8.1.07

A Dialéctica do Senhor e do Escravo

O anarquismo rejeita a armadilha da dialéctica do senhor e do escravo. Com Nietzsche, e no sentido que ele dá a estas palavras, o anarquismo está sempre e sem hesitação do lado dos senhores e não dos escravos. Ou seja: o ponto de vista emancipatório não é do escravo, mas de um senhor que, enquanto dominado, se liberta radicalmente, pela revolta, das grilhetas que o subjugam e de uma força exterior, e que por essa via se afirma numa potência nova que o torna o seu próprio senhor e quebra os limites da dominação.


É por aí, e desse ponto de vista, que se pode compreender por que é que o movimento operário libertário sempre foi histórica e radicalmente alheio ao marxismo (que é uma variante do hegelianismo) e da sua concepção de luta de classes, na medida em que se insere no movimento de diferenciação dos fortes e dos senhores de que fala Nietzsche. Com efeito, na concepção anarco-sindicalista ou sindicalista revolucionária, e contrariamente ao que se ouve com frequência, a classe operária, considerada do ponto de vista da sua emancipação, não é definida à partida, nem principalmente, pela luta de classes, ou pela luta que a opõe ao Estado e à burguesia. O seu poder revolucionário depende essencialmente da sua capacidade de se constituir em poder autónomo, independente, dispondo de todos os serviços e de todas as instituições necessárias para a sua independência. Para o anarco-sindicalismo e o sindicalismo revolucionário deve operar desde logo uma secessão de modo radical, de modo a não ter nada a ver com o resto da sociedade. No registo próprio a esta dimensão libertária do movimento operário este movimento de diferenciação tem uma expressão cristalina, na linguagem nietzcheana, e que é separatismo operário. O movimento operário deve «separar-se» do resto da sociedade. O que Produhon explica no seu livro póstumo «De la capacite politique des classes ouvrières»: «A separação que eu falo é a própria condição de vida.Distinguir-se, definir-se é ser; tal como confundir-se, absover-se é perder-se. Operar uma cisão, uma cisão legítima, é o único meio que nós temos de afirmar o nosso direito (…) Que a classe operária, se se toma a sério, se ela visa outra coisa que não seja uma pura fantasia, então ela tem por adquirido que é preciso quanto antes que saia da tutela e (…) que actue d’ora avante exclusivamente para e por ela mesma.»


Nesta maneira de ver, a luta de classes não está ausente, mas ela não tem nada de dialéctico, no sentido em que a relação para com a «sociedade moribunda », de que fala Jean Grave e que o movimento operário rejeita, arrisca a arrastar consigo aqueles que a combatem numa mortal e anestesiante ligação, ao obrigar a este último a aceitar as regras comuns de combate, a adoptar as formas de luta toleráveis pela ordem que esse movimento pretende negar e destruir. Para o movimento operário libertário, a greve, expressão privilegiada da luta de classes consiste em duas coisas: 1) é um acto fundador ininterruptamente repetido de um «conflito», sempre singular e circunstancial que quebra ao laços e os entraves anteriores, uma ruptura que, por via da multiplicação dos conflitos parciais e graças ao seu próprio movimento, contribui de modo decisivo para transformar o próprio ser de operário; 2) Ela é a maneira como os operários se «educam», « se abastecem» , e se preparam para movimentos cada vez mais «gerais», até à explosão final da greve geral. Nesta multitude de lutas parciais, as associações operárias bem podem fixar objectivos imediatos, e estabelecer acordos, mas tais objectivos serão sempre secundários, e tais acordos serão sempre provisórios. Para as forças revolucionárias tudo isso não representa qualquer compromisso razoável no quadro em que se deram, pois nenhuma «satisfação» virá da ordem económica e social em que foram obtidos, e de que eles dependem. Mesmo quando se assinam convenções, os operários não estão numa situação de demanda. Contentam-se em obter uma parte do seu «direito», provisoriamente, esperando sempre em obtê-lo por inteiro, livremente, sem outros parceiros que não eles próprios. Se os operários não pedem nada é porque eles não esperam nada do velho mundo, que querem abolir, e que eles desprezam e ignoram. A sua revolta é uma pura afirmação das forças e do movimento que as constitui e é apenas de forma derivada que são constrangidas a. combater as forças reactivas e reaccionárias que se opõem a essa afirmação. Eles não pedem nada a ninguém, mas tudo a eles próprios, à sua capacidade de se exprimir e a desenvolver as potencialidades de que eles são portadores.


A sua relação com o mundo exterior é simultaneamente uma relação de selecção, de pretensão ( no sentido primeiro e físico do termo) e de recomposição daquilo que é:
-uma selecção, na ordem existente, dos meios necessários à afirmação desta potência nova;
-a pretensão a ocupar um dia a totalidade do espaço social, através de uma transformação radical da ordem burguês com os seus valores, moral, sistema económico e político;
- uma recomposição da totalidade daquilo que se é


Victor Griffuelhes (in «Le Syndicalisme révolutionnaire», editions CNT-AIT,1909) formula este projecto desta maneira: «A classe operária, ao negar aos seus dirigentes e senhores o direito de governar e manter o seu reino e dominação, não deve esperar nada deles, pelo que tem de se agrupar e de se associar, estabelecendo as condições do seu desenvolvimento, e pelas quais, estuda, reflecte, trabalha, prepara e fixa o conjunto de garantias e de direitos a conquistas, mobilizando os meios, que se encontrem no seu contexto social, para assegurar essas conquistas, e usando os modos de acção que o seu próprio contexto social lhe oferece, recusando tudo aquilo que tende a fazer do trabalhador um ser submisso e governado, e assumindo-se sempre como senhor dos seus actos e das suas acções e árbitro do seu destino.»


Consultar para mais desenvolvimentos:
Moore, John (editor), « I am not a man I am Dynamite: Nietzsche and anarchisme», Ed. Autonomedia, Brooklyn


( excerto do livro de Daniel Colson, «Petit Lexique Philosophique de l’Anarchisme, de Prodhon a Deleuze», ed. Le Livre de Poche, Paris, 2001)