25.11.07

Poesias de Roberto das Neves




Germinal

Poesia de Roberto das Neves, inserida no seu livro "Assim Cantava um Cidadão do Mundo", publicado em 1952 pela editora Germinal. O poema é dedicado a José Oiticica, o sábio filólogo, extraordinário poeta e anarquista sem mácula.


Somos o Povo útil e forte,
a massa humil dos produtores
Ao vento, à chuva, ate à morte,
vimos, no mundo, hercúleo, forte,
nutrindo, há sec'los, os senhores.

Tudo o que existe sobre a Terra
— templos, quartéis, fábricas, paços,
armas de paz e armas de guerra...—
tudo quanto há por sobre a Terra
deve-se a nós, aos nossos braços.

Tudo isto eu faço, o Proletário:
aviões pra abrir novos espaços,
o livro, o pão, o vestuário...
O Deus sou eu, o Proletário.
Rende, burguês, culto a meus braços!

Sou quem produz, sou a Canalha,
sou a Ralé vil e precita.
Titã das sombras da fornalha,
tenho uma história, a da Canalha,
em negro livro, a sangue escrita.

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E — vede bem! — sendo eu assim,
o herói, o mártir, que produz,
teem-me horror, fogem de mim,
sou desprezado e vivo assim,
faminto e roto, a ansiar a luz.

Eterno poeta do Trabalho,
componho a suar hinos à Vida,
visão da mina, Atlas do Malho.
Eu faço o pão, rei do Trabalho
e, no meu lar, não há comida.

Sou o Criador, forte, espectral.
Plebe, Ralé — são o meu nome.
Sustento o orbe terrenal
— e no meu lar, reina, espectral,
a imperatriz cruel, a Fome.

Aos reis o luxo dou e o fausto.
Sou o operário da Matéria,
sempre fecundo e nunca exausto.
E, enquanto os reis vivem no fausto
— vegeto, escravo da Miséria.

Somos os párias, enjeitados.
A Sociedade espoliou-nos.
Fomos roubados e escorraçados.
Ah, mas, um dia, os enjeitados
ruirão altar's, dogmas e tronos !

Sou o Povo, a vítima das leis
dos faraós, Césares e Gracos.
Ah, mas, um dia, cairão reis,
e eu surgirei, belo e sem leis,
viril, revel, novo Spartacus!

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E, então, o mundo, sem tiranos
— perdoo-vos, reis; burguês, não tremas!
será, após tantos mil anos,
feliz, alfim, sem os tiranos,
feliz e livre, sem algemas.

Sonhando, a amar, na asa do Ideal,
vamos a voar pra a Revolução,
que, num amplexo fraternal,
os povos há-de unir no ideal
da Paz, do Amor e do Perdão.

E, redimida a humanidade,
ex-rico, irmão, meu ex-senhor,
ao brando sol da Liberdade,
cantando um hino à Humanidade,
tu bendirás o Produtor!

Prisão da Esquadra Policial do Forte do Castelo, em Lisboa, 1928.




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Altitudes


Poesia de Roberto das Neves, inserida no seu livro "Assim Cantava um Cidadão do Mundo", publicado em 1952 pela editora Germinal. O poema é dedicado aos seus amigos da Sociedade Naturista


Já que a estupidez humana
só causa sangrentas brigas,
abandona a vida urbana
das malfazejas formigas.
Foge à cidade maldita
e sobe aos mais altos montes,
junto à cúpola infinita,
dos mais vastos horizontes.

Que deslumbrantes grinaldas
das estações e das flores:
Primaveras de esmeraldas,
Verões de doces calores!
Urzes, junquilhos, giestas,
beijadas pelo galerno,
preparam as brancas festas
silenciosas do Inverno.

Sozinho, no pico agreste,
em face da imensidade,
sob a abóbada celeste,
ouve lição de humildade.
O orgulho, que te aniquila,
domina-o, sereno e forte,
ó homem, nado da argila,
à qual regressas na morte!

E na lição recebida
convido-te a concentrar-te,
para aprenderes que a Vida
é só Bondade e só Arte.
Eleva ao mais alto cume
tua alma e teu coração.
Abrasa-te, homem, no lume
da Suprema Aspiração!




Da boa e da má reputação

(Carta sob a forma de poema de Roberto das Neves, inserida no seu livro "Assim Cantava um Cidadão do Mundo", publicado em 1952 pela editora Germinal. A carta é dirigida a Vasco da Fonseca)

Leio na carta que me escreves,
cheio de dor e aflição:
"Sou alvo, meu caro Neves,
de uma torpe campanha de difamação...”
Não sublinho estas palavras,
com que a tua carta lavras,
para pôr em relevo um pleonasmo.
Quero apenas mostrar-te aqui o pasmo,
que sinto ante o conceito do valor,
que tu, um poeta, um pensador,
atribuis à boa e má reputação.
Não!
Não estou de acordo contigo,
meu camarada e amigo.
A má reputação,
longe de ser um flagício,
é, ao contrário, um benefício.
É uma armadura e um disfarce,
detrás dos quais um qualquer
pode tudo fazer,
inclusive dar-se
ao requinte de um bom comportamento,
ou daquilo que um vulgar mortal
tem como tal,
em seu pobre julgamento.
Mas ela nos oferece inda a vantagem
de afugentar de nós a malandragem
dos Catões,
dos Acácíos,
dos Calinos,
isto é, dos maganões,
dos pascácios,
dos cretinos,
dos moralistas
— todo o rebanho, enfim, dos conformistas,
coluna vertebral do mundo, é exato,
mas que tornam o mundo
imundo,
caricato
e chato.

Lembro-te apenas Sócrates e Cristo.
Ninguém houve que, pela sua acção,
merecesse melhor reputação.
E que lhes sucedeu? Pois, isto:
Presos e acusados
dos mais feios pecados,
foram condenados,
por imoral conduta:
Sócrates, a beber cicuta,
e Jesus,
de impropérios coberto,
a agonizar na cruz,
entre dois terríveis ratoneiros
— não tão terríveis, por certo,
quanto os nossos pacíficos banqueiros

Compreenderás, agora, meu amigo,
que, para uma pessoa inteligente,
não pode haver pior castigo,
mais duro e mais inclemente,
que o duma boa reputação,
atribuída pelos donos de armazém,
que envenenam e nos roubam no peso,
e pelos filhos-da-mãe,
que nos levam preso.
Tenho por isso a opinião
de que devemos sempre fomentar,
à nossa volta,
como prudente escolta,
uma salutar
atmosfera de má reputação,
que permita manter-nos sempre sós,
intactamente nós,
distantes do louvor das multidões,
dos imbecis,
dos vis,
dos Catões.

Desilude-te, meu caro:
enquanto houver dinheiro
e houver superstição,
hão-de ser sempre o casto padre Amaro,
o pobre do banqueiro,
o escrupuloso quitandeiro
e o vegetariano do açougueiro
— quem há-de desfrutar
boa reputação.
Contentemo-nos com estar,
sinceramente,
filosoficamente,
de acordo connosco mesmos,
embora contra a opinião
dos que querem acender de novo a Inquisição,
a fim de transformar,
como de onagros,
o nosso corpo de herejes em torresmos,
ou, melhor, meu caro Vasco
(visto que os herejes, como nós, são sempre magros)
— em churrasco.
Por isso me agito,
de nojo vomito,
faço um manguito
e grito,
cheio da mais cristã indignação:
— Livrem-me da boa reputação
o meu simpático e audaz
camarada Satanás
e o maganão
e muitíssimo cristão
do Catão!

Rio de Janeiro, 1952.




Poemas de Satan

(Poesias de Roberto das Neves, inserida no seu livro "Assim Cantava um Cidadão do Mundo", publicado em 1952 pela editora Germinal )

Satan é o espírito de revolta contra a fé, o ascetismo e a escolástica. É um apelo à Natureza desprezada pelo pensamento cristão e à Vontade esmagada pela Autoridade. É a Ciência, a Natureza, o espírito do Livre-Exame e a Filosofia ligados contra o Obscurantismo.
Emile Faguet — Historia da Filosofia




Aos que me ensinaram a amar a Satan, instilando-me no espírito a Dúvida heróica e fecundante:
A meu falecido pai, Manuel Vicente Pedroso Neves, que numa época e num meio dominados pelo fanatismo teve a coragem de proclamar-se ateu e como ateu viver e morrer;
a meu velho professor primário, António Antunes Amaro;
a Tomaz da Fonseca, o glorioso autor dos "Sermões da Montanha", que, com oitenta anos, continua sendo o motor hereje e o maior crente de Portugal;
e ao meu velho, bondoso e erudito professor de historia das religiões na Universidade de Coimbra, Dr. M. Goncalves Cerejeira (actual Cardeal-Patriarca de Lisboa), o maior ateu de Portugal.






QUERO SER COMO TU, SATAN!
A Jaime Brasil


É fria a noite. Ilune o céu. E o vento
uiva na treva como hidrófobo animal.
De luz nimbado surge, em um deslumbramento,
um vulto do Astral.
Desenha-se, num fundo azúleo, tenuemente,
uma linda visão de asas esculturais.
Ferem a escuridão dois raios, de-repente,
como flâmeos punhais.
O duende crava em mim sua pupila acesa
e longo tempo fixa o meu olhar. Alfim,
aquela aparição, de cujo olhar sou presa,
exclama: — Vem a mim!
— Quem és tu, ó visão que encanta e me fascina?
— inquiro, com assombro, a estranha aparição.
— Sou o Portador da Luz, a Estrela Matutina,
a alva Luz da Razão!
— Ah, como és belo! — digo ao Anjo, deslumbrado
pela sua beleza helénica, pagã.
Como te chamas tu? — Chamam-me o Reprovado,
o Anjo Revel, Satan!
— Anjo, há no teu olhar tanta melancolia!...
— Sofro — e turbou-se, então, o olhar do Anjo Revel —
por todos que, como eu, sofrem a tirania
do velho Deus cruel!
— Porque és o Reprovado e é réprobo o teu nome?
— Deus, de quem sou irmão, quis ser mais do que eu.
Revoltei-me. Jeová venceu-me, subjugou-me
— e expulsou-me do Céu.
E eu venho, desde então, pelo Universo, errante,
de Eloim afrontando o infinito rancor,
aos humanos pregando a insurreição perante
o jugo do Senhor!
— Quero ser como tu, Satan, ó Revoltado!
— Revolta-te e serás formoso aos olhos teus!
Sê livre, dá-te, rasga a Lei, ama o Pecado
— e amaldiçoa Deus!



CARTA AO DEUS DAS IGREJAS


(Endereço):
Ao: Padre Eterno, Deus, Criador e não-criado;
pirotécnico ilustre, excelso e decantado;
senhor dum poderio intérmino, profundo.
Detrás das Nuvens — Céu — Império do Outro Mundo.


(Texto):
Preclaro Autor de tudo o que se move
na imensurável amplidão dos céus,
ouve o que vou dizer-te, ó velho Zeus;
escuta o que te digo, antigo Jove:
A humanidade, que, por largos anos,
aos pés se te rojou, apavorada,
começa a compreender toda a farsada
e a gargalhar, ó Deus, de teus arcanos.
O raio, que tu lá de cima lanças,
que outrora muita gente estarreceu,
ó hábil pirotécnico do Céu,
só hoje aterra as tímidas crianças.
Ó Eterno, acalma o génio rabujento!
Mais que tu pode a herética Ciência.
Reduziu-te Franklin à impotência
com infernal, luciferino invento.
Por isso é que, hoje, à mirra e ao alecrim,
bentinhos, orações, magnificates,
até o crente (é bom, Deus, que o constates!)
prefere o pára-raios de Franklin.
Não me assustam, ó Júpiter tonante,
não me amedrontam, Júpiter superno,
as descrições mais tétricas do Inferno,
feitas por um masmarro ou pelo Dante.
Admiro Belzebú, o. ente primeiro
contra o teu despotismo revoltado.
Rio do teu poder ilimitado,
com João Most, com Voltaire e com Junqueira.
Do Infinito os zabumbas colossais
podes sovar, ó Deus, com toda raiva,
e mijar sobre mim chuva e saraiva,
que eu rir-me-ei, sem temor, ainda mais.
Deus, tranca-me os portões do Paraíso!
Chovam excomunhões sobre o blasfemo!
Jeová, as tuas cóleras não temo.
Tuas fúrias, ó Deus, causam-me riso.
Castiga, ó Padre-Eterno, o filho ingrato,
o filho heresiarca, o filho ateu!
Sobre mim desça a maldição do céu!
Às chamas infernais um candidato.
Coimbra, 1925.


Nota — Esta carta foi lançada numa caixa do Correio, em Coimbra (Portugal), no dia 3 de Junho de 1925, pelo autor, que nunca recebeu resposta. No reverso do sobrescrito lia-se:


De:
Um candidato às infernais chamas cruéis,
que em ser assíduo timbra
no número 26 da rua das Padeiras.
Terra — Coimbra.