4.8.05

Ode à Liberdade

Quero-te, como quero ao ar e à luz
Porque não sou a ovelha do rebanho,
Nem vendi ao pastor a alma e a grei;
E onde não haja mais do que o redil,
És tua a minha pátria e a minha Lei.

Leva-me onde as estradas me pertençam.
Porque as vozes viris que me conduzem
Ninguém, melhor do que eu, sabe dizê-las;
Porque eu não temo as livres solidões,
Onde habitam os ventos e as estrelas.

Leva-me ao teu sopro, éter divino,
Porque me queima a sede das alturas
E o meu amor se oferece sem limite;
E és tu que abres as asas aos condores,
É tu que ergues os astros ao zénite.

Toma-se nas tuas mãos de Sagitário,
Faze de mim o arco retesado
Pelo teu braço e a tua força inquieta,
Pois, quando o meu desejo atinge o alvo,
És tu o impulso que dispara a seta.

É lá, sempre mais longe, além do Outono,
Nos limites do mundo conhecido,
Em plena selva e onde há que abrir a senda,
Que eu quero devorar os frutos novos
E erguer à beira de água a minha tenda

Torna-me ágil e ardente, alma do Fogo,
Porque tu és a inspiradora inquieta
Dos bailados da morte e da alegria;
E eu prefiro ao aprisco a vida heróica,
A que devora o ser, mas alumia.

Queima-me, embora custes, quando negas,
Quer o ódio fanático dos bonzos,
Quer o ciúme vil dos fariseus.
Sou dos que amam demais a Divindade
Para poder acreditar num deus

Não és a flor da beira do caminho.
Bem sei que é preciso conquistar-te
A cada novo dia e duro preço.
Por ti tenho sofrido quantos os homens
Podem sofrer. Por isso te mereço.

Por ti sofri os transes da agonia,
Desde a fome da alma no deserto
Ao pão que, por amargo, se recusa.
E, náufrago da grande tempestade,
Cá vou sobre a Jangada da Medusa!

Gerou-te, lentamente, com revolta
E dor, a consciência dos escravos;
Renasces mais perfeita a cada idade;
E, sempre, com as dores cruéis do parto,
Dá-te de novo à luz a Humanidade.

Querem mãos assassinas sufocar-te
Nas entranhas maternas. Mas em vão.
Virás como a torrente desprendida,
Porque és o sopro e a lei da Criação
E não há força que detenha a Vida

Autor: Jaime Cortesão (1884-1960)

John Hersey, repórter em Hiroshima


Coube a John Hersey (1914-1993), jornalista e escritor norte-americano, fazer a reportagem mais pungente das consequências da explosão da bomba atómica em Hiroshima que veio a ser publicada em 1946 no New Yorker e que teve um enorme impacte pelo realismo e como testemunho humano daquele acontecimento.

John Hersey foi correspondente de guerra das revistas Time e Life, tendo os seus artigos uma larga aceitação que lhe valeu, de resto, vários prémios no campo do jornalismo e da literatura. Destacou-se também como pacifista e uma concepção humanista contra a arrogância da tecnologia. Mas o seu trabalho escrito mais contundente foi, sem dúvida, sobre Hiroshima, aonde chegou na Primavera de 1946, e que foi publicado pela primeira vez no New Yorker, mas que foi rapidamente reproduzido por várias publicações tal era a força documental do texto.

Essa reportagem está editada em português sob o título «Hiroshima», nas edições Antígona.
O livro inclui ainda um capítulo posterior escrito pelo próprio John Hersey, cronologia, e um comentário assinado por Júlio Henriques.

Padre nosso nuclear

O Senhor teve pena do seu servo
E ele rezou, agradeceu
Com um rosário de electrões muito bonitos nos seus círculos,
Ave-Marias em eclipse:
Padre nosso que estais nos céus
E nos deste o escudo do ozone
E o fósforo nas ondas domar
E em nós a água e o carbone

O Senhor teve pena do seu servo
E guiou a mão de Becquerel
E pôs um raminho de polónio
Ao peito de Madame Curie,
Mas veio o Diabo e queimou tudo
Num cogumelo venenoso
E imitou o chumbo no plutónio
Em honra de Plutão, já se vê…
Cobrem-se todos com a mesma manta,
O Diabo atómico pinta a manta.

Padre nosso que estais nos céus,
Diz o servo de Deus molecular,
Seja feira a vossa vontade
No computador e no radar,
Na ribose entre as proteínas,
No café sem açúcar da manhã

Sem planta nem margarinas
Quando os pobres se erguem da enxerga
Para a serapilheira dos sacos
Dizendo à vida: Rai’s te parto!
Mas Deus perdoa a quem tem o ozone
E o bem-aventurado de Franklin
Ousado no tecto dos ricos
Como a cegonha nas almearas.
Qual raio! O quê! Se esta manhã
Os Carregadores de Pernambuco
Têm uma partida a despachar,
E quem é que há-de alombar
Se um raio mesmo os fulminar?

Padre nosso que estais nos céus…
O meu rosário é tão bonito
Com os seus bugalhos de França
E a Ave-Maria da Polónia,
Rezado nos encontros Solvay:
Pai Nosso, diz Niels em Copenhagen
Para dizer Amen em Cavendish,
Santa Maria da Polónia
Já Notre Dame no Pasteur:
Tudo terras cristãs como Portugal, oh douler!


Autor: Vitorino Nemésio (1901-1978)