Enquanto
Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto,
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo de alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de exetrmínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA!
(António Gedeão, in Linhas de Força, 1967, Coimbra)
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O poeta, professor e investigador Rómulo de Carvalho ( mais conhecido na literatura com o pseudónimo de António Gedeão), cujo centenário de nascimento é agora recordado, marcou gerações inteiras e nunca é demais divulgar a sua obra e vida.
Num destes últimos dias a sua esposa divulgou um seu escrito que reproduzimos:
“Os governos têm sabido organizar as coisas de modo a alterar tudo segundo as suas conveniências. A imprensa só diz o que é conveniente dizer-se e de um só modo considerado conveniente. Os serviços oficiais só dão notícia e relevo a tudo quanto contribui para o prestígio de uma certa doutrina considerada como a única aceitável.”
"Eu tenho sobre a história uma ideia que está longe de ser a mais frequente. Penso que, quem faz a história, não é o governo de uma nação. Sou eu, a vizinha do andar do lado e o merceeiro que está estabelecido com loja na esquina da rua. É o par de namorados que passa de lambreta ou o operário que vai para a oficina com a malinha do almoço. É o poeta, é o pensador, é o cientista, é tudo, toda a gente, a que sai e a que fica em casa, todos, todos, excepto os que compõem o governo. Esses só têm uma atitude permanente, que é a de, atónitos, solucionarem, ou verdadeiramente ou falsamente, os problemas que lhes são impostos."
( retirado daqui)
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Para um homem simples, que nunca votou, e que se recusou a integrar a comissão de apoio à presidência de Mário Soares, estas palavras mostram, caso fosse ainda necessário, o sentido da sua filosofia de vida e a sua concepção política:
A emancipação dos seres humanos é obra deles próprios !
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Aproveitamos para incluir dois excertos de textos que analisam a obra e a vida de Rómulo de Carvalho:
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A ideologia de António Gedeão foge tanto à ideologia oficial como ao padrão cultural da classe dominante, que chega não raro a afectar o discurso mesmo daqueles que contestam o regime. É a ideologia de um sage: cientista, professor, poeta, espectador crítico e dilacerado, cuja intervenção se resume ao seu fazer de artista, mas que penetra fundo em quem o lê. Ele sonha a harmonia do mundo, isto é, a igualdade na desigualdade, a fraternidade na competição ou na luta de instintos; a liberdade íntima e cívica, que só pode conseguir-se através de um aperfeiçoamento incessante e progressivo da espécie humana.
Será redutor empregarmos a palavra socialismo para nos acercarmos desta cosmovisão? O certo é que não encontro melhor expressão. O mundo sonhado pelo trovador de «A Pedra Filosofal» está ao mesmo tempo aquém e além da visão de Fourier, de Proudhon, de Karl Marx? É decerto um mundo sem deus, no estrito sentido teológico da crença num criador do universo, omnisciente e omnividente, detentor do castigo e da recompensa. Materialista, darwnista, einsteineano, Rómulo de Carvalho/António Gedeão sonha no entanto o paraíso possível, a pacificação das feras que são a maioria dos homens, ainda presos e talvez para sempre aos primórdios da sua origem, mas capazes de ternura, de êxtase ante a beleza do mundo. É essa dualidade, a do homem preso à terra e à morte, condicionado pelas leis biológicas, rigorosas, da mecânica universal, e a da ascensão a uma plataforma superior da vida transformada através da cor, do gesto, da música e das palavras, que ele tenta comunicar-nos, ensinando-nos a olhar sem ilusões, mas com calma euforia, a beleza dos rios, das fontes, das plantas, das crianças, a união dos contrários. E assim a sua poesia fala a dor, o absurdo e por vezes, com atormentada alegria, a esperança
Será redutor empregarmos a palavra socialismo para nos acercarmos desta cosmovisão? O certo é que não encontro melhor expressão. O mundo sonhado pelo trovador de «A Pedra Filosofal» está ao mesmo tempo aquém e além da visão de Fourier, de Proudhon, de Karl Marx? É decerto um mundo sem deus, no estrito sentido teológico da crença num criador do universo, omnisciente e omnividente, detentor do castigo e da recompensa. Materialista, darwnista, einsteineano, Rómulo de Carvalho/António Gedeão sonha no entanto o paraíso possível, a pacificação das feras que são a maioria dos homens, ainda presos e talvez para sempre aos primórdios da sua origem, mas capazes de ternura, de êxtase ante a beleza do mundo. É essa dualidade, a do homem preso à terra e à morte, condicionado pelas leis biológicas, rigorosas, da mecânica universal, e a da ascensão a uma plataforma superior da vida transformada através da cor, do gesto, da música e das palavras, que ele tenta comunicar-nos, ensinando-nos a olhar sem ilusões, mas com calma euforia, a beleza dos rios, das fontes, das plantas, das crianças, a união dos contrários. E assim a sua poesia fala a dor, o absurdo e por vezes, com atormentada alegria, a esperança
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É durante este período preparatório (de 1954 a 1955) que lhe surge a ideia da adopção de um pseudónimo. Mas é só de quando em quando que surge uma assinatura nesses poemas, a maior parte das vezes resumida a um simples A (de António). Aliás, ao longo de toda a sua produção, só muito raramente assinava o pseudónimo completo. O elemento que está quase sempre presente é o A ou António.
Esse período preparatório para a arrancada definitiva que o levará a definir- -se e a aparecer publicamente como António Gedeão, corresponde a uma grande alteração na sua vida individual. Transplantáramo-nos da nossa cidade natal, de Lisboa e capital, onde nos ficavam, além dos sítios históricos que ele amava, o resto da família, a dele e a minha, e assentávamos em Coimbra, cidade de características académicas e de costumes ainda acentuadamente provincianos, e isto durante o período do Estado Novo. Havia ainda alguns costumes da«praxe», que não nos agradavam, havia procissões pelas ruas, com as figuras gradas da cidade a pegarem nas borlas dos pálios debaixo dos quais seguiam os bispos paramentados, e havia no liceu oficial para que ele fora nomeado uma hierarquia rígida, que envolvia obediências políticas, cívicas e religiosas muito acentuadas. Nesse meio, um professor de liceu devia mostrar-se como uma figura grave, encarregada da instrução e da educação de jovens. Era difícil mostrar uma faceta crítica, filosófica, implicitamente contestatária e, pior, lírica e anti-convencional.
Esse período preparatório para a arrancada definitiva que o levará a definir- -se e a aparecer publicamente como António Gedeão, corresponde a uma grande alteração na sua vida individual. Transplantáramo-nos da nossa cidade natal, de Lisboa e capital, onde nos ficavam, além dos sítios históricos que ele amava, o resto da família, a dele e a minha, e assentávamos em Coimbra, cidade de características académicas e de costumes ainda acentuadamente provincianos, e isto durante o período do Estado Novo. Havia ainda alguns costumes da«praxe», que não nos agradavam, havia procissões pelas ruas, com as figuras gradas da cidade a pegarem nas borlas dos pálios debaixo dos quais seguiam os bispos paramentados, e havia no liceu oficial para que ele fora nomeado uma hierarquia rígida, que envolvia obediências políticas, cívicas e religiosas muito acentuadas. Nesse meio, um professor de liceu devia mostrar-se como uma figura grave, encarregada da instrução e da educação de jovens. Era difícil mostrar uma faceta crítica, filosófica, implicitamente contestatária e, pior, lírica e anti-convencional.
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Para ver cronologia e mais informações sobre Rómulo de Carvalho ( isto é, ó poeta António Gedeão), consultar:
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Acreditava não poder zangar-se com alguém, e considerava que havia de morrer inocente, exactamente como nascera. Poeta até ao fim, António Gedeão, afirmava em 1989: "continuarei a escrever poesia até ao último suspiro. Suponho que o último suspiro será um verso."
Rómulo e Gedeão, o pedagogo da simplicidade e o poeta do sonho, deixam-nos uma obra vastíssima com a lucidez das palavras, idealisticamente voltada para o futuro.