26.11.06

Morreu Mário Cesariny, poeta e pintor surrealista

Amor, Liberdade e Poesia -
o programa dos surrealistas

"Para a pátria, a igreja e o estado a nossa última palavra será sempre... MERDA" ( Mário Cesariny )


Texto-poema de Cesariny que fala de Émile Henri, célebre anarquista francês:



PASSAGEM DE EMILE HENRI

Era no tempo da palavra papel
da pluma bem comida lançando ideias de justiça aos chineses
da espingarda de ar podre ao ombro de cada um

Depois de ver com os seus próprios olhos como é que o ratazana toma o sei chazinho
Emile Henri
escritor da literatura da dinamite
lança a segunda bomba à porta do Café Términus
dado que: da má distribuição da riqueza e das coisas boas da Terra
TODOS SEM EXCEPÇÃO TÊM A MÁXIMA CULPA»

[in Mário Cesariny, Pena Capital: Lisboa, Assírio e Alvim, 1982
e também in Paulo da Costa Domingos, Judicearias, o Álbum dos Glórias: Lisboa, frenesi, 2000]

retirado daqui


Breve biografia (retirada da wikipedia):

Mário Cesariny de Vasconcelos (Lisboa, 9 de Agosto de 1923 — Lisboa, 26 de Novembro de 2006) foi um pintor e poeta, considerado o principal representante do surrealismo português.
Frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e estudou música com o compositor Fernando Lopes Graça. Durante a sua estadia em Paris em 1947, frequenta a Academia de La Grande Chaumière. É em Paris que conhece André Breton, cuja influência o leva a criar no mesmo ano o Grupo Surrealista de Lisboa, juntamente com figuras como António Pedro José Augusto França, Cândido Costa Pinto, Vespeira, Moniz Pereira e Alexandre O´Neill. Este grupo surgiu como forma de protesto contra o regime político vigente e contra o neo-realismo. Mais tarde, funda o Grupo Surrealista Dissidente.
Mário Cesariny adopta uma atitude estética de constante experimentação nas suas obras e pratica uma técnica de escrita e de pintura amplamente divulgada entre os surrealistas designada “cadáver esquisito”, que consiste na construção de uma obra por três ou quatro pessoas, num trabalho em cadeia criativa em que cada um dá continuidade, em tempo real, à criatividade do anterior, conhecendo apenas parte do que este fez.
São algumas das suas obras poéticas: Corpo Visível, 1950; Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos, 1953; Manual de Prestidigitação, 1956; Pena Capital, 1957; Nobilíssima Visão, 1959; Burlescas, Teóricas e Sentimentais, 1972.



Entrevista a Mario Cesariny de Vaconcelos, por Óscar Faria

Cesariny (n. 9/8/1923) gosta de posar. E de fumar. Muito. Cesariny tem o dom das palavras. Às vezes basta-lhe uma linha para construir um mundo: "Ama como a estrada começa". Outras, esse encantamento suscita contínuos estremecimentos: "longe dos jogos civilizados/ livres da hora da mãe e da filha/ jogamos fumo para uma bilha/ jogamos o pocker o king a vrilha/ jogamos tudo como danados". O maravilhoso surreal, ainda vivo, ainda intensamente livre atravessa uma conversa acontecida na inauguração da polémica exposição "Do Surrelismo em Portugal", que esteve patente na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão. Fala-se aqui de ditadura, de revolução e da dificuldade em cumprir o programa surrealista: "liberdade, amor e poesia". Também se recordam António Maria Lisboa e Pedro Oom, Vieira da Silva e Pascoaes: "Não tenho nada contra o Pessoa, mas para mim o Pascoaes é o velho da montanha, é o mágico". Cesariny é um sedutor. Cesariny é um danado.

Entrevistador - A revolução é um dos objectivos essenciais do movimento surrealista. Como é que viveu o 25 de Abril de 1974?
MÁRIO CESARINY - Nós estávamos muito mal vistos pelo Salazar e pelos marxistas; tínhamos dois inimigos. Há uma carta do António Dacosta, que está em minha casa - não sei onde, espero que apareça - em que me conta a ida para Paris, em 1947, onde frequenta as reuniões do grupo surrealista com o André Breton e o Benjamin Péret. Eu sei que dizer isto pode parecer esquisito, mas acho que devo dizer: ele começa a explicar ao Péret o que se passa em Portugal - "Há o anti-fascismo, claro, mas ao mesmo tempo não podemos acusar ou denunciar os estalinistas por causa do fascismo imperante e porque o Salazar prende os comunistas todos". Péret, que sabia bem o que se passava em todo o mundo, disse assim: "Ai o Salazar prende os comunistas, pois faz o Salazar muito bem". Esta anedota é complicada, o que se subentende disto tudo, mas agora subentendam o que quiserem.


P. - Mas Breton também se aproximou do comunismo soviético...
R. - Em duas palavras lhe digo. Tive uma perseguição muito grande e muito chata do regime, porque descobriram uma maneira mais simpática e mais atroz de me chatear: fui dado como vagabundo na Polícia Judiciária de Lisboa, tinha lá o cartão... dado não, suspeito, suspeito de vagabundagem, que era também um termo que se aplicava a pessoas assim um bocado esquisitas. E, em nome dessa suspeita de vagabundagem, tive uma perseguição que só acabou no 25 de Abril, porque tudo aquilo era ilegal. Não sou um mártir nem um herói da luta anti-fascista, não sou, mas fui muito chateado, porque a qualquer hora, a qualquer momento, a qualquer ano, podia receber uma convocação da polícia: o senhor venha cá - uma coisa horrorosa. Isso só acabou com o 25 de Abril, porque tudo aquilo era ilegal.


P. - Chatearam-no muitas vezes?
R. - Não é chatear muito; é que eles tinham o poder de chatear sempre que quisessem. Até podiam deixar passar vinte anos sem chatear, mas ao fim de vinte anos lembravam-se: "Olha este, vamos chamá-lo". Era uma coisa sempre pendente em cima da cabeça, uma espada. Tinha medo de ir ao telefone, tinha medo de ir ao correio: não me tratavam mal, nem me batiam, mas era uma coisa muito chata, muito humilhante ir às apresentações. Sempre me deitei muito tarde e sempre me levantei muito tarde, o que para a polícia era horrível: "não trabalha", essas coisas. E há uma manhã em que a minha irmã Henriette me chama e diz: "Mário, acabou a ditadura" - "O quê?", "Acabou a ditadura". Saio para a rua com uma máquina fotográfica e durante quase um ano, não foi um ano certo, mas quase um ano, fosse qual fosse a hora a que eu me deitasse, às oito horas eu levantava-me de cabeça fresca. Percebe o que isto quer dizer...


P. - Quais eram as acções desenvolvidas pelos surrealistas contra o regime?
R. - Havia uma glória em Portugal, que era ser mártir, ser preso e ser torturado pelo regime: nós não achávamos que isso fosse uma coisa interessante, as nossas intervenções eram um bocado aparecer, dizer, sair logo e aparecer noutro lado: uma guerrilha. Como não podíamos fazer uma revolução - e não fizémos, claro -, a nossa revolução foi uma espécie de implosão, foi cá dentro que explodiu; para fora não podia sair, que a censura não deixava, foi por dentro. É pena que não se estude um bocado mais a condição dos surrealistas sob a ditadura, porque havia muita coisa interessante a saber nesse aspecto. E depois morreu o António Maria Lisboa, que, quanto a mim é o maior - dizei que sou eu, mas não sou, é ele o maior, só não tem versos tão bonitos, a poesia dele é uma coisa dura, agreste. Tivemos o atabafamento dos neo-realistas, que eram os realistas-socialistas e tivemos o atabafamento do Salazar: essas duas forças contra nós. As gerações que vieram a seguir, também não sabiam bem o que se passava... Foi um bocado uma ideia louca, porque falei com o André Breton e combinamos fazer uma pequena revista, mas era uma ideia um bocado louca, hoje vejo isso, era impossível tentar uma expansão pública, porque íamos logo para a choça e não estávamos muito interessados em ser mártires e heróis do estalinismo. O Cruzeiro Seixas foi para África, o António Maria Lisboa morreu, o Pedro Oom fechou-se em casa, como grande abjeccionista e, depois, o nosso grupo dispersou-se.


P. - Qual é a grande diferença entre o surrealismo e o abjeccionismo?
R. - Quem captou a grande frase foi o Pedro Oom, o criador do abjeccionismo: "Que pode fazer um homem desesperado, quando o ar é um vómito e nós seres abjectos". Ele refere-se à condição política. O que pode fazer esse homem? Pode suicidar-se, por exemplo. Pode sair para a rua, como os malucos, e matar uma data de gente. O que é que ele fez: meteu-se em casa. Uma vez fui a casa dele e fiquei gelado. Aquilo não era uma casa, era uma coisa despida de tudo, com uma flor de plástico no corredor: nada. O Pedro Oom desistiu de tudo e, no entanto, ele escreveu um ou dois dos mais belos poemas que se escreveram na altura e depois foi para casa e acabou daquela maneira: um suicídio se não pessoal em relação a tudo. Aparecia raras vezes. O abjeccionismo contagiou também um bocado o António Maria Lisboa. O António Maria Lisboa suicidou-se contra vontade, ele não queria realmente morrer, mas são as tais imprudências... foi uma primeira vez a Paris, mas a segunda vez que ia a Paris já não tinha um pulmão...


P. - Foi a morte que mais lhe custou na sua vida?
R. - Não digo isso, mas digo que o António Maria Lisboa era, de certeza, embora a sua obra seja diminuta, um ponto muito alto, se não o mais alto, de todos nós. Para mim, neste século que passou, houve duas grandes revoluções: a russa e a sureealista. A revolução russa acabou no que acabou, uma tragédia, um inferno. A revolução surrealista foi sabiamente soterrada pela sociedade. Primeiro ignorada pela geração que veio a seguir - o Cruzeiro Seixas é de outra opinião, muito optimista, eu não, eu acho que a revolução surrealista não é só os quadros que se põem nas paredes, pretendia-se uma revolução mesmo, muito mais utópica que a russa; agora os Magritte e os Max Ernst valem milhões, que é a maneira da sociedade abafar -, depois porque os actuais membros da Assembleia da República leram o bê-à-bá da literatura portuguesa pela história da literatura portuguesa do Óscar Lopes e do António José Saraiva. O Óscar Lopes era, e ainda é, membro do comité central do PCP, veja o que isto quer dizer, o outro era um espírito mais aberto, mas fez o jeito; de maneira que aprenderam todos o bê-à-bá do enterro do surrealismo e ainda hoje estão nisso.


P. - O que se pode fazer para dar a volta a essa situação?
R. - Não posso fazer nada. Só posso sair para a rua com uma metralhadora e matar uma data de gente.


P. - Cumprir o gesto de Breton?
R. - É. Sair para a rua de revólver. São uma coisa profética, os textos dele, porque isso é o que está a acontecer agora. Na América é dia sim, dia não: a criancinha entra na escola de metralhadora e mata os colegas todos e outras coisas assim. Outra coisa que pode ser um aspecto negativo é a droga, o Breton também a experimentou, mas aquilo atingiu um ponto tal, em grupo... É sabido e contado que uma noite, já não era em casa do Breton, era numa pequena moradia assim género "chateau", já havia um que andava atrás do Eluard com um punhal para o matar, foi pena, deixa lá [risos]f+b.f-b A sociedade apanhou todos os aspectos mais negativos: a droga e o matar a torto e a direito, que é o que está a acontecer, isso é profético.


P. - E quais são os aspectos mais positivos do surrealismo?
R. - É a luta desesperada pelo amor, pela liberdade e pela poesia: é isto. Parece que é uma trindade que vem substituir a liberdade, igualdade, fraternidade: liberdade, amor, poesia - é viver isso, é um bocado complicado, não é?


P. - Já falou de António Maria Lisboa. Outra figura que o marcou e que, em termos plásticos, chegou a comparar a Rimbaud, é Maria Helena Vieira da Silva...
R. - Essa é a velha história que também se prende com a exposição do surrealismo. Tenho um livro chamado "Vieira da Silva/Arpad Szènes, ou o Castelo Surrealista", onde até inventei uma expressão que gosto muito, que é "os surrealistas-copistas". Em Inglaterra, a pintura surrealista é toda metade Dali e metade Magritte, e dali não saiem. Em 40, antes de partirem para o Brasil, a Vieira da Silva e o Arpad fazem uma exposição no atelier deles, exposição tal que o João Gaspar Simões vai lá e faz uma pequena crónica em que fala no Breton e no surrealismo. Quando o António Pedro, estava a tentar lançar o dimensionismo - uma coisa que, se não se opunha, ignorava o surrealismo - com um companheiro se possível mais fascista do que ele, um tal Dutra Faria.


P. - A posição política do surrealismo é o anarquismo?
R. - É capaz de ser. Não, é um socialismo utópico. A última grande exposição organizada pelo André Breton, em Paris, chamou-se - e há um catálogo admirável - "L' Écart Absolu" [dedicada a Charles Fourier, a mostra teve lugar na Galeria L'Oeil, em1965] , quer dizer "afastamento absoluto", total, da política, da arte: desaparecer. Porque falhou: não falhou nos museus, mas o voto profundo dos surrealistas, que era também uma revolução social e a revolução total da linguagem e a revolução total das revoluções humanas: tudo isso falhou.


P. - No caso das relações sexuais, os surrealistas, sobretudo Breton, foram sempre muito rigorosos quanto à homossexualidade...
R. - Isso diz-se do Breton e é verdade, mas o homem era assim, o que é que se há de fazer. Mas lembro que nas célebres conversas sobre a sexualidade, o Péret diz não é contra nem a favor: "Não tenho nada com isso". E o Breton responde: "Se continua com esses termos eu vou-me embora". É uma opção pessoal. E no entanto, que ele tinha dessas coisas à czar... fazia excepções, como o Marquês de Sade. É evidente que o Breton terá tido os seus deslizes, como toda a gente. O [René] Crevel era homossexual e o Breton sabia-o perfeitamente, e o Crevel matou-se por causa do Breton, quando foi a história do congresso de escritores em prol da União Soviética, em que não deixaram falar o Breton; o Crevel - os textos dele são muito importantes - matou-se e deixou um papel a dizer "enojado". E também é discutível a história da "femme-enfant", a mulher-menina, que também é um mito do Breton; mas isso são mitos pessoais, não são obrigatórios: a culpa não é do Breton, a culpa é de quem aceitava a gritaria. Eu não aceito isso, pronto, acabou-se.


P. - Há alguns anos, em Madrid, Eugénio Granell, recentemente falecido, falava de si com grande apreço. Como se conheceram?
R. - O nosso encontro foi muito bonito. Conheci-o em Nova Iorque: havia uma exposição chamada "Exposição Mundial do Surrealismo", em Chicago. A Gulbenkian pagou e eu fui lá - parece que é assim, para se ir ao México tem de se aterrar primeiro em Nova Iorque, era assim, não sei se ainda é - e então ficámos uns dias em Nova Iorque e foi aí que conheci o Eugénio Granell, acho que ele ficou a gostar muito de mim, sobretudo porque eu era um português, isso foi em 1975, era o ano quente da revolução, que ele acompanhava muito pela rádio, porque lhe interessava. Eu fiz-lhe uma entrevista bastante grande, onde ele pôs os seus pontos de vista, e acho que ficou grato por eu lhe ter aparecido em casa e o pôr a falar do que acontecia e do que não acontecia, porque é evidente que o 25 de Abril teve muita importância para a própria Espanha. Tenho uma admiração muito grande por ele: na pintura considero-o um dos pintores mais originais do surrealismo espanhol. Não foi como o Picasso roubar à arte negra, que não é para pôr na parede - a arte negra é para cachimbos, é para fazer cadeiras, tem um sentido utilitário ou então tem um sentido sagrado, e o Picasso, com todo o seu talento, que é enorme, transformou aquilo numa coisa decorativa. E o Granell é muito original como surrealista espanhol, não foi à arte negra, nem às criancinhas, como o Miró - o Miró é muito bom, mas foi às criancinhas - e o Granell tirou aquilo lá não sei donde: para mim é o mais original, não digo que seja o maior ou o menor, isso não interessa. E depois, pessoalmente, teve uma vida admirável, de resistente: até ao fim, quis ser enterrado com a bandeira republicana: tudo isso é de uma coerência... e as perseguições que ele teve dos comunistas, porque ele era do POUM [trotskistas catalães]. E até no estrangeiro quem se encarregava disso era o Pablo Neruda, que pode ser um grande poeta, mas era um grande sacana ao serviço do comunismo soviético.


P. - Há um quadro seu em que homenageia Teixeira de Pascoaes...
R. - O Pascoaes é o grande poeta, não tenho nada contra o Pessoa, mas para mim o Pascoaes é o velho da montanha, é o mágico. Sabe que ele tinha lá no solar uma divisão em vidro no exterior, quando havia grandes tempestades devia ser uma coisa formidável, uma trovoada no Marão...


P. - Dizia-se que ele tinha poderes mágicos, druídicos...
R. - O João [um familiar de Pascoaes] contou-me e eu perguntei-lhe: "Você que idade tinha?", "Para aí 19 anos, vi-o sair do escritório com a cabeça em chamas". Isso é corroborado por um simples camponês que viu o Pascoaes vir não sei de onde e disse: "Quem é aquele homem que deita fogo pela cabeça?" Estava a carregar lá naquela coisa de vidro. Mas isto atira tudo para um terreno que as pessoas não gostam, cheira ao paranormal. A poesia dele - e talvez não propriamente os versos,"O Bailado" em prosa, por exemplo - é uma coisa formidável...


P. - "S. Paulo" é um texto notável...
R. - Desses o que ainda gosto mais é "S. Jerónimo e a Trovoada", porque é aflitivo, parece que ele estava lá. Não nego o talento poético do Pessoa, mas tornou-se odioso, porque já se ganha a vida à custa do Pessoa: é demais, já não pode ser. Nós temos grandes poetas desde os galaico-portugueses, não é? Isto acontece porque o Pessoa pegou lá fora, não é por outro motivo. Como pegou lá fora, então a saloiada toca toda a pegar no Pessoa nas universidades. O Camilo Pessanha não é inferior ao Pessoa; há muitos, o Sá-Carneiro...


P. - Foi por isso que escreveu "O Virgem Negra"?
R. - Não é contra ele, mas é contra a igreja dele. Isso tem uma segunda edição onde acrescentei mais duas cartas inventadas, mas muito giras.


P. - Na exposição tem um verso seu: "Ama como a estrada começa". Qual é essa estrada?
R. - Oh, aí é que está. Não sei, é com cada um. "Ama como a estrada começa" é o sentido da criação original, começa e vai...


P. - Falou nos antecessores, como Pascoes ou a própria Vieira da Silva. Actualmente quem é poderia ser visto na continuidade da tradição surrealista? Recordo, por exemplo, Álvaro Lapa... R.- Se ele quiser entra à vontade, se não quiser não entra: o resultado é igual. E a Paula Rego, com certeza, essa tem a sorte de ter fama internacional; ela disse-me que está dentro. E entre os novos, novíssimos, o Álvaro Lapa. E parece que está a aparecer mais gente, veremos.

Poesia de António Gedeão ( a propósito do centenário de nascimento de Rómulo de Carvalho)




Enquanto

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;

enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;

enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto,
rasgado pelo grito da sereia estridente;

enquanto o grande pássaro de fogo de alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de exetrmínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;


enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA!

(António Gedeão, in Linhas de Força, 1967, Coimbra)
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O poeta, professor e investigador Rómulo de Carvalho ( mais conhecido na literatura com o pseudónimo de António Gedeão), cujo centenário de nascimento é agora recordado, marcou gerações inteiras e nunca é demais divulgar a sua obra e vida.
Num destes últimos dias a sua esposa divulgou um seu escrito que reproduzimos:
“Os governos têm sabido organizar as coisas de modo a alterar tudo segundo as suas conveniências. A imprensa só diz o que é conveniente dizer-se e de um só modo considerado conveniente. Os serviços oficiais só dão notícia e relevo a tudo quanto contribui para o prestígio de uma certa doutrina considerada como a única aceitável.”

"Eu tenho sobre a história uma ideia que está longe de ser a mais frequente. Penso que, quem faz a história, não é o governo de uma nação. Sou eu, a vizinha do andar do lado e o merceeiro que está estabelecido com loja na esquina da rua. É o par de namorados que passa de lambreta ou o operário que vai para a oficina com a malinha do almoço. É o poeta, é o pensador, é o cientista, é tudo, toda a gente, a que sai e a que fica em casa, todos, todos, excepto os que compõem o governo. Esses só têm uma atitude permanente, que é a de, atónitos, solucionarem, ou verdadeiramente ou falsamente, os problemas que lhes são impostos."
( retirado daqui)
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Para um homem simples, que nunca votou, e que se recusou a integrar a comissão de apoio à presidência de Mário Soares, estas palavras mostram, caso fosse ainda necessário, o sentido da sua filosofia de vida e a sua concepção política:
A emancipação dos seres humanos é obra deles próprios !
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Aproveitamos para incluir dois excertos de textos que analisam a obra e a vida de Rómulo de Carvalho:
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A ideologia de António Gedeão foge tanto à ideologia oficial como ao padrão cultural da classe dominante, que chega não raro a afectar o discurso mesmo daqueles que contestam o regime. É a ideologia de um sage: cientista, professor, poeta, espectador crítico e dilacerado, cuja intervenção se resume ao seu fazer de artista, mas que penetra fundo em quem o lê. Ele sonha a harmonia do mundo, isto é, a igualdade na desigualdade, a fraternidade na competição ou na luta de instintos; a liberdade íntima e cívica, que só pode conseguir-se através de um aperfeiçoamento incessante e progressivo da espécie humana.
Será redutor empregarmos a palavra socialismo para nos acercarmos desta cosmovisão? O certo é que não encontro melhor expressão. O mundo sonhado pelo trovador de «A Pedra Filosofal» está ao mesmo tempo aquém e além da visão de Fourier, de Proudhon, de Karl Marx? É decerto um mundo sem deus, no estrito sentido teológico da crença num criador do universo, omnisciente e omnividente, detentor do castigo e da recompensa. Materialista, darwnista, einsteineano, Rómulo de Carvalho/António Gedeão sonha no entanto o paraíso possível, a pacificação das feras que são a maioria dos homens, ainda presos e talvez para sempre aos primórdios da sua origem, mas capazes de ternura, de êxtase ante a beleza do mundo. É essa dualidade, a do homem preso à terra e à morte, condicionado pelas leis biológicas, rigorosas, da mecânica universal, e a da ascensão a uma plataforma superior da vida transformada através da cor, do gesto, da música e das palavras, que ele tenta comunicar-nos, ensinando-nos a olhar sem ilusões, mas com calma euforia, a beleza dos rios, das fontes, das plantas, das crianças, a união dos contrários. E assim a sua poesia fala a dor, o absurdo e por vezes, com atormentada alegria, a esperança
(texto de Urbano Tavares Rodrigues, retirado daqui)
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É durante este período preparatório (de 1954 a 1955) que lhe surge a ideia da adopção de um pseudónimo. Mas é só de quando em quando que surge uma assinatura nesses poemas, a maior parte das vezes resumida a um simples A (de António). Aliás, ao longo de toda a sua produção, só muito raramente assinava o pseudónimo completo. O elemento que está quase sempre presente é o A ou António.
Esse período preparatório para a arrancada definitiva que o levará a definir- -se e a aparecer publicamente como António Gedeão, corresponde a uma grande alteração na sua vida individual. Transplantáramo-nos da nossa cidade natal, de Lisboa e capital, onde nos ficavam, além dos sítios históricos que ele amava, o resto da família, a dele e a minha, e assentávamos em Coimbra, cidade de características académicas e de costumes ainda acentuadamente provincianos, e isto durante o período do Estado Novo. Havia ainda alguns costumes da«praxe», que não nos agradavam, havia procissões pelas ruas, com as figuras gradas da cidade a pegarem nas borlas dos pálios debaixo dos quais seguiam os bispos paramentados, e havia no liceu oficial para que ele fora nomeado uma hierarquia rígida, que envolvia obediências políticas, cívicas e religiosas muito acentuadas. Nesse meio, um professor de liceu devia mostrar-se como uma figura grave, encarregada da instrução e da educação de jovens. Era difícil mostrar uma faceta crítica, filosófica, implicitamente contestatária e, pior, lírica e anti-convencional.
(texto de Natália Nunes,retirado daqui)
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Para ver cronologia e mais informações sobre Rómulo de Carvalho ( isto é, ó poeta António Gedeão), consultar:
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Acreditava não poder zangar-se com alguém, e considerava que havia de morrer inocente, exactamente como nascera. Poeta até ao fim, António Gedeão, afirmava em 1989: "continuarei a escrever poesia até ao último suspiro. Suponho que o último suspiro será um verso."

Rómulo e Gedeão, o pedagogo da simplicidade e o poeta do sonho, deixam-nos uma obra vastíssima com a lucidez das palavras, idealisticamente voltada para o futuro.