa edição de autor, publicou a sua tese de licenciatura, “Os temperamentos e as suas manifestações gráficas”.
No Brasil editou, sob a chancela da Germinal e das Edições Mundo Livre, as seguintes obras:
“Assim cantava um cidadão do mundo” que reúne poesias de intervenção social desde os tempos de Coimbra. Mereceu críticas elogiosas de amigos e de companheiros de ideias, entre os quais Henrique de Barros, João de Castro Lira e de outros, como Luís Inácio Domingues (Gazeta do Brasil), Edmundo Moniz (Correio da Manhã) que diz: “se, por um lado, o carácter político de sua obra prejudica a sua forma artística, por outro lado dá-lhe grande relevo, pois nele temos um vigoroso panfleto, escrito em versos flamejantes, que tão bem interpreta os sentimentos e as aspirações de um povo oprimido, sofredor e revoltado” … “Na poesia de R. das N. não falta poder de comunicabilidade emocional, pois ele toca numa das teclas mais sensíveis da nossa época: a libertação material e espiritual”. De inspiração junqueiriana, os títulos de alguns dos seus poemas depõem sobre o conteúdo: ‘Sem bandeiras nem fronteiras’, ‘Não irei à guerra, César’, ‘Quero ser como tu, Satan’, ‘Um burro se confessa’, ‘Bernard Shaw chega ao Céu’, etc. Dedica alguns poemas ao Cardeal Cerejeira, que assevera ser ‘o maior ateu de Portugal’. Este seu primeiro livro, de maior fôlego, inclui um soneto satírico e autobiográfico, composto na prisão, que deixa escrito na parede da cela:
Nasceu em Pedrógão Grande
e é cidadão do Universo.
Suas revoltas expande
nas asas largas do verso!
Os sofrimentos do Povo
combate-os – louco idealista! –
e visiona um mundo novo,
em seus sonhos de anarquista.
Javerts sinistros, medonhos,
em prémio dão-lhe a delícia
de ir concluir os seus sonhos
nas masmorras da Polícia…
“O Diário do Dr. Satan” (Comentários subversivos às escorrências cotidianas da sifilização cristã), onde atinge o seu máximo de irreverência e crítica à religião católica e a todas as formas de dogmatismo religioso, político, cultural e científico. Satan (de Satanás, Lúcifer, das luzes…) foi o nome que R. das N. adoptou na maçonaria, em Lisboa. Quando acabou o seu curso de história e filosofia os amigos (irmãos) começaram a tratá-lo por “Dr.”, e daí o Dr. Satan. Nos seus comentários, os nomes de Hitler, Estaline, Franco e Salazar aparecem, com repetida frequência, irmanados na hediondez das respectivas ditaduras.
“Marxismo, escola de ditadores”, editado pela Mundo Livre, trata-se de um pequeno ensaio, incluído numa colecção de Cadernos da Juventude, onde, referindo as contradições que via em Marx, afirma as ideias anotadas pelos anarquistas de que “a ditadura do proletariado” não perderá a transitoriedade que Marx profetiza, perpetuando-se numa ditadura de partido único. Por outro lado, as análises correctas de Marx sobre o capitalismo da época "não lhe pertencem, pois, já haviam sido enunciadas pelos socialistas apodados com desdém de utópicos, que o antecederam".
Defende historicamente as utopias e os utopistas. "Utopias foram a monarquia liberal, no tempo das monarquias absolutas; o abolicionismo, na época da escravatura; a república, na era das monarquias; Júlio Verne e as viagens à Lua…" Este trabalho compreende uma exaustiva recensão das utopias escritas ao longo da História, e de que há conhecimento, no Brasil e no mundo.
“Entre Colunas” (livro cujo título revela a natureza ou a relação maçónica do conteúdo e do autor) reúne doze ensaios ou conferências proferidas nas lojas maçónicas: Labareda, de Coimbra; Rebeldia e Montanha de Lisboa; Aurora, do Porto; Republica Portuguesa, de Madrid; Libertá e Primeiro de Mayo, em Barcelona; Germinal, Pátria Humana, Maria Lacerda de Moura, Lusitânia Livre e Prof. José Oiticica, no Rio de Janeiro; e Francisco Ferrer y Guardia, de São Paulo. Da Maçonaria, R. das N. escreve que ela "não é, como se sabe, uma organização anarquista, anticapitalista, anti-religiosa, mas sim um laboratório de investigação filosófica, sociológico, científica, adogmática, uma tribuna livre, aberta a todas as doutrinas, numa busca incessante e ilimitada da Verdade. Possui um único dogma, se assim se lhe pode chamar: o culto da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. É sobre esta pedra triangular que assenta o edifício doutrinário da Maçonaria". "Maçons, esses incansáveis investigadores e cultores da filosofia prática".
Na vertente prosélita dos regimes de saúde que associava à felicidade individual e ao bem estar social, do anti-consumismo e de uma certa austeridade de vida, escreveu e traduziu livros e opúsculos, entre os quais, “Você é macrobiótico ou vegetariano?”; “Método infalível para deixar de fumar”; “Duodecálogo do verdadeiro macrobiótico”. A “acção directa”, neste campo, consistiu na dinamização de uma cooperativa de restaurantes macrobióticos no Rio de Janeiro, que se pretendia estender pelo Brasil inteiro e que chegou a atingir considerável expressão económica e social, embora restrita àquela cidade.
No cultivo da literatura de combate pelo humor, pelo sarcasmo e pela obscenidade, ao bom estilo dos anarquistas do tempo em que a acção directa armada era por eles adoptada, Roberto das Neves fez coisas que narra em seus livros de que se arrependeu, mais tarde, por atentarem contra a liberdade de convicções dos outros. Estão neste caso inúmeras acções de ataque às crenças e rituais religiosos, como "o sujar com pó de sapato vermelho a água da pia de água benta da Sé de Coimbra"… "Coisas de juventude", explica, pedindo desculpa!
Outro exemplo desta forma de combate pelas ideias, neste caso usando a obscenidade, pode ver-se em vários opúsculos e panfletos, uns assinados outros apócrifos, como o que se refere à colónia de comendadores portugueses salazaristas do Brasil em que a obscenidade mais suave se manifestava pela grafia da palavra “culónia”, sempre com “u”…
Foi atacado por opositores, inimigos políticos e também por correligionários, neste caso quando se zangavam (porque o humor é difícil de manter zangado), por esta sua vertente de “combate literário”. Defendia-se, dizendo que não era pornógrafo nem pornográfico, pelo rigor de linguagem e precisando que as obscenidades ajudavam a ridicularizar os visados!... Na verdade, a qualidade de escrita que Roberto das Neves colocava nestes textos era desconcertante, não desmerecia do que conseguia escrever de melhor. Era uma forma de combate dos anarquistas, levada a sério, mas que também o divertia imenso…
Grafologia – A sua outra actividade mais regular desenvolvia-se no âmbito do Instituto de Pesquisas Grafológicas, que fundou no Rio de Janeiro, onde dava cursos de grafologia, desenvolvia estudos, participava em conferências e fazia análises grafológicas de candidatos a lugares que algumas firmas de selecção de pessoal lhe encomendavam. O seu principal cliente era uma universalmente conhecida empresa de lapidação de pedras preciosas e fabricante de jóias que tem o nome do seu principal dono – a H. Stern. Roberto das Neves foi chamado a realizar um estudo grafológico, numa determinada situação, em que um conjunto de pessoas era abrangido, inclusive um jovem chamado Hans, na altura, um modesto funcionário. Pelo perfil grafológico elaborado, tratava-se de um génio comercial. Que viria a tornar-se dono da empresa e um adepto da grafologia: o Sr. Hans Stern!
Oposição Portuguesa – Participa nas acções desenvolvidas pelos vários núcleos de emigrados políticos no Brasil. Pontualmente colaborava com comunistas, reunidos em torno do jornal Portugal Democrático; convocava os seus amigos anarquistas brasileiros para darem maior expressão às lutas da oposição a Salazar e cooperava com todos os outros exilados portugueses, como Sarmento Pimentel, José Santana Mota, engenheiro Baleisão e outros em São Paulo e Oliveira Pio, Armando Magalhães, Francisco Horta Catarino, além de muitos outros, no Rio de Janeiro.
A oposição alinhada com a Acção Socialista, no Brasil, após 1965 (que viria a transformar-se no Partido Socialista, em 1973) e outros sem qualquer alinhamento, constituíram um jornal de vida efémera, chamado "Oposição Portuguesa" para apoio do qual Roberto das Neves atraiu amigos seus da maçonaria. Creio que chegou a ter uma posição importante, creio que na loja Lusitânia Livre que reunia muitos dos velhos emigrados políticos portugueses e alguns brasileiros descendentes que faziam da luta pela liberdade em Portugal causa sua, como se portugueses fossem, como o seu amigo Dr. Miranda, proprietário de várias farmácias e garantia certa de que havia dinheiro para comprar a bobine de papel para imprimir o jornal…
O ambiente político e pessoal criado entre exilados políticos, em várias experiências ocorridas em diferentes épocas e vários lugares, tem sido caracterizado como fragmentário senão dissolvente das ligações de solidariedade entre homens com objectivos e lutas comuns. As roturas não são apenas ideológicas (que melhor se poderiam entender), antes derivam de um complexo de esperanças, ambições, frustrações, de incapacidade de adaptação ao país de exílio, do tempo de espera, do tempo que passa.
Roberto das Neves era perfeitamente adaptado à sociedade brasileira e fascinava-o algum exotismo cultural que nela via. Tinha amigos entre todas as raças e de várias proveniências e de todas as posições políticas de esquerda, com as restrições que os anarquistas que fizeram a guerra civil em Espanha guardaram para sempre em relação aos comunistas. Para Roberto das Neves, Cunhal e Salazar eram sinónimos.
Depois que o General Delgado chegou ao Brasil houve um certo entusiasmo entre os exilados com a sua presença. Roberto viria a ter confrontos sérios com o General, com insultos de parte a parte a marcar a polémica, que terminou com a expulsão de Delgado da Associação que tinha o seu nome... e com a sua transferência para outra terra de exílio, a Argélia. Estes factos assinalaram negativamente a imagem da oposição a Salazar, a Embaixada de Portugal "embandeirou em arco", afastando-se da actividade, por uns tempos, figuras da maior respeitabilidade como o Comandante Oliveira Pio, Lafayete Machado e outros.
Centro de Estudos Sociais José Oiticica – Roberto das Neves pertencia à direcção desta associação que homenageava, com o seu nome e finalidade, um democrata brasileiro, oposicionista à ditadura de Getúlio Vargas e um dos mais respeitados filólogos da nossa língua, do seu tempo. Constituíam a direcção o Prof. Serafim Porto, professor metodólogo de português do colégio Pedro II, o Dr. Ideal Perez, uma sumidade da reumatologia no Brasil, o Dr. Pietro Ferrua, ex-Director do CRSA, Centre de Recherches sur l’Anarchisme, de Genève, entre outros. A actividade do Centro resumia-se a uma conferência de 15 em 15 dias, com regularidade notável, com oradores convidados, sobre as velhas e emergentes questões sociais no Brasil e no Mundo.
Após o Acto Institucional nº 5, que, em 1968, concretizou a censura prévia à imprensa e aumentou a repressão política no país, a polícia política brasileira prendeu toda a direcção do Centro. Roberto das Neves já tinha sido preso durante a ditadura getulista, por denúncia de actividades subversivas feita por portugueses salazaristas. Desta vez, esteve preso numa base militar, da Força Aérea, na ilha do Governador, onde pretendi visitá-lo, sem que tal me fosse consentido. Invocando a minha qualidade de ex-capitão do Exército Português exilado político no Brasil, como tentativa de falar com alguém mais graduado, fui imediatamente levado à presença do comandante da Base, um Tenente-Coronel. Fui recebido como um camarada de armas. “Nós aqui já nos apercebemos que o Professor Roberto das Neves é uma pessoa especial, um homem muito culto”. Abre um armário que tinha na antecâmara do gabinete e mostra-me: em cada prateleira uma variedade de frutas, peras, maçãs, papaias, abacates… todas alinhadas como numa formatura. “É que o Professor não come cadáveres”, disse respeitosamente. Pedi para deixar um bilhete escrito, já que não podia falar com o Professor… (para que Roberto das Neves soubesse que já se sabia onde é que ele estava…) e parti com a absoluta certeza de que ele estava a "dar a volta" aos carcereiros.
Doze dias depois foi libertado e ficou a aguardar julgamento, que viria a realizar-se mais de um ano depois. Criou amizades entre os presos, que ficou a visitar, e o comandante não só aceitou passar a receber os catálogos da Germinal como ficou a pensar em aderir ao vegetarianismo.
Julgamento – Roberto das Neves não constituiu advogado, ao contrário dos seus companheiros de julgamento que eram seis ou sete. Na primeira audiência, depois de ser lida "a acusação" o juiz faz a pergunta sacramental, se o réu tem alguma coisa a dizer em relação à acusação. Roberto das Neves levantou-se e com toda a força de uma forte convicção diz: “Não me acusam de nada! Sou anarquista, ateu, maçon, esperantista e vegetariano”. “Em frente deste tribunal há duas estátuas, uma de Gandi que era anarquista, panteísta e vegetariano e outra do Marechal Duque de Caxias que foi Grão-Mestre da Maçonaria do Brasil”. “Há uma imprecisão no que chamam de ‘acusação’, que foi extraída de uma nota biográfica que consta de um livro meu. Não fui preso doze vezes. Fui mais uma, a que antecedeu este julgamento. Mas nunca fui condenado, fui sempre absolvido, como vai acontecer mais uma vez”.
O Juiz fez algum silêncio, antes de suspender a audiência por quinze minutos. Demorou talvez mais de uma hora e veio com a sentença feita. Absolveu os réus todos.
No início da década de sessenta Roberto das Neves casa pela segunda vez com uma antiga aluna de Esperanto, Maria Angélica de Oliveira de quem tem um filho, que vive no Rio de Janeiro e também se chama Roberto das Neves e que tem três filhos. Roberto das Neves morreu em 28 de Setembro de 1981.
Esta nota, na parte biográfica, foi elaborada com a contribuição do filho, Roberto das Neves, e da Professora Doutora Heloisa Paulo, autora de uma tese sobre os portugueses no Brasil e, actualmente, particularmente interessada e conhecedora dos movimentos da oposição à ditadura de Salazar-Caetano no Brasil, a quem agradeço as ajudas prestadas