6.1.13

Sobre os Tempos - texto de Gonçalo M. Tavares sobre os tempos que aí vêm


  Se pensarmos nos diversos valores morais e éticos – bem, bondade, lealdade, altruísmo, honestidade, solidariedade, liberdade, verdade, justiça, sabedoria, coragem, etc. verificaremos que, se no meio deles estiver o funcionamento de uma máquina, estes valores tornam-se pouco consequentes. É esta anulação moral por parte das máquinas. A tecnologia, no seu conjunto, funciona como uma máquina de terraplenagem moral. (…) Não te posso salvar porque não sei mexer na máquina – eis a frase que, em 2013, será muitas vezes escutada.”
Gonçalo M. Tavares
 
Um texto luminoso de Gonçalo M. Tavares nestes primeiros dias de 2013, publicado no jornal Público (3/1/2013) sobre os valores, os tempos, os homens e as máquinas. De leitura obrigatória.
 
 
 

“Sobre os Tempos”, por Gonçalo M. Tavares
 
 texto publicado no jornal Público de  3 de Janeiro de 2013
 
1 – Saída de emergência
“Deves é mudar de alma, não de clima. (…) Andares de um lado para o outro não te ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria companhia.” Séneca
Sempre que, antes da descolagem de um avião, se escuta: Preste atenção que a saída de emergência pode estar nas suas costas, sentimos que se está a falar não das medidas de segurança no caso de um acidente, mas da existência no geral. Existência individual e da sociedade.
A europa embarcou há muitos anos e, em 2013, continuarão a ouvir os conselhos de segurança: Preste atenção que a saída de emergência pode estar nas suas costas. E há quem aponte outras saídas.
Numa variação de célebres paradoxos, poderemos dizer que um continente ou um homem que estejam equidistantes de duas saídas de emergência, em caso de acidente correm o risco de morrer, imóveis na hesitação. E com dezenas de saídas de emergência a igual distância, um homem ou um continente – além de não se salvarem – ficarão loucos.
2 – Versos
Os versos de Hölderlin:
“Dificilmente abandona / o seu lugar aquele que mora perto da origem.”
E o comentário de Heiddeger a estes versos:
“De modo inverso, quem facilmente abandonar o lugar comprova que não tem origem e se limita a estar presente como que por acaso.”
3 – Velocidade
A síntese do homem contemporâneo, do homem que pode decidir e agir – é a do Homem com Pressa Dentro do Elevador.
A angústia de ter pressa e músculos e energia capazes de acelerar, mas dentro de um Recipiente que tem uma velocidade predeterminada e que não altera a sua velocidade.
A sensação é a de que entre a sociedade e cada um dos elementos que a constituem se começa a cimentar uma dessincronização essencial das velocidades. O Recipiente com motor onde nos colocaram nunca tem velocidade de que precisamos. Mas já não somos nós que fazemos juízos sobre o Recipiente, é o Elevador que nos julga. É o mecanismo do ascensor que diz ao Homem com Pressa Dentro de um Elevador: estás com pressa a mais, acalma-te.
Estamos sempre ou demasiado rápidos ou demasiado lentos. A nossa velocidade torna-se culpada. A sociedade parece exigir sempre. Em qualquer circunstância, uma outra velocidade. És culpado porque não acertas-te na velocidade.
4 – Fundamentalismos
Gosto particularmente do que diz uma personagem de Hans Christian Andersen: “Pediram-lhe para rezar, mas ele só se lembrava da tabuada.”
Dois tipos de fundamentalistas:
1. O fundamentalista da lógica pura: pediram-me bondade, mas eu só me lembrava da tabuada; pediram- me sabedoria, mas eu só me lembrava da tabuada, etc.
2. O fundamentalista religioso: Pediram-lhe a tabuada, mas ele só se lembrava de rezar.
Há muito que a Europa se instalou na tabuada. Por cima do mapa do Continente poderíamos escrever simbolicamente
2×3=6
ou a tabuada inteira, mas cometeríamos um sacrilégio se escrevêssemos uma oração, por exemplo, o Pai nosso que estais no Céu, Santificado seja o Vosso nome.
O sacrilégio mudou de objecto.
Na Europa, em 2013, o discurso religioso que conteste uma adição ou uma multiplicação será apedrejado.
O cineasta Herzog lembra que, num dos seus filmes rodado em África, elementos da tribo massai não quiseram entrar num posto médico móvel porque este estava elevado em relação ao chão. “Por razões misteriosas, não se atrevem a subir os degraus. Tentam entrar, hesitam e recuam. Só no final é que alguns massais conseguem ultrapassar esse obstáculo invisível e subir os três degraus que conduzem ao seu interior.”
A Europa, de uma forma geral, está assim. Não sobe os degraus; tem medo das alturas, da pequena altitude que esses pequenos degraus inauguram. Com os pés no chão ou em queda (sem chão por baixo): eis como se sente segura a Europa.
“O rapaz não ousa olhar-se no escuro, / mas sabe bem que deve afogar-se no sol / e habituar-se aos olhares do céu, para se fazer um homem” Cesare Pavese
5 – 5 não é 5 não é 5 não é 5
A objectividade pura tem uma potência violenta. 5 é 5 é 5, eis o indiscutível. Dizer que 6 não é maior que 5, em 2013, na europa, seria o mesmo que dizer – na Europa medieval – que Deus não existia.
Quando alguém diz: isto é objectivo, o que está na verdade a dizer é que não tem discussão, isto é verdade, tu não tens nenhum contra-argumento contra isto. Alguém que se opõe ao que é objectivo só pode ter, assim uma cabeça débil. Quando se diz isto é objectivo terminar-se a conversa, o outro não pode contestar.
Quando se diz isto é subjectivo, afirma-se apenas que isto é um ponto de vista; permite-se, pois, que o outro dê um passo em frente, contra-argumente.
Numa entrevista a um jornal francês, Godard disse uma vez esta frase terrível: “A objectividade? É cinco minutos para Hitler e cinco minutos para os Judeus.”
6 – Moral da Máquina – ou o oitavo pecado.
“E as crianças que poderiam ter mudado tudo / jogam entre pedras e ruínas. / E não querem mudar nada.” Yehuda Amijai
A moral europeia é, em parte, a moral da máquina. É bom aquilo que funciona. É bom, não apenas em termos de eficácia, mas em termos morais.
A noção de pecado socializou-se e entrou na esfera da tecnologia. Alguém que não saiba calcular ou que não domine a última versão do Windows comete um pecado. O pecado maior é a ineficácia. Alguém que não funciona bem torna-se um pecador.
Os pecados capitais são agora oito: gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça, vaidade e incompetência.
O incompetente não entrará no reino da Terra.
7 – Salvação
A discussão é sempre esta: prefere ser operado por um médico competente ou pelo médico de ‘bom coração’?
Se escolher a pessoa que mais o ama para o operar cometerá provavelmente um erro. A salvação já não vem com a entrada do padre na casa do doente, mas com a do médico – e essa transição radical no século XX, analisada por muitos, ainda está em movimento. A salvação que classicamente teve uma abordagem religiosa ou moral tem desde há muito, na Europa, um entendimento clínico.
“Aqui, onde as ruínas querem voltar a ser / uma casa (…)” Yehuda Amijai
8 – Coragem e bondade
A bondade salva cada vez menos, e isso assusta. No mundo de paisagem técnica em que os elementos naturais estão escondidos – quase já não há montanha, nem terra – cada vez mais, salva quem sabe onde ligar ou desligar a electricidade; aquele que sabe mexer nos comandos da casa das máquinas.
E nesse aspecto seria interessante fazer a análise do homem europeu que salva outro em 2012. Se, em séculos passados, a coragem, acima do resto, seria uma das qualidades essenciais de quem salva, hoje tal qualidade é quase dispensável. Que poderá fazer o homem mais corajoso do mundo diante de alguém que corre perigo no meio de uma cidade moderna? A coragem perdeu eficácia – os seus efeitos eram bem mais evidentes quando o que estava diante de si para vencer era uma força natural –animal, água, fogo, outros homens, etc.
Hoje a coragem te, primeiro, de tirar um curso de especialização técnica. Se não o fizer será coragem, sim, sempre, mas inconsequente. Diante de um conjunto de pessoas fechadas num elevador parado por avaria, o homem mais corajoso do mundo irá telefonar á assistência técnica – eis o sem-saída em que nos colocámos.
9 – Valores morais – e o que está no meio
Se pensarmos nos diversos valores morais e éticos – bem, bondade, lealdade, altruísmo, honestidade, solidariedade, liberdade, verdade, justiça, sabedoria, coragem, etc. verificaremos que, se no meio deles estiver o funcionamento de uma máquina, estes valores tornam-se pouco consequentes. É esta anulação moral por parte das máquinas. A tecnologia, no seu conjunto, funciona como uma máquina de terraplenagem moral.
Estes valores morais clássicos, há que insistir, foram pensados na relação de um homem com um outro homem ou conjunto de homens, uma relação imediata. O que temos em 2013 nas cidades europeias é um outro mundo. São raras as relações imediatas, directas, corpo a corpo e entre homens. No meio, mesmo que muitas vezes não nos apercebamos disso, estão máquinas. A lealdade entre dois homens só se poderá manifestar na cidade europeia do século XXI se, pelo menos num deles, existir um conjunto de habilitações técnicas mínimas.
Não te posso salvar porque não sei mexer na máquina – eis a frase que, em 2013, será muitas vezes escutada.
“Há muitos metros entre um animal que voa / e a escada que desço para me sentar no chão” Daniel Faria
10 – Palavras más
Sem nos apercebermos, de uma forma subtil, o vocabulário que utilizamos de forma comum vai instalando este novo mundo. Peguemos num exemplo: a palavra funcionário. Esta palavra tem uma violência contida de que não nos apercebemos. Funcionário é aquele que exerce um conjunto de funções – e função sempre foi uma parte que está contida em algo mais amplo e importante. Reduzir uma pessoa a um conjunto de funções é violentá-la.
Pensemos, por exemplo, na inócua pergunta: ele funciona bem? De facto, podemos perguntar se o João, a Maria, ou o elevador funcionam bem. E quando podemos fazer a mesma pergunta acerca de um homem ou de uma máquina é porque algo, de facto, lá atrás se desarranjou.
E é também por isso que muitas pessoas, aqui e ali, começam a ter avarias.
11 – A apatia
O que me parece muito claro é que a máquina é o ser apático por excelência. (A apatia, esse modo de uma coisa se colocar à mesma distância de todas as outras coisas, de não ter julgamentos estéticos, éticos, etc.)
Uma fotocopiadora tira fotocópias de um documento neutro e a seguir de uma sentença de morte, com a mesma maquinal indiferença – à mesma velocidade e qualidade de impressão. Nunca pára o seu movimento por questões morais, só por avaria. A avaria, aliás, é muitas vezes a origem de uma tragédia, mas cada vez mais, também uma das últimas vias de salvação. (A cada dia, a cada ano, a frase – Felizmente, avariou – ou a estranha e herética frase – Graças a Deus, avariou – se tornarão menos aburdas.)
12 – Perguntas humanas
Não podemos fazer perguntas sobre julgamentos estéticos ou filosóficos a um animal ou a uma máquina e é também por isso que as artes, a cultura e a filosofia, apesar de tudo – apesar de tudo – são importantes. Também não podemos fazer perguntas éticas ou sobre ‘estados de espírito’ senão a humanos: não perguntamos a uma máquina fotográfica se ela ficou entusiasmada quando fotografou aquela paisagem.
Seria interessante pensar que continuamos humanos precisamente porque há ainda perguntas que se fazem às pessoas que não podem ser feitas aos animais ou às máquinas. Por exemplo: gostas? Era bonito?
Outro exemplo: de uma pergunta naturalmente humana, a de Brodski: “Mas porque está ausente da Constituição a palavra ‘chuva’?”
13 – O que aí vem – pés, olhos
“Bem aventurado o que pressentiu / quando a manhã começou: / não vai ser diferente da noite.” Adélia Prado
Podemos ter os pés num terreno feio e os olhos virados para algo belo. Ou podemos, situação inversa: ter os pés num terreno belo e os olhos fixados em algo feio. Na primeira situação, teremos a sensação de que estamos num sítio belo. E na segunda situação teremos a sensação de estar num sítio feio. O que vemos, lá à frente, torna-se sempre o mais relevante.
Se estamos com os pés num sítio feio e os olhos fixos num sítio feio, mas temos uma bela imagem na cabeça, estamos num sítio belo – eis o que dirá, em contraponto a tudo isto, o bom e perigoso, o perigoso e bom velho utópico.
“Depois encontrei o meu pai, que me fez uma festa / e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria (…) Adélia Prado»