Texto retirado de:
Lavemo-nos em lágrimas.
Sabemos que a cultura Pop está para a nossa sonolência como no Irão para a revolta desesperada.
Quando se “chora” Michael Jackson é já o ícone que se perde que é chorado. E o desejo do ícone não é mais do que o desejo da banalidade e da continuidade. Ironia do star-system que devorou – sem que o músico fosse propriamente uma vítima disso – o que os Jackson Five comportavam de ingénua irrisão ao verem na cultura branca um émulo, essa ideia barata (branca e com crédito, rica e obesa) que, pouco anos depois, a própria sociedade do espectáculo total se encarregou de despolitizar.
De um lado, (no Ocidente geográfico) afogamento completo da reivindicação de outra ordem (da coisa política, de outro espaço social), do outro (no Ocidente deslocalizado), esperança de rompimento com a ordem existente; de um lado, adormecimento da potência do existente, do outro, problematização fundamental da existência humana; de um lado, conúbio geral com a ideia que o fim da humanidade é isto: estar com a ordem dominante das coisas (aceitação geral do homem-economizado e do homem-sem-desejo-político), do outro, vontade de recuperar o começo do mundo e do humano o que implica a abolição simbólica e política do velho mundo. De um lado, o reino humano a recuar ao nível sumário do sono, do outro o reino da barbárie a esmagar a revolta.
Que questões essenciais são hoje colocadas? Quem prefere o risco da crítica dissidente à hipostasia do lugar-comum?
Os neo-jornalistas que cresceram na cultura pop e não se interrogam da sua habituação, nos próximos dias vão escrever nos seus jornais de referência páginas e páginas sobre a morte do “rei” da Pop. Silogismo semântico da cultura edipiana e psicologicamente “burguesa” do jornalista português? (O que explica que a “crítica” freudiana se conforme à denúncia de hipotéticos abusos da estrela pop a menores e não vislumbre uma crítica possível ao universo de valores da indústria da cultura que nos policia). Sofisticação monárquica da hierarquia da ordem e dos valores dos novos Palma Cavalão? Vazamento dos olhos e da lucidez em nome do deserto de ideias?
Escrevam. Vão falar de uma cultura global, do "homem-criança da cultura pop", apresentarão a prova dessa cultura com uma galeria de capas de jornais de todo o mundo, vão especificar que estribilhos do ícone foram cantados esta noite em Tóquio, Los Angeles ou Arare, serão rigorosos e, arregimentados de estatísticas, disponibilizarão o número certo de chineses e senegaleses que choraram o fenecimento do ícone; com a profundidade a que nos habituaram, vão perfilar a lista de candidatos a apadrinhar a cúpula icónica da sociedade do espectáculo, um ou outro, mais emocional, verterá uma lágrima simbólica pela orfandade do espectro do vazio.
A náusea é sempre insuportável se a experimentamos. Resta-nos saber onde ela pulsa ou o que a faz embotar. E nenhuma cultura global e humana pode crescer sem pensar e distinguir as razões do cortejo de “lágrimas” por Michael Jackson e do quase silêncio das que derramámos pela Neda Sultan.
Os Vadios, 26 de Junho de 2009, Porto
No decorrer da próxima semana haverá documentários sobre o Irão e um debate com a presença de cidadãos iranianos.
(Mais info e data em breve no weblog da livraria-bar Gato Vadio)Sabemos que a cultura Pop está para a nossa sonolência como no Irão para a revolta desesperada.
Quando se “chora” Michael Jackson é já o ícone que se perde que é chorado. E o desejo do ícone não é mais do que o desejo da banalidade e da continuidade. Ironia do star-system que devorou – sem que o músico fosse propriamente uma vítima disso – o que os Jackson Five comportavam de ingénua irrisão ao verem na cultura branca um émulo, essa ideia barata (branca e com crédito, rica e obesa) que, pouco anos depois, a própria sociedade do espectáculo total se encarregou de despolitizar.
De um lado, (no Ocidente geográfico) afogamento completo da reivindicação de outra ordem (da coisa política, de outro espaço social), do outro (no Ocidente deslocalizado), esperança de rompimento com a ordem existente; de um lado, adormecimento da potência do existente, do outro, problematização fundamental da existência humana; de um lado, conúbio geral com a ideia que o fim da humanidade é isto: estar com a ordem dominante das coisas (aceitação geral do homem-economizado e do homem-sem-desejo-político), do outro, vontade de recuperar o começo do mundo e do humano o que implica a abolição simbólica e política do velho mundo. De um lado, o reino humano a recuar ao nível sumário do sono, do outro o reino da barbárie a esmagar a revolta.
Que questões essenciais são hoje colocadas? Quem prefere o risco da crítica dissidente à hipostasia do lugar-comum?
Os neo-jornalistas que cresceram na cultura pop e não se interrogam da sua habituação, nos próximos dias vão escrever nos seus jornais de referência páginas e páginas sobre a morte do “rei” da Pop. Silogismo semântico da cultura edipiana e psicologicamente “burguesa” do jornalista português? (O que explica que a “crítica” freudiana se conforme à denúncia de hipotéticos abusos da estrela pop a menores e não vislumbre uma crítica possível ao universo de valores da indústria da cultura que nos policia). Sofisticação monárquica da hierarquia da ordem e dos valores dos novos Palma Cavalão? Vazamento dos olhos e da lucidez em nome do deserto de ideias?
Escrevam. Vão falar de uma cultura global, do "homem-criança da cultura pop", apresentarão a prova dessa cultura com uma galeria de capas de jornais de todo o mundo, vão especificar que estribilhos do ícone foram cantados esta noite em Tóquio, Los Angeles ou Arare, serão rigorosos e, arregimentados de estatísticas, disponibilizarão o número certo de chineses e senegaleses que choraram o fenecimento do ícone; com a profundidade a que nos habituaram, vão perfilar a lista de candidatos a apadrinhar a cúpula icónica da sociedade do espectáculo, um ou outro, mais emocional, verterá uma lágrima simbólica pela orfandade do espectro do vazio.
A náusea é sempre insuportável se a experimentamos. Resta-nos saber onde ela pulsa ou o que a faz embotar. E nenhuma cultura global e humana pode crescer sem pensar e distinguir as razões do cortejo de “lágrimas” por Michael Jackson e do quase silêncio das que derramámos pela Neda Sultan.
Os Vadios, 26 de Junho de 2009, Porto
No decorrer da próxima semana haverá documentários sobre o Irão e um debate com a presença de cidadãos iranianos.
Livraria-bar Gato Vadio
Rua do rosário, 281 – Porto
telefone: 22 2026016
email: gatovadio.livraria@gmail.com
horário:
Tarde:quinta a domingo das 15h - 19h30
Noite:terça a domingo das 21h - 00h59
encerramos à segunda-feira