31.3.05

Semana Sem Televisão (31 de Março a 12 de Abril)



A Semana Sem Televisão é uma semana internacional que se desenrola em vários países desde há una anos para cá. Registam-se já adesões nos Estados Unidos, no Canadá, na Suiça, na Bélgica, na França. Por enquanto. É que o movimento não pára de crescer.
Trata-se sobretudo de uma acção educativa a convidar para uma pausa e um intervalo no consumo diário e compulsivo de programas televisionados de forma à tomada de consciência da necessidade de sermos mais exigentes quando ligamos a TV, assim como da necessidade de consumir menos e melhores programas.

Outras iniciativas levam também a efeito uma semana anti-TV com objectivos mais radicais pondo em causa a própria TV enquanto meio de comunicação.

Segundo estimativas gerais, no nosso país, cada família vê televisão durante mais de 4h.30 em média por dia em Portugal. Há que experimentar viver de outra maneira, e para começar nada melhor que uma Semana Sem TV

Esta semana de privação voluntária do pequeno ecrã é simultaneamente uma experiência e um pretexto. Permitir-nos-á a todos, jovens e menos jovens, solitários ou em família, fazer o ponto da situação acerca do nosso consumo individual ( a quantidade e a qualidade do que passa na TV, quais são os programas escolhidos, quais são os programas que merecem os nossos ódios de estimação, etc). Além disso, a Semana pode e deve servir para re-inventarmos actividades alternativas à TV, quer elas sejam conviviais, lúdicas, reivindicativas, culturais ou desportivas. Tudo depende da nossa imaginação


Outra iniciativa internacional é a Semana das 100 televisões

Na realidade existe também televisão fora das televisões a que estamos habituados. São muitas vezes as televisões associativas, canais alternativos, e de amadores que propõem produções e conteúdos audiovisuais extremamente interessantes, mas infelizmente pouco conhecidos e que, não poucas vezes, envolvem comunidades locais na montagem e emissão desses programas alternativos. Ora será um boa altura para descobrirmos outras formas de fazer e ver televisão.

Ecologistas da Greenpeace e da Quercos denunciam empresas portuguesas pelo uso ilegal de madeira exótica


Activistas da Greenpeace e da Quercos bloquearam na terça-feira ( 29 de Março) de manhã cedo a entrada da empresa Vicaima, em Vale de Cambra, para denunciarem o uso de madeiras exóticas resultantes do abate ilegal de árvores da Amazónia brasileira e que tinham sido descarregadas nos últimos dias no porto de Leixões. Outras empresas do mesmo ramo, objecto das mesmas acusações, foram a Sonae Indústria, a Ovar madeiras, a Madeicentro e a Madeiporto.

Duas horas de lucidez com N. Chomsky




Duas horas de lucidez com Noam Chomsky é um livro editado pela editorial Inquérito (Lisboa, Março de 2002) e que reúne duas entrevistas dadas em Novembro de 1999 por aquele conhecido pensador e activista, e cuja contracapa aqui se reproduz:

«Perante a superficialidade dos media, a sucessão de comunicados pretensamente neutros e informações não sustentadas uma voz resiste, solitária e irredutível: a de Noam Chomsky. Aos 74 anos é um esteio da contra-cultura. Desde a guerra do Vietname que este pensador radical denuncia o sistema que organiza o mundo em prol das oligarquias financeiras.
Nestas conversas, paradoxais e cáusticas, N. Chomsky expõe-nos os mecanismos da sociedade de consumo, a economia invisível, os verdadeiros centros de poder e o processo de elaboração de um consentimento mudo com as injustiças mais gritantes.
Por detrás da aparente imparcialidade dos meios de comunicação escondem-se pressupostos insustentáveis quando confrontados com as suas contradições.»

Capital económico, linguístico e cultural



Pierre Bourdieu, conhecido sociólogo francês, falecido há poucos anos atrás, e com uma vasta obra no domínio das ciências sociais, mostra como o domínio dos códigos culturais assegura uma posição dominante das elites, que vão acumulando não só capital económico, mas ainda capital linguístico e cultural.
A escola reproduz a ordem social e as relações de dominação na medida em privilegia os princípios e os valores ( a primazia da língua escrita relativamente à dimensão oral; certos aspectos cognitivos em detrimento de outros, etc) que são caros, e que coincidem no fundamental, aos valores da classe dominante.

Portuguesa organiza Sindicato inglês das trabalhadoras sexuais


Segundo notícias aparecidas na imprensa oficial a portuguesa Ana Lopes, de 28 anos, e natural do Porto, com o Curso de Antropologia tirado na University of East London é a mentora e principal activista do único sindicato inglês de trabalhadoras (-es) sexuais, a International Union for Sex Workers (IUSW), criado em Março de 2000 e que até hoje já tem uma considerável adesão de membros filiados, para além do próprio sindicato se ter tornado uma secção da Britain’s Geberal Union, a terceira maior organização sindical do reino Unido (GMB – General Municipal Boilermakers).
Ana Lopes depois de não ter entrado no curso de Filosofia na Faculdade de Letras do Porto rumou para Londres onde se inscreveu e terminou uma licenciatura em Antropologia em 1996, mediante uma tese baseada na metodologia da Action Research . Segundo o seu professor orientador da sua tese, a “Ana é a única estudantes desta universidade que alguma vez fez uma Action Research” .
A própria Ana Lopes é uma sex worker desde há 4 anos quando começou a ter um part-time como operadora de chamadas eróticas numa pequena empresa em Londres. Recentemente foi convidada pela pintora Paula Rego, radicada em Londres, para servir de modelo para os seus desenhos. Neste momento Ana Lopes prepara o seu doutoramento sobre grupos marginais.


Uma Exposição de Arte sob o tema do Mal



Em Turim, mais concretamente no Palacete de caça de Stugnini, perto daquela cidade italiana, está a decorrer uma exposição temática com 180 obras de arte, realizadas desde o século XV até hoje, dedicadas ao tema do Mal e que se propõe fazer uma retrospectiva sobre o tema em termos de artes plásticas.
No acervo reunido inclui-se uma Medusa ( de Peter Paul Rubens de 1617), o «Enterro de Santa Luzia» e «Criança mordida por um lagarto» ( ambos de Caravaggio), assim como peças de Rubens, Goya, Munch, Warhol e Picasso.
Outros quadros presentes são «Retrato de um desconhecido» de Antonello da Messina ( secXV), «Tra me e me» de Margherita Manzelli (1995).
As peças mais significativas do século XX são a escultura «Prisão» de Adolfo Wildt; os rostos disformes de Francis Bacon, a «Cadeira Eléctrica» de Andy Warhol.
A exposição termina com a obra de Maurizio Cattelan, « Crianças Enforcadas», que o autor montara num árvores em plena rua de Milão e que merecera há uns meses atrás a reprovação da população local e tentativas para a sua retirada.

China aumenta o seu orçamento militar em 12,6%


O governos chinês acabou de anunciar um de 12,6% no orçamento militar e, segundo os entendidos, o processo de modernização do exército chinês converterá a China na primeira potência militar da Ásia. Recorde-se que Pequim já subira o seu orçamento da defesa em 11,6% em 2004, 9,6% em 2003, 2 em 17,6% em 2002.
Os potenciais fornecedores de armamento não deixarão de se rejubilar; à cabeça dos quais, como é fácil de adivinhar, se encontram os países europeus e os próprios Estados Unidos.

30.3.05

A dívida ecológica


A dívida ecológica é a dívida acumulada pelos países do Norte em relação aos países do Sul por duas razões: em primeiro, pelas exportações de matéria –primas a preços muito baixos dos países originários para os países altamente industrializados, preços que não incluem os danos ambientais produzidos pela extracção e processamento, nem pela contaminação que tais explorações provocaram ( e continuam a provocar); em segundo, pela ocupação gratuita e barata do espaço ambiental ( a atmosfera, aágua e a terra) resultante dos depósitos dos resíduos produzidos pelos países do Norte.

A dívida ecológica começa com o colonialismo e ainda prossegue sob as mais diversas formas. O conceito de dívida ecológica baseia-se na ideia de justiça ambiental:se todos os habitantes do planeta têm direito à mesma quantidade de recursos e à mesma porção de espaço ambiental, os que usam mais recursos ou ocupam mais espaço têm uma dívida em relação ao demais.


Dívida do Carbono

Os cientistas estão de acordo sobre o facto de que a acumulação dos gazes gerados pelos uso dos combustíveis fósseis provocam um aquecimento do planeta, com consequências potencialmente desastrosas, como a subida do nível do mar, o derretimento dos glaciares, o aumento das áreas desérticas, a diminuição dos rendimentos agrícolas, a extinção das espécies animais e vegetais e o incremento de fenómenos meteorológicos violentos.
Estes efeitos recaem sobre todos os habitantes doplaneta. Mas os países do Sul são os mais afectados: em primeiro, porque são as regiões mais sujeitas a furacões, inundações e à desertificação; em segundo, porque os países pobres dispõem de menos recursos para se defenderes; e em terceiros, porque têm uma economia que se baseia em larga medida no sector primário, que será sempre o mais prejudicado.
Por outro lado, as causas do efeito estifa encontram-se principalmente no grande consumo dos combustíveis fósseis por parte dos países ricos. Por consequência, os países do Norte, cujo desenvolvimento económico e bem estar se baseia no uso intensivo das fontes energéticas responsáveis pela emissão de gazes com efeito de estufa, são devedores em relação aos países do Sul. Essa parte da dívida chama-se Dívida do Carbono.
O cálculo da dívida ecológica está sujeita a várias abordagens. Em 1º lugar porque não não consenso entre os cientistas acerca da quantidade de gazes de efeito estufa antropogénicos que seja aceitável, pela complexidade dos fenómenos atmosféricos envolvidos. Não se sabe em quanto será o aumento da temperatura terrestre em consequência do aumento da concentração dos gazes com efeito de estufa. Em 2º lugar o aumento da temperatura sobre a terra terá consequências muito imprevisíveis uma vez que as inter relações entre os diversos componentes dos ecossistemas podem amplificar os efeitos. Por último, como ainda não existe um mercado de carbono há que usar um preço fictício para estimar o valor monetário da Dívida do Carbono, valor que é pois discutível.
De qualquer forma têm sido feitos esforços para calcular a Dívida do Crabono, o que é útil para se ter uma ideia, ainda que aproximada, do seu montante e para se poder compará-la com o montante da dívida externa. Por exemplo, John Dillon, coordenador da Coligação Ecuménica para a Justiça Económica (ECEJ), em «Ecological Debt: South Tells North Time topay up», parte das recomendações do Grupo Intergovernamental sobre a Mudança Climática, que afirma que as emissões dos gazes com efeito de estufa terão de ser reduzidos em 60% em relação ao nível de 1990. Isto quer dizer que as emissões não poderão superar os 2,8 biliões de toneladas anuais de CO2 ( 0,4 toneladas per capita) e os países industrializados, que representam 20% da população mundial, terão direito a emitir apenas 0,56 biliões de toneladas. Ora como hoje emitem 3,5 biliões, a sua Dívida de carbono será a diferença entre esses dois números, isto é, 2,94 biliões de toneladas.
O valor sa Dívida de Carbono obtêm-se multiplicando esse número pelo preço de uma tonelada de CO2. Como ainda não existe ainda um mercado – e, além disso, o preço por tonelada de CO2, nos países que assinaram o Protocolo de Kioto dependerá da procura, e que depende da redução necessária – é necessário, por enquanto, fazer uma estimativa desse preço. A ECEJ utiliza 3 preços: 10 dólares por tonelada ( umpreço sugerido por alguns meios durante as negociações de Kioto), 12,5 dólares ( quantidade que o governo inglês supostamente pedirá para a quantidade de emissões que conseguirá reduzir, para além do objectivo a que se tinha proposto dos 8%), e 20 dólares ( o preço que o governo da Costa Rica, num projecto piloto de venda de bonos de aborção obtidos mediante a plantação de árvores). Usando esses preços, a Dívida do Carbono dos países do G7 é, respectivamente, de 15,5 , 19,3 , ou 30,9 biliões de dólares. Para se ter uma ideia da magnitude destas quantias, basta dizer que a dívida externa dos países pobres em 2001 somava a quantia de 2,3 biliões de dólares, segundo o Banco Mundia. Da comparação parece evidente que os países do Sul já pagaram há muito a sua dívida externa…
Pode-se ainda dizer que a lógica do conceito da Dívida Ecológica é diferente da que está na base do protocolo de Kioto. De facto, este Protocolo atribui quotas de redução das emissões partindo do nível das emissões de 1990: quem mais contaminasse em 1990 terá mais direito a contaminar no futuro. Pelo contrário, o conceito da Dívida ecológica implica que todos os habitantes da Terra tenham o direito à mesma quantidade de emissões, independentemente do local onde tenham nascido, assim como se segue a regra de que quem mais contamina é maior devedor em relação à humanidade.


Biopirataria


Outra parcela da Dívida Ecológica resulta da apropriação intelectual e da utilização do conhecimento ancestral relacionado com as sementes, o uso de plantas medicinais e outros conhecimentos sobre os quais se baseiam a biotecnologia e a indústria agrícola moderna. É o que se chama a biopirataria.
As características das distintas espécies de plantas e animais domésticos são o produto de uma história milenar de interacção entre elas, com o meio físico e com os seres humanos. As comunidades seleccionaram durante milhares de anos espécies para usá-las como alimento e para efeitos medicianis, e graças a essa interacção modificaram as caracterísitcas das espécies naturais, criando variedades diferentes com propriedades que só alguns grupos de pessoas conhecem. Este conhecimento é precioso para as empresas farmacêuticas, as empresas biotecnológicas e agrícolas, que os utilizam para obter enormes lucros, apesar de nada pagarem às populações locais que lhes propiciaram esses conhecimentos, e que são os verdadeiros proprietários desses conhecimentos.
Um exemplo de bipirataria produziu-se com a Nem – e que foi denunciado pela eco-feminista indiana Vandana Shiva. Esta árvore é usada há milhares de anos na Índia para obter produtos agroalimentares, farmacêuticos e cosméticos. Mas os produtos da Nem e o conhecimento sobre muitas das suas propriedades foram patenteados por certos investigadores e por algumas multinacionais dos países do Norte que obtiveram com isso enormes lucros que, no entanto, não aproveitam às populações indianas.

Tráfico de Resíduos

O sistema industrial produz uma grande quantidade de resíduos, com diferentes graus de toxicidade. Tratar desses resíduos torna-se dispendioso, e tais custos variam conforme as exigências normativas do países. Por essa razão, as empresas dos países do Norte acham rentável exportar tais resíduos tóxicos para os países onde a legislação ambiental é menos severa e, graças a essa menor severidade, desfazer-se desses resíduos.
Um exemplo é o transporte de resíduos eléctricos e electrónicos. Nos últimos anos, cerca de 80% dos aparelhos eléctricos e electrónicos recolhidos nos Estados Unidos para serem reciclados foram exportados para China, Índia e Paquistão, onde são tratdos sob condições altamente prejudiciais para a saúde humana através da incineração ao ar livre, criação de piscinas de ácidos, despejos incontrolados nas áreas rurais… Segundo um estudo da Agência de Protecção Ambiental norte-americana é 10 vezes mais económicos enviar um monitor para a Ásia do que ser reciclado nos Estados Unidos.

O Passivo Ambiental


O termo passivo deriva da linguagem económica. Na contabilidade de uma empresa o passivo é o conjunto de dívidas e ónus que reduzem o activo. Usado em termos ambientais, o termo refere-se ao conjunto de danos ambientais não compensados que as empresas transferem para a colectividade devido a incidentes ou devido ao seu normal funcionamento.
Quando uma empresa causa um dano à colectividade, a responsabilidade moral é clara, mas a sua responsabilidade jurídica depende do sistema legislativo.Frequentemente o contexto permissivo dos países do Sul levam as empresas a não considerar como custos – ou então, considerá-los como muito baixos - os danos ambientais que produzem, para alem de não se verem incentivadas a reduzi-los. Por isso é urgente a criação de uma legislação internacional sobre responsabilidade ambiental. A responsabilização constituiria um forte incentivo à redução dos danos ambientais, pois originaria uma internalização dos custos e dos riscos ambientais que provocarem, para além de ter como consequência a aceitação do princípio de que os recursos ambientais não são bens livres e gratuitos, mas têm um custo.

Quantificar a Dívida Ecológica?

Não se pode dar um valor monetário à Dívida Ecológica no seu conjunto. De facto, há dificuldades que se ligam a um grande número de danos ambientais produzidos desde a época do colonialismo até aos nossos dias que faz ser impossível o seu cálculo total.
Da mesma maneira, a complexidade das relações entre ecossistemas e a sociedade humana faz que seja difícil determinar com exactidão as consequências de uma dano ambiental. As interacções entre os elementos de dois sistemas podem amplificar em muito uma perturbação no equilíbrio inicial e levar a mudanças irreversíveis e imprevisíveis. A contaminação transmite-se e acumula-se ao longo da cadeia trófica e os factores que aumentam o risco são muitos, e às vezes interactuam entre eles, tendo efeitos a longo prazo. Por isso é que é muito difícil isolar o efeito de cada elemento contaminante e estabelecer uma relação linear de causa-efeito.
Por último, a avaliação monetária pode dar conta só de uma parte das perdas associadas com a Dívida Ecológica, mas ignora muitos outros aspectos dessas perdas. Por exemplo, os economistas usam vários métodos para estimar o valor económico de uma vida humana, usando por exemplo o custo-oportunidade de trabalho perdido ou o preço dos seguros de vida. Estes valores reflectem só uma parte das perdas associadas a uma morte, enquanto que muitos outros aspectos não podem ser expressos em termos monetários. Mais a mais, estas estimativas são sempre discutíveis. Porque dependem do rendimento.
Por todas estas razões é que não é possível compensar senão uma pequena parte da Dívida Ecológica. Em muitos casos as populações prejudicadas por uma empresas recusam discutir a quantia da indemnização. No entanto, ao nível empresarial e institucional é mais eficaz usar uma linguagem quantitativa e monetária. Por exemplo, comparar a Dívida Ecológica, expressa em valores monetários, com a dívida externa, pode ser muito útil para demonstrar como esta última já há muito que foi paga, e que são os países do Norte que devem aos do Sul, e não ao contrário. Por outro lado, a avaliação monetária dos danos ambientais é útil num contexto judicial: a compensação económica do dano pode ser a única maneira de que as vitimas serem ressarcidas, para além de constituir um poderoso acicate para as empresas tomarem precauções e reduzir os riscos de acidentes.
A quantificação monetária não é a única maneira de avaliar a Dívida Ecológica: podem-se ainda usar métodos de quantificação física. Alguns dos possíveis indicadores são os que se obtêm da análise dos fluxos de materiais, uma metodologia que consiste em somar todas as toneladas de matéria que entram e saem de um sistema económico. Acontece que um fluxo de materiais não é um indicador directo de contaminação ( um gramo de mercúrio contamina mais que uma tonelada de ferro), mas pode dar uma ideia da dimensão física de uma economia. Usando esta metodologia, podemos observar que, enquanto de um ponto de vista monetário, as importações europeias são aproximadamente iguais às exportações, em termos de peso a Europa importa aproximadamente quatro vezes mais do que aquilo que importa.
Isto quer dizer que as exportações europeias são muito mais caras que as importações, ou seja, que os ingressos obtidos pela venda de bens exportados pode ser utilizado para comprara quatro toneladas de bens importados. Por isso é que os países do Sul se vêm incentivados a vender uma quantidade crescente de bens primários, como combustíveis fósseis, metais, minerais, etc, que produzem muita contaminação e pouca riqueza, ao passo que os países do Norte se especializam em produtos mais elaborados, mais caros e menos contaminantes.
Concluindo, a Dívida Ecológica é um instrumento conceitual sintético e eficaz para tratar das relações injustas Norte-Sul, e um meio adequado para obter o reconhecimento do desequilíbrio no uso dos recursos naturais e na contaminação produzida, a prevenção, isto é, uma série de políticas ambientais e económicas que impeçam a produção de novas dívidas, assim como a reparação –monetária e política – e a compensação, na medida do possível, da dívida já criada e, finalmente, a abolição da dívida externa.

Autora do texto: Daniela Russi, elemento do Observatório da Dívida Ecológica

Texto retirado da revista «Ecologista» nº 42, Invierno 2004/2005, editada pelos Ecologistas en Acción

Heterodoxias versus dogmas


O melhor das igrejas é não pararem de fazer heterodoxos (Ernst Bloch)

Notícia de mais uma condenação inquisitorial da igreja católica, seguida de uma brevíssima história de alguns heréticos

A Congregação para a Doutrina da Fé condenou mais um teólogo, Juan José Tamayo Acosta, depois de já o ter feito recentemente com outros dois: Hans Kung, e Leonardo Boff.

O recém-condenado agradece a atenção de que foi alvo pela dita Congregação e confessa que nunca lhe passara pela cabeça que as altas instâncias eclesiais dessem tanta importância aos seus estudos e investigações, e acrescenta: " quantos colegas meus não gostariam de ser objecto de apreciação por parte de Roma, mas a verdade é que não conseguem. E eu, que sou um teólogo livre por opção e convicção desde os meus anos de juventude, eu que não pertenço ao clero, nem dependo de nenhum bispo, nem sequer ensino em qualquer santuário da dogmática católica, eu simples teólogo é que me foram escolher para ser estudado e avaliado pelas mais altas instâncias eclesiais do Vaticano"

Com ele contam-se muitos outros teólogos malditos: desde logo, Jesus de Nazaré, judeu, crítico da sua religião (o judaísmo), criador de um cisma que levou à fundação de um novo movimento: o cristianismo.; Arrio (256-336) que para salvar o monoteísmo cristão defendeu sem sucesso que Jesus não podia ser Deus( acabou por ser condenado em 325 no Concílio de Nicea, convocado pelo Imperador Constantino no seu palácio de Verão); Nestorio, patriarca de Constantinopla, que tentou mostrar que Maria não podia ser mãe de Deus mas simplesmente de Jesus, o que lhe valeu imediatamente uma condenação e expulsão da Igreja, tendo morrido exilado no deserto do Egipto; Prisciliano(350-384), bispo de Ávila, levava uma vida ascética de grande rigor o que lhe valeu a acusação de conduta imoral e de magia, tendo tido o privilégio de ter sido o primeiro herético a ser aplicada a pena de morte; foi também considerado subversiva a obra de Joaquin de Fiore, eremita de Calabria, visionário apocalíptico que anunciara a utopia da Era do Espírito.

Não faltaram também mulheres acusadas de heresia como foi o caso de Guillerma de Boehemia (morta em 1281), venerada pelos seus próximos, o que, no entanto, não impediu de ser acusada, condenada, e como, entretanto, falecera, o seu cadáver teve de ser desenterrado para poder ser queimado publicamente. Juan Hus (1369-1415), reitor da Universidade de Praga, pessoa religiosa e de moral intocável, teve a ousadia de criticar com dureza o clero e os bispos ricos a quem questionou a sua piedade superficial, defendendo uma Igreja desligada do poder temporal. Chamado ao Concílio de Constanza com uma promessa de imunidade, foi-lhe esta retirada mal chegou ao local da reunião. Condenado por heresia foi entregue às mãos do Imperador Segismundo que o torturou até à morte por inalação de fumos venenosos.

Lutero (1483-1546) critica a Igreja que vendia a salvação a preço de ouro, tendo lançado o movimento conhecido por Reforma Protestante. Um Papa logo excomungou-o, mas passados quase 5 séculos depois, outro Papa (João Paulo II) pediu-lhe perdão pela condenação.

O cientista Giordano Bruno (1544-1600), preso pela Inquisição foi queimado vivo na fogueira. Galileo Galilei teve de comparecer junto do Tribunal da Santa Inquisição e sua teoria científica foi considerada herética. O Místico Juan de la Cruz (1542-1491) foi perseguido, preso e caluniado. Não obstante, foi canonizado em 1726, tendo sido considerado doutor da Igreja em 1926.

Outros teólogos mais modernistas não tiveram melhor sorte. Um deles, Alfred Loisy (1857-1940) teve esta frase lapidar: "Jesus predicava um Reino, e afinal apareceu-nos a Igreja"

(texto baseado num texto e informação publicada no El País de 11 de janeiro de 2003)

29.3.05

O automóvel e a destruição planetária

Depois de conhecermos um período de guerra fria entre 1945 e 1990 baseado no espectro da destruição nuclear do planeta, nós entramos desde então num período de guerra quente caracterizado pela ameaça da destruição do planeta pelo automóvel.

Esta guerra quente caracteriza-se pelo desenvolvimento massivo do uso do automóvel à escala planetária, pelo imparável aquecimento climático mundial, pela intensa corrida ao domínio das matérias-primas ( como o petróleo), pela pilhagem e esgotamento dos recursos petrolíferos e pelas guerras de conquista e de controle sobre as reservas petrolíferas.



A massificação planetária do automóvel

O modelo ocidental do automóvel individual generalizou-se à escala mundial desde os anos 90. Enquanto a taxa de motorização ( nº de viaturas por 1000 habitantes) continua a progredir nos países ocidentais desde 1990, ela explode nos países em vias de desenvolvimento, em particular, na China e na Índia. A taxa de motorização na China multiplicou-se por três entre 1990 e 2003, e o mesmo aconteceu na índia entre os anos de 1985 e 2002. É certo que essas taxas de motorização ainda são relativamente fracas comparadas com as dos países ocidentais ( 15 viaturas/ 1000 habitantes na China, enquanto em França a taxa é de 600/1000, e nos Estados Unidos atinge 800/1000), mas elas estão em franca progressão e tal acontece em países fortemente povoados.

A triplicação da taxa de motorização chinesa entre 1990 e 2003 fez aumentar o parque automóvel de viaturas particulares de cerca de 15 milhões de unidades . Uma nova triplicação dessa taxa no período entre 2005 e 2020 provocará umnovo aumento do parque mundial de mais 50 mil carros…

Um estudo feito sobre os países do leste mostra que entre 1990 e 1998 o número total de viaturas em 10 desses países passou de 14,7 a 23,1 milhões, ou seja, um aumento de 57%. A taxa de motorização média desses países era três vezes menos à da França. Imagine-se agora quais serão as taxas de progressão desses países num mais que previsível contexto de integração acelerada no modelo de desenvolvimento oeste europeu.

Com um parque automóvel mundial de cerca de 500 milhões de viaturas em 1999, as estimativas mais razoáveis apontam para uma duplicação desses números em 2020, isto é, para cerca de mil milhões de automóveis sobre o planeta.

Segundo Jean-Marie Revaz,, presidente do Salão Automóvel de Genebra, «cerca de 600 milhões de viaturas individuais circulam cada dia na superfície terrestre e 42 milhões de novos carros são produzidos cada ano»

Se,por hipótese, o conjunto da humanidade fosse equipada como os franceses, então teríamos cerca de 3 mil milhões de automóveis a circular no planeta, o que certamente significaria uma rápida destruição do planeta pela poluição causada, por força do esgotamento das matérias primas, do espaço e até por razões de segurança.

O aquecimento climático acelerado

Segundo um grupo de especialistas reunidos sob a égide da ONU, a temperatura média mundial aumentou de 0,6 graus no século XX.

Desde o fim do século XIX observa-se igualmente uma subida do nível dos oceanos de 10 a 20 cm. A década de 990 foi a mais quente de todas nos últimos 150 anos no hemisfério norte e o ano de 1998 foi o ano mais quente de todos desde que há registos ( 1861), seguido de psero pelos anos de 2002,2003 e 2004.


Os factores naturais ( raios solares, vulcões) não podem por si sós explicar o aquecimento do planeta. No seu terceiro relatório científico (2001), o Grupo de especialistas intergovernamental sobre a evolução do clima (GIEC) confirma a influência do homem sobre o clima. A maior parte do aquecimento, observado nos últimos cinquenta anos, provêm do aumento das emissões de gás produzido pelas actividades humanas, à frente das quais se encontram os transportes.


Na ausência de uma redução das emissões antrópicas do gás com efeito na atmosfera, o GIEC estima que a temperatura mundial média arrisca-se a aumentar de 1,4 a 5,8 ºC entre 1990 e 2010. Cetas projecções falam mesmo de um aumento de cerca de 10ºC

Segundo os últimos estudos realizados pelo centro de meteorologia francesa, o termómetro poderá elevar-se de 4 a 7 graus em média no Verão em França durante o período 2070-2100, tornando a canícula sentida no ano de 2003 como «um Verão frio».

Segundo o site Photeus o transporte é de longe o responsável nº1 do aquecimento climático, representando 29% da emissões de gás em 2002.

Na realidade, 160 milhões de toneladas de CO2 é a contribuição anual dos transportes franceses para o efeito de aquecimento global, num total de 554 milhões de toneladas (consultar:
http://www.ifen.fr/ )

O aquecimento climático projectado para o século XXI arrisca-se a provocar um aumento contínuo das águas, o que terá um forte impacte nas regiões costeiras mundiais., isto é, nas regiões mais povoadas do planeta, gerando fortíssimas tensões obre a ocupação do espaço. Prevê-se igualmente o desaparecimento de espécies vegetais e animais. As quantidades de água potável arriscam-se a diminuir provocando aumento a probabilidade de conflitos sobre a sua apropriação e controle. A «guerra quente» será também uma guerra pela água.

Os países desenvolvidos desenvolverão estratégias de protecção, como o desenvolvimento massivo da climatização ( em particular, nos automóveis), o que contribuirá ainda mais para a aceleração mundial do fenómeno do aquecimento climático.

O protocolo de Kioto não vai mudar nada. O seu impacte será pequeno num plano estritamente científico. Com a adesão dos Estados Unidos a diminuição da temperatura seria atenuada em 0,06 ºC (AFP). Ora nem sequer os Estados Unidos nem ainda os países do Sul com forte crescimento económico assinaram o protocolo.

Uma das consequências do aquecimento climático é o desaparecimento progressivo dos glaciares, já iniciado. Face a este problema apareceram soluções ridículas como a sua embalagem para se protegerem dos raios solares(
http://permanent.nouvelobs.com/sciences/20050322.OBS1894.html ). Mas esta solução, com um custo de 60.000 euros para cobrir apenas 3.000m2 de gelo, só ilustra a loucura dos homens e a falta de senso das nossas sociedade civilizadas. No fundo, trata-se de mais uma solução fornecida pelo mercado capitalista a um problema ambiental global o que mostra mais uma vez, tal como o desenvolvimento da climatização , que a mão invisível do mercado mais não é um imperialismo ecológico baseado na pilhagem e na destruição do planeta.

A pilhagem dos recursos naturais ou «a economia do suicídio»

Segundo os Amigos da Terra, o aquecimento climático gerado pelas emissões excessivas de dióxido de carbono para a atmosfera tem tido efeitos desastrosos como a mudança dos ciclos das estações, as inundações, os furacões, a subida das águas dos oceanos, que são já perceptíveis. A poluição do nosso ambiente, a extracção dos recursos naturais são factos devidos a um modelo de desenvolvimento que só aproveita para uma minoria em prejuízo da grande maioria dos seres humanos.

Ora o crescimento acelerado de certos países do Sul provoca a pilhagem ainda mais intensa dos recursos naturais. Segundo Françoise Lemoine, economista no CEPII (Centre d'Etudes prospectives et d'informations internationales), o crescimento explosivo da China começa a traduzir-se por problemas de «aprovisionamento de matérias primas, nomeadamente em energia. A China não é rica em matérias-primas e o seu crescimento não tem nada de económico. Por consequência, o desenvolvimento económico do país faz-se em prejuízo do ambiente. Com efeito, a China é p segundo produtor mundial de gás com efeito de estufa depois dos Estados Unidos. E se continuar a este ritmo, as pressões sobre as matérias primas ainda mais se vão intensificar» (
http://www.lexpansion.fr/art/15.0.129678.0.html )

Já hoje a corrida às principais matérias primas industriais ( alumínio, aço, cobre, etc) conhece tensões importantes no mercado mundial, por efeito do aumento da procura induzido pelo crescimento económico chinês, e as deslocalizações industriais das multinacionais ocidentais só pioram o panorama.

Apesar das discussões entre os especialistas acerca da exacta data do Pico de Hubbert, o consumo do petróleo conhece uma aceleração sem precedentes o os preços do petróleo batem sucessivos records. A OPEP ( Organização dos países Exportadores de Petróleo) parece não controlar a situação, não dispondo de margem de manobra uma vez que já está a produzir no máximo das suas capacidades( consultar para mais informações
http://www.liberation.fr/page.php?Article=283202).

Para satisfazer esta «fome de petróleo sem fim», os Estados Unidos já decidiram avançar para a exploração petrolífera numa sua reserva natural, como é o Alaska, para produzir um total de 1 milhão de barris/dia, ou seja, 1/8= do consumo mundial diário de petróleo em 2003 ( cerca de 80 milhões de barris/dia)
( consultar:
http://radio-canada.ca/International/014-petrole-alaska.shtml)
A fim de satisfazer o crescimento explosivo da motorização na Chuna, o consumo chinês de petróleo aumentou em 2004 ao ritmo espectacular de 14% ( consultar : http://www.lariposte.com/22/enjeu_petrole.htm)
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Este imperialismo ecológico, como todo o imperialismo, está baseado no princípio da destruição total. A pseuda-regulação da oferta e da procura parece não ser capaz de atenuar esta corrida às matérias primas. A escassez progressiva da oferta face a uma procura cada vez maior levara logicamente a uma intensificação da corrida às matérias primas. Os ganhos de produtividade e os progressos tecnológicos permitirão pilhar cada vez mais a um baixo custo dentro de limites aceitáveis para as economias já sobreaquecidas e dispostas a pagar caro o custo global da energia.
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A guerra quente ou as novas guerras de conquistas.
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No plano militar, este imperialismo ecológico não se substitui ao imperialismo mais clássico, que foi responsável pela mais pura tradição neo-colonial. Mas torna-se o motor de novas guerras de conquistas, baseadas na procura do controle das reservas petrolíferas. As duas últimas guerras do Golfo são bem a ilustração perfeita desta nova orientação petro-estratégica. A ideologia da guerra fria é substituída pela economia da guerra quente.
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«Neste contexto, com 10% das reservas mundiais, o Iraque tornou-se o alvo das ambições americanas. Todavia, o Iraque não pode, com as possibilidades tecnológicas e financeiras ao seu dispor, desenvolver a sua produção a um nível satisfatório para os interesses norte-americanos. Por isso é que a privatização do petróleo iraquiano e a sua exploração por empresas americanas foi um dos objectivos de guerra dos Estados Unidos. No fundo, trata-se de enfraquecer e dobrar a OPEP, eterna inimiga, e do seu sistema de quotas.
Contudo, os acontecimentos no Iraque mostram-nos que os objectivos americanos não são fáceis de serem alcançados, e muito menos por via da Venezuela. Tendo em conta a evolução da guerra no Iraque, e mesmo supondo que os Estados Unidos conseguissem manterem-se por lá durante algum tempo, é muito duvidoso que conseguissem gerir a produção petrolífera do país a ponto de mudar significativamente a oferta mundial. O Iraque não será solução para os problemas energética norte-americanos.» (
http://www.lariposte.com/22/enjeu_petrole.htm)
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Quais serão os próximos alvos da administração norte-americana no objectivo de alimentar os depósitos das viaturas do automobilismo mundial? O Irão está na lista dos «estados-canalhas» o que não é surpresa alguma se pensarmos que é quinta maior reserva de petróleo bruto no mundo (
http://www.strategicsinternational.com/f5sabahi.htm)
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Mas a surpresa pode bem vir da Arábia Saudita que já começa a ser acusada de financiar o terrorismo internacional, tendo em conta o facto de dispor de importantes reservas de hidrocarbonetos do mundo. Tanto mais que, sob a ameaça de uma destruição das suas instalações petrolíferas pela Al Quaida, o país pode ser o próximo a receber um «intervenção preventiva» dos USA destinada a garantir a estabilidade do fornecimento mundial de petróleo. ( consultar para mais informações : http://www.digitalcongo.net/fullstory.php?id=50661)
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A Administração norte-americana é cada vez vez mais, não o polícia do mundo, mais o pirómano do planeta…
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Enquanto a guerra fria estava baseada no nuclear, a guerra quente baseia-se fundamentalmente no automóvel e no seu uso massivo à escala planetária. O automóvel individual caracteriza o modo de vida ocidental, em expansão rápida pelo resto do planeta, e que está baseado na pilhagem acelerada dos recursos naturais, muito especialmente dos hidrocarbonetos. Ora o que já é dificilmente sustentável à escala do Ocidente, torna-se simplesmente impossível à escala planetária. As primeiras petro-guerras e a exploração do petróleo no seio de santuários ecológicos, a poluição crescente e o aquecimento climático previsto, as tensões actuais na corrida às matérias primas e a pilhagem acelerada das reservas mundiais são sinais visíveis de uma destruição programada do planeta pela «civilização do automóvel»


Autor : Marcel Robert

Bibliografia :
* ALLAIRE J., La motorisation du transport de personnes en Chine, entre croissance économique et soutenabilité, Cahier de Recherche LEPII n°34, janvier 2004. * OUDIN J., POLITIQUE DES TRANSPORTS : L'EUROPE EN RETARD, RAPPORT D'INFORMATION 300 (2000-2001) - DELEGATION DU SENAT POUR L'UNION EUROPEENNE
http://www.senat.fr/ *DUPUY G., La dépendance automobile, Economica, Paris, 1999. *Conférence Voiture et Cité du 24 avril 2002, http://www.e-mobile.ch/

O acidente nuclear de Three Mile Island foi há 26 anos




A unidade 2 da central nuclear da Ilha de Three Mile situada a 16 km da cidade de Harrisburg ( com uma população de 70.000 habitantes) na Pensilvânia, sofreu uma grave acidente em 28 de Março de 1979.
Uma pequena fuga no gerador de vapor desencadeou o mais grave acidente na histórias das centrais nucleares norte-americanas, e o segundo mais grave na história da energia nuclear. As causas foram atribuídas ao projecto de desenho daquelas instalações.

A perda de refrigerante ocasionou um aumento da temperatura do núcleo que acabou por fundir-se provocando o derrame de material radioactivo e a formação de uma perigosa bolha de hidrogénio que ameaçava a todo o momento explodir e lançar pelos ares toneladas de material radioactivo. Para evitar a explosão foi decidido libertar uma quantidade indeterminada de gás radioactivo que afectou toda a região.

As consequências do acidente sobre a saúde da população são ainda hoje objecto de discussão e polémica, tanto mais que se tornou difícil avaliar as doses de radioactividade a que as populações estiveram expostas. As acções de emergência fotam claramente insuficientes pois acabaram por se traduzir na evacuação de mulheres grávidas e de crianças num raio de 8 milhas à volta do local do acidente somente dois dias depois dos factos!!! Foi, entretanto, detectado um aumento de más formações congénitas e de cancros nos anos seguintes.

O acidente de Harrisburg representou o declínio da energia nuclear em todo o mundo. Por um lado, aquele acidente demonstrou que as centrais nucleares eram inseguras, o que aumentou a oposição social às instalações nucleares de produção de energia, e, por outro lado, os custos pelas medidas de segurança adoptadas desde então tornaram pouco lucrativas as empresas proprietárias das centrais nucleares.

Infelizmente as lições a retirar do acidente de Harrisburg não foram suficientes para impedir o maior acidente nuclear da história em Tchernobil, na Ucrânia, em 1986.

«The Day after» é o nome de um filme, entretanto, realizado, inspirado naqueles acontecimentos, e que sensibilizou ainda mais para os perigos da energia nuclear.


NUCLEAR?
NÃO, OBRIGADO

O 40º aniversário do primeiro Teach-in



Realizou-se uma reunião geral entre os estudantes, elementos da faculdade e da comunidade educativa na passada quinta-feira ( 24 de Março) em Angell Hall na Universidade de Michigan em comemoração do primeiro teach-in que teve lugar em 1965 naquele local.

Estudantes, elementos da faculdade e da comunidade educativa , e os presentes do primeiro teach-in comemoraram o 40º Aniversário do Teach-in realizando um encontro cujo objectivo foi a Análise do Império americano no mesmo local em que realizou o primeiro teach-in, no Angell Hall da Universidade de Michigan, Ann Arbor. Vários foram também os convidados a assistir. O teach-in incluiu uma intervenção introdutória por Al DeFreece, Rich Feldman, e Tom Hayden.
Realizou-se a seguir seminários e workshops sobre os seguintes tópicos:
-- A hegemonia Económica americana e a globalização
--A Guerra no Iraque; O 11 de Setembro; A Guerra do Terror,
-- Os Media
--Raça e Racismo como uma Justificação do Império
--As mulheres e o Império
-- As Corporações e a Cultura de Massas
--O Conflito palestino: Porque é que é incómodo discutir isto?
--O Ambiente e as Transformações Globais
--O Futuro de Activismo

Nestes Seminários e workshops participaram vários membros da comunidade escolar e da faculdade e coordenados por um moderador. O evento também incluiu uma parte para as artes e música, comida livre, mesas-redondas sobre a vida estudantil e da comunidade e a construção de uma parede com pontos que mostravam a conexão entre os vários pontos do Império Americano. O teach-in culminou com um convívio à meia-noite
Curisamente a administração universitária negou-se a apoiar este Teach-in comemorativo cedendo gratuitamente as instalações, o que, no entanto, aconteceu em 1965 nas comemorações do 30º aniversário do Teach-in em 1965. Eles justificaram-se dizendo que as circunstâncias mudaram mas não explicaram a sua recusa de apoio

Mais informações:
www.teachin2005.org

Edições recentes ( a ler)

«A Praia sob a calçada, Maio 68 e a Geração de 60», por Fernando Pereira Marques, edições Âncora

«História do Ateísmo», por Georges Minois, ed. Teorema

«Dimensões Culturais da Globalização», por Arjun Appadurai, ed. Teorema

«Globalização, Transnacionalismo e novos fluxos migratórios, dos trabalhadores convidados às migrações globais», por Stephen Castles, ed. Fim do Século

«Ecologia profunda», por Bill Devall, por George Sessions, edições Sempre-em-pé

«Construir a Esperança, pessoas e povos desafiam a globalização», por John Feffer, edições Sempre-em-pé

«Na Terra dos Sonhos«, antologia de letras de Jorge Palma, edições Quasi

«Uma visita a Portugal em 1866», por Hans Christian Andersen, edições Galivro

Ulisses ( personagem principal da Odisseia, de Homero)




Ulisses nasceu numa ilha situada no Adriático, diante da costa noroeste da Grécia. A ilha chama-se Ítaca, e eleva-se, escarpada, montanhosa e árida, no meio do mar. O seu pai era Laertes e a sua mãe Anticleia. Os textos não nos falam da sua infância, mas sabe-se que, durante a sua juventude, fez várias viagens ao continente.
Passada a adolescência recebe do velho Laertes o trono de Ítaca. Na sua qualidade de rei quis casar-se . Pensou em obter a mão de Helena, a futura mulher de Menelau e causa da guerra de Tróia, mas Helena era muito bonita e não faltavam pretendentes. Começou então a imaginar outros planos. Aconselhou Tíndaro, o pai de Helena, a exigir dos pretendentes que aceitassem a escolha, qualquer que ela fosse, do futuro esposo, e ajudassem a manter unido o casal.
A guerra de Tróia durará dez anos e dizimará, com pesadas baixas, ambas as partes: os gregos e os troianos. Ulisses tanto será um guerreiro como desempenhará missão delicada do diplomata. Será Ulisses que será enviado por Agamémnon a convencer Aquiles a tomar parte na luta, quando este, ofendido pela atitude do chefe de todos os gregos, que lhe roubara Briseida, se decidira a não combater ao lado dos seus compatriotas. Será também Ulisses que comandará o grupo de guerreiros que, escondido no ventre bojudo de um gigantesco cavalo de madeira, penetrará na cidadela de Príamo. Destruída esta, e acabada a razão de ser da guerra, Ulisses tem a mesma vontade que todos os restantes chefes gregos: regressar à sua terra natal.
Depois de algumas dificuldades, consegue finalmente fazer-se ao mar, onde vai começar a grande série de aventuras em que, sem querer, se verá envolvido.
Já vivera algumas peripécias aventurosas quando chega a uma ilha arborizada e fértil, onde se viam cabras selvagens a pastar. Aportou a terra, encalhou todas as embarcações, menos uma com a qual foi explorar a costa de uma ilha que se postava à sua frente. Viviam nesta os cruéis e monstros Ciclopes, assim chamados por terem, na testa, um único olho redondo. Estes monstros canibais que outrora tinham sido ferreiros dos deuses, dedicavam-se agora à pastorícia de enormes rebanhos. Depois de algumas marchas de reconhecimento, Ulisses, sem o saber, entrou numa enorme caverna, onde vivia Polifemo, o Ciclope. Aí se instalaram os gregos, que acenderam um forte fogo, e nele assaram alguns cordeiros que encontraram na caverna. Ao petisco juntaram o queijo que também tinham encontrado na caverna e começaram o festim. Já pela tarde, entrou Polifemo com o seu rebanho e pôs na entrada uma enorme pedra de proporções gigantescas, que só a sua força ciclópica podia erguer. Sem ter visto os estrangeiros, começou a ordenhar as ovelhas até ao momento em que se lhe depararam Ulisses e os companheiros . Espantado, perguntou o monstro o que faziam e donde vinham, ao que Ulisses respondeu com um pequeno discurso de apresentação, sem dizer, contudo, o principal. A resposta de Polifemo foi agarrar dois dos marinheiros pelos pés, levantá-los ao ar, batê-los contra a parede e devorá-los ainda palpitantes.
Depois de jantar, Polifemo deitou-se a dormir. Ulisses, por seu lado, bem queria tirar a desforra do Ciclope, mas não se atrevia a matá-lo, porque só este seria capaz de levantar a pedra que fechava a entrada. Veio a manhã, Polifemo levantou-se e comeu mais dois marinheiros gregos ao pequeno almoço. Saiu finalmente com o rebanho, depois de, cuidadosamente, ter fechado a caverna. Mas esta tinha sido fechada, já Ulisses pensava na maneira de se livrar de Polifemo. Preparou então um tronco verde de oliveira, cuja ponta endureceu ao lume. Com ele pensava Ulisses cegar o monstro. Ao chegar a noite, voltou Polifemo que comeu logo mais dois dos gregos. Ulisses então ofereceu-lhe uma tijela de vinho, daquele mesmo vinho que Máron lhe tinha dado em Ísmaro dos Cícones.O gigante bebeu, gostou e pediu mais, até que, desconhecendo totalmente os perigos daquela bebida, caiu num sono profundo. Mas antes de adormecer e encantado com o vinho perguntou a Ulisses como se chamava. Respondeu-lhe Ulisses: « O meu nome é Ninguém». Polifemo diz-lhe então, como que prometendo um favor:«Pois bem, Ninguém, meu amigo, serás tu o último a ser comido.»
Logo que o Ciclope adormecer, Ulisses e os companheiros que restavam pegaram no tronco já preparado e puderam a sua ponta ao lume da lareira, de modo a que ficasse incandescente. Quando a ponta já brilhava na escuridão da caverna, aproximaram-se do gigante e meteram-lhe a terrível arma no único olho da testa. Polifemo, ao sentir-se cego e, sobretudo, ao sentir a dor cruciante, deu um tal grito que fez acorrer, dos vales vizinhos, os ciclopes que ali viviam. Mas quando estes, chegando à porta da caverna, lhe perguntaram o que se passava, Polifemo respondia-lhes que «a culpa era de Ninguém». Assim os ciclopes, pensando que Polifemo estava doente e delirante, retiraram-se.
Polifemo, todavia, dirige-se tacteando para a porta e retirou a pedra, pois esperava que Ulisses, contente com a fácil vitória, tentasse agora fugir e lhe viesse cair às mãos. Mas Ulisses, ardiloso, sabia esperar: atou os companheiros aos ventres das grandes ovelhas do gigante e ele próprio prendeu-se, como pôde, ao ventre de um enorme carneiro. Já vinha a manhã e Polifemo, cansado de esperar pelos estrangeiros, que não vinham, levou o rebanho a pastar e com ele os marinheiros e Ulisses. Assim que este conseguiu desprender os companheiros, todos fugiram para o navio que estava encalhado na praia, e partiram, remando vigorosamente. Ulisses, ao ver que o perigo estava lá ao longe, lançou uma grande gargalhada, gritando a Polifemo que ele tinha tido junto de si não o «Ninguém», mas «Ulisses de Ítaca». O monstro, em resposta, lançou pelo ar uma pedra de proporções ciclópicas, que por pouco não afundou o navio de Ulisses, e pediu, ao mesmo tempo, a seu pai, Posídon, o deus do mar, que castigasse Ulisses. Posídon ouviu a prece do filho e tudo fará para perder o herói.
Ulisses, agora, irá buscar o resto da sua frota à ilha vizinha. Por fim, põe-se Ulisses ao mar novamente e a vingança de Posídon não se fez esperar. Depois de ter aportado à ilha de Eolo, guardador dos ventos, e depois de ter sido bem recebido por este, vai Ulisses a caminho da Ítaca. Eolo tinha-lhe dado, como presente, um odre cheio de ventos, dos quais Ulisses faria uso quando quisesse. Já se viam os telhados de Ítaca e o fumo das chaminés, quando Ulisses caiu exausto de sono e de fadiga. Um dos companheiros abriu então o odre, julgando encontrar nele o vinho. Soltam-se os ventos e logo terrível tempestade vem assolar a região de Ítaca e lançar para muito longe o barco de Ulisses. Depois de várias peripécias, chega Ulisses, perseguido pela ira de Posídon, ao reino dos Lestrigões na Sicília, ou, segundo outros, em Fórmias, no Sul de Itália. Não sabendo a que terra tinha chegado, mandou Ulisses encalhar as embarcações sobre a praia e enviou ao interior, em reconhecimento, alguns homens. Quando os Lestrigões, porém, os viram, vieram em hordas sobre as falésias onde os barcos de Ulisses estavam encalhados e do alto delas destruíam os navios com grandes pedras. Depois, desceram à praia e massacraram as tripulações, que devoraram. Só Ulisses logrou escapar com alguns camaradas e um só barco, após ter cortado a amarra com a sua espada.
Mais alguns dias de mar e eis que chegou Ulisses à ilha da Aurora, governada por Circe, a feiticeira. Era esta experimentada em todo o género de encanto e desconfiada, por natureza, do género humano. Transformou em porcos os 22 homens de Ulisses e foi preciso que este se munisse de um amuleto do deus Hermes para obrigar Circe a restituir aos companheiros a forma humana. Entretanto, apaixonou-se este por Ulisses, que não resistiu à sua beleza e vivei com ela alguns anos, até que, fatigado de estar na mesma ilha, pediu à própria feiticeira que o deixasse fugir. Consentiu esta na vontade de Ulisses, mas primeiramente exigiu dele a promessa de ir ao inferno. Para aí se dirigiu, pois o herói, seguindo, conforme indicou a feiticeira, o vento norte e as correntes do oceano até chegar à entrada do Aqueronte, que é o rio principal do Hades, do inferno. Depois de alguns sacrifícios aos deuses, entrou Ulisses no próprio Hades e percorreu o reino das sombras, no meio das quais encontrou velhos companheiros que tinham morrido na guerra, como Aquiles, e outros que tinham sido assassinados no regresso à pátria, como Agamémnon. Cumprida esta missão, voltou Ulisses à ilha de Circe e daí partiu novamente , depois de ter ouvido os conselhos da deusa, que o pôs de sobreaviso quanto às Sereias, por cuja ilha ele iria passar. Deste modo, quando Ulisses se fez ao mar e sentiu que se aproximava da ilha das Sereias, não se esqueceu das recomendações de Circe. Efectivamente, as Sereias, seres híbridos, formados de busto de mulher e corpo de peixe, cantavam de tal modo que fascinavam os mareantes, que, esquecendo tudo, iam em sua busca, acabando por se precipitar nos escolhos que se erguiam na costa daquela ilha. Por isso, Ulisses, quando as entendeu, ao longe, mandou que os seus homens tapassem os ouvidos com cera e que o prendessem ao mastro do navio de modo a que, no meio do encantamento, não levasse o barco contra os escolhos. Assim escapou Ulisses do cantar das Sereias e seguidamente escapará também dos dois monstros do estreito de Messina, Cila e Caríbdis.
Após ter abordado à Sicília, e devido a um sacrilégio, destrói-lhe Zeus o navio e a tripulação. Ulisses a custo chega à ilha Ogígia, onde viverá sete anos, acompanhado pela ninfa Calipso, a cujos encantos só logrará escapar quando Zeus, o pai dos deuses, lhe permita que construa uma jangada e se ponha, outra vez, a caminho de Ítaca.
Mas Posídon sabia tudo o que se passava no mar, e também soube que Ulisses se metera novamente a caminho. Encolerizado com tanta audácia, levantou uma tal tempestade que Ulisses andou dias e noites balançando pelas vagas, perdeu a jangada, e fo lançado, completamente exausto, e já sem quaisquer meios, à praia da ilha dos Feaces.
Estava Ulisses dormindo profundamente, quando se aproximam doze raparigas, que acompanhavam Nausícaa, a filha do rei Alcínoo, senhor da ilha. Tinham acabado de lavar a roupa, num ribeiro próximo, e agora divertiam-se a jogar à bola. Nausícaa, porém, afastou-se das companheiras e, ao chegar à praia, encontrou Ulisses, que acordou sobressaltado e nu. Cobriu-se com um ramo denso de oliveira, e, vendo que a jovem o tratava como amigo, seguiu-a em direcção do palácio real. Aí o receberam Alcínoo e Arete, sua mulher, que deram um festim em sua honra. Ulisses, perante tão grande generosidade, deu-se a conhecer e contou grande parte das suas aventuras.Bem teriam querido os reis casar Nausícaa com Ulisses, mas este declinou a oferta, pedindo tão-somente que lhe dessem um navio que o transportasse a Ítaca. Foi-lhe concedido o navio e Ulisses chegou finalmente à ilha, que ficava perto. Contudo, já tantos anos tinham passado que Ulisses nem sequer conhecia a ilha onde tinha chegado. De facto, depois de tanto tempo, todos os habitantes de Ítaca, súbditos de Ulisses, o julgavam morto. Todos menos Penélope e Telémaco, que ainda tinham alguma esperança.
Na verdade, muitos acontecimentos se tinham dado na ausência de Ulisses. Como este fosse julgado morto, muitos jovens príncipes, insolentes e brutais, apresentaram-se no palácio real, como pretendentes à mão de Penélope e, bem entendido, ao trono da ilha. Entretanto, esvaziavam os celeiros e dizimavam os gados, passando o tempo de espera em contínuos banquetes. E isto porque Penélope os obrigava a esperar, prometendo que no dia em que terminasse a mortalha para Laertes ( que ainda vivia), nesse mesmo dia, se faria a boda com o pretendente escolhido. Mas, com um ardil de mulher, a parte da mortalha que tecia durante o dia, desfazia de noite. E assim se manteve durante três anos. Nesta altura, porém, já os pretendentes estavam a perder paciência e tinham decidido matar Telémaco, quando este voltasse de Esparta, aonde tinha ido saber notícias de Ulisses.
Eis o ambiente que Ulisses sentiu, quando, depois de desembarcar, se dirigiu a casa do seu antigo porqueiro Eumeu. Sem se dar a conhecer, mas contando histórias ligadas a Ulisses, o herói ouviu de Eumeu tudo o que se passava. Entretanto, chegou Telémaco à casa do porqueiro, depois de ter conseguido escapar à morte preparada pelos pretendentes. Telémaco, todavia, não conheceu o homem que estava diante dele. Como poderia conhecer ele o pai, que, ainda Telémaco criança, partiu para Tróia e nunca mais voltara? É Ulisses que finalmente se dá a conhecer ao filho, nada dizendo, contudo, a Eumeu. Telémaco põe o pai ao corrente do perigo que os ameaçava e Ulisses decide partir imediatamente para o palácio, disfarçado de mendigo. Ao chegar ao palácio real, o primeiro ser que encontra é o seu velho cão Argos, que imediatamente o reconhece e logo morre de velhice e emoção. A fidelidade do cão comove-o, mas Ulisses tem muito a fazer e com Eumeu penetra no palácio, ou, mais precisamente, na sala de banquete, onde Telémaco, fingindo não o conhecer, recebe o pai, que está envolto de andrajos de mendigo. Todos os pretendentes estavam reunidos na sala e logo um deles o mais poderoso, Alcínoo de Ítaca, trata mal o mendigo que Telémaco recebera. Ulisses não se mostra ofendido, mas Penélope, sabendo do caso, manda chamar aquele que pensa ser um simples mendigo. Este, porém, faz os preparativos para aniquilar os pretendentes e manda Telémaco que retire todas as armas que estão penduradas na sala. Só então se dirige aos aposentos de Penélope, que, naturalmente, o não reconhecera ,muito embora o heróis lhe conte que Ulisses em breve voltará. É Euricleia, a ama de Ulisses, que o reconhece quando, ao lavar-lhe os pés, vê a cicatriz que outrora Ulisses tinha feito na caça ao javali. Mas Ulisses não a deixa comunicar o reconhecimento.
No dia seguinte, dá Penélope um grande banquete, durante o qual prometera decidir qual dos pretendentes escolherá para marido. Escolhido só poderá ser oque for capaz de dobrar o arco de Ulisses e meter uma seta entre doze anéis formados pelos orifícios de doze machados alinhados a seguir. Quando chega o momento nenhum dos pretendentes consegue dobrar o formidável arco de Ulisses, até que este, apoderando-se da arma, envia a seta por entre os doze anéis. Há grande espanto e grande fúria entre os pretendentes, mas, quando, Ulisses se vê em perigo, começa por matar Alcínoo, que para ele avançava. E assim Mata, auxiliado por Telémaco, todos os pretendentes, que, sem armas, foram completamente aniquilados. Agora já se pode dar a conhecer a Penélope, à qual, para maior segurança, faz minuciosa descrição do leito nupcial, que por ele mesmo fora mandado construir. No dia seguinte vai visitar Laertes, seu pai, que vivia no campo. Mas entretanto rebenta uma revolução contra Ulisses acusado de ter morto os mais importantes chefes de Ítaca. Atena, a deusa protectora de Ulisses, tomará parte dos acontecimentos e acalmará a multidão, disfarçada na figura de Mentor. Desta maneira tem Ulisses de novo o trono de Ítaca e a paz reinará para governar a ilha.
Quanto ao fim de Ulisses, muitas são as versões e uma delas até dizia que o herói teria sido morto pelo filho que tivera de Circe, num combate havido na própria Ítaca. Porém, Homero, nada nos diz.
Com símbolo grego Ulisses representa o homem hábil nas ocasiões difíceis e adaptável às mais variadas circunstâncias. Simboliza o homem que, perante um destino, nunca desanima, e tudo faz para vencer as dificuldades e que, perante o perigo mais grave, nunca volta a cara.

28.3.05

Mary Wollstonecraft (1739-1797) e a primeira Reivindicação dos Direitos da Mulher



Mary Wollstonecraft nasce em Spitalfieds, subúrbios de Londres, no ano de 1739, no seio de uma abastada família de empresários, mas cuja riqueza não estava destinada para a instrução das raparigas. Por isso mesmo, Mary só muito tarde aprendeu a ler numa escola de dia, já quando tinha 14 anos. A sua educação foi completada com a ajuda de uma casal idoso, os Care, que a puseram em contacto com Shakespeare, Milton e Pope. No fundo, Mary foi uma autodidacta.

De 1777 a 1783 viveu com dificuldades económicas, partilhando os seus problemas com a sua amiga de sempre, Fanny Blood e a sua irmã Elisa, que havia decidido separar-se do marido trazendo consigo a filha. As 3 mulheres decidiram viver juntas e começaram a realizar trabalhos artesanais. Mary tentou também abrir uma escola mas não conseguiu.

Ao transferir-se para Newington Hill, perto de Londres, Mary conheceu Richard Price (1723-1791), um intelectual não conformista. Price era teólogo e filósofo de orientação unitarista, logo, um deísta seguidor de Franklin, Jefferson e Condorcet. Conheceu a obra de Locke e de Rouseeau, e leu ainda A Nova Eloísa.
Em 1785 fez uma viagem a Lisboa onde assistiu à morte por problema de parto da sua amiga Fanny. Atenta observadora da difícil condição feminina, publicou em 1787 o seu primeiro escrito com a preciosa ajuda do editor anticonformista Samuel Johnson, « Pensamentos sobre a educação das raparigas». Um texto que revelava, apesar de Mary ser programaticamente anglicana, a influência que recebera de Locke e de Rousseau, para além da dos unitaristas. No livro recolhiam-se ideias tanto de «Emilie» como dos «Pensamentos a respeito da educação», especialmente as relacionados com as raparigas, e se sublinhava a dificuldade de inserção social das jovens, mesmo sendo estas instruídas.

Depois de uma breve estância na Irlanda como professora, regressou a Londres em 1781 e começa a frequentar o ambiente intelectual da livraria de Johnson.

Conheceu o pintor pré-romântico Henry Fussli (1714-1825), Tom Paine , Coleridge, Wordsworth, William Godwin, e o pintor e gravador William Blake, que veio a ilustrar um livro de fábulas para crianças de Wollstonecraft, «Histórias originais»(1788). Muitos dos participantes deste ambiente intelectual sentiram-se inspirados e inflamados com os acontecimentos revolucionários de Paris, e a própria Mary escreveu em 1790 a «Reivindicação dos direitos dos homens» em que tomava posição a favor de Richard Price , que estivera ligado à revolução de 1688 e à de 1789 contra o conservador Edmund Burke (1729-1797).

No seu livro, Wollstonecraft criticava a iníqua divisão da riqueza típica da sociedade inglesa do seu tempo: o domínio que penalizava as raparigas bem assim a condição coactiva do matrimónio, definido por ela, como uma «prostituição legal» No plano político, reivindicava o direito do povo a eleger os governantes e os reis, segundo aliás uma tese de Price. Em 1792 publicou então a sua obra mais importante, «Reivindicação dos direitos da mulher»

No mesmo ano Mary Wollstonecraft parte para França com o objectivo de escrever uma história da revolução para o seu editor. Assiste, entre o temor e a angústia, à decapitação da Luís XVI.. Entre as forças políticas francesas sentia uma inclinação para os girondinos que combatiam por uma mudança regida pela razão e não tanto pelo sangue das massas.

Desta experiência surge o primeiro volume da «Visão histórica e moral da origem e evolução da Revolução Francesa» (1794), uma obra em impera uma visão oficial e na qual não marcas da presença feminina no movimento revolucionário.

À vida intelectual de Mary se somou entretanto (1793) as incertas e dolorosas vicissitudes da relação com um homem de negócios americano que conheceu em França durante o período do Terror, e que mais tarde a abandonaria em Le Havre com uma filha nos braços, relação que terá estado na origem em duas tentativas de suicídio em 1795.

As leis repressivas de 1794-1798 de William Pit contra os radicais e os filojacobinos ameaçaram Mary Wollstonecraft e o seu círculo de amigos intelectuais.

Em 1796 inicia uma relação como filósofo radical William Godwin, com o qual se decidiu casar-se,enquanto esperava um filho seu. Em Agosto de 1797 nasce a pequena Mary Godwin, mas quinze dias depois Mary Wollstonecraft morre por septicemia.

Mary Godwin, mais conhecida por Mary Godwin Shelley (1797-1851), a filha de Mary Wollstonecraft, foi também um mulher de engenho e uma escritora de créditos firmados. Mary Godwin Shelley casa-se com o poeta Percy Bisshe Shelley (1792-1822).Maru Shelley escreve a sua obra mais famosa, «Frankenstein».


A Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792)

Em 1791, Thomas Paine, livre pensador angloamericano, que tinha regressado à Inglaterra em 1787, publica «OS Direitos do Homem», facto que constituiu motivo bastante para ser desterrados e obrigado a emigrar para França. No ano seguinte, Mary Wollstonecraft publica a sua «A Reivindicação dos Direitos da Mulher». Trata-se de um livro que se inscreve na literatura político-filosófica do período revolucionário, entre a declração da Independência americana e a Declaração dos direitos do cidadão, na França.

Mary Wollstonecraft pretendia inserir as reivindicações sobre a liberdade e igualdade social e política das mulheres dentro do contexto mais geral dos Direitos do Homem. Ou seja, para Wollstonecraft o ideal da emancipação feminina e a igualdade entre homens e mulheres não era visto como um valor em si mesmo, mas estava antes inserido nos princípios do direito natural moderno, como uma espécie de suplemento ao programa iluminista.

Para Wollstonecraft as mulheres devem sair da sua jaula de ouro, desse limbo formal de «feminilidade» que é a outra cara da marginalização e da submissão. A mulher deve adquirir, segundo ela, o ideal da razão, ou seja: não mais «amantes sedutoras» mas sim «mulheres afectuosas e mães racionais».

As mulheres deveriam implicar-se plenamente no projecto ilustrado e reformador: educação, direitos políticos, responsabilidade pessoal, igualdade económica, racionalidade e virtude, liberdade e felicidade. Estas são os ideais de Wollstonecraft que chaga a propor, provocatoriamente, uma castidade feminina desmistificadora das relações ambíguas com o homem. Frequentemente faz referência a Francis Bacon que, encarna para ela, o poder libertador da razão filosófica. Mas não menos frequentemente polemiza com Rousseau, de quem aceita a agudeza das análises de «Emilie» e do «Contrato Social», mas cujas conclusões rejeita.

Os vícios das mulheres do seu tempo são vivamente censurados por Wollstonecraft. O intelecto e a virtude são inseparáveis, e não poderá haver verdadeira moralidade ( e verdadeira religiosidade) se, porventura o intelecto é débil e está mal aproveitado: à mulher exige-se um intelecto firme, e é sobre ele que poderá fundar a sua própria moralidade e felicidade. A superstição é coisa totalmente contrária à razoabilidade da religião cristã. A frivolidade e o sentimentalismo são induzidos às raparigas pela literatura novelesca. O apego afectivo mórbido ao marido resulta da sua subordinação intelectual. A incapacidade de educar bem os filhos é possível tanto nas mulheres como nos homens. A ignorância, no seu sentido mais enfático, tem a raiz na inferioridade e na instabilidade psíquica das mulheres. Esta é a lista dos males que as mulheres padecem, especialmente as burguesas, que tinham alguma possibilidade de se ilustrarem, na óptica de Mary Wollstonecraft.

A mentalidade feminina fora relegada pela tirania masculina para o limbo da fatuidade ao que as mulheres, em geral, acabaram por se adaptar. E as mulheres que, hoje, reclamam direitos, devem saber que a estes correspondem deveres, assim como a rebelião contra a dominação masculina se deve realizar em nome dos valores universais.

O interesse pedagógico de Wollstonecraft reside na sua visão geral da evolução do mundo feminino com base na ideia do progresso intelectual e moral. A educação feminina deve ser, pois, renovada e igual à do homem, de acordo com os princípios da razão.

Nesse sentido, Rousseau entra em contradição quando postula o regresso ao «estado da natureza». O Ser sábio, que criou os homens, deu-lhes a luz da razão para que a Virtude ocupe o lugar do vício.
O Intelecto, a Virtude e a Liberdade são as 3 caras da razão iluminada que Mary Wollstonecraft tomou como os princípios do seu pensamento.

O seu objectivo é a criação de uma «nova civilização» em que humanidade seja virtuosa e feliz. A via de acesso é aberta pela Razão , uma razão que é reforçada pela fé: «firmemente persuadida de que não existe o mal no mundo fora do desígnio divino, construo a minha fé sobre a perfeição de Deus». É a religião da Razão.

A Sociedade contra o Estado ( P. Clastres)

A Sociedade contra o Estado é uma obra fundamental cujo autor é Pierre Clastres, fundador da antropologia política e um dos maiores antropólogos de todos os tempos .

A sociedade contra o Estado, colectânea de onze artigos publicados por Pierre Clastres entre 1962 e 1974, é um dos mais importantes trabalhos de antropologia política já divulgados. Lançada em 1974, traz o sabor de sua época reflectindo uma reviravolta nas ciências humanas, propiciada na década anterior por autores franceses como Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault e Gilles Deleuze.

Como estes, Clastres agarra-se ao projecto de uma forte crítica da Razão ocidental - no seu caso, uma crítica da Razão política, então aferrada em noções de dominação e subordinação. No entanto, Clastres morreu prematuramente (aos 43 anos), não podendo continuar, como queria e poderia ter feito, o seu projecto original de constituição de uma antropologia política geral.

A tese que atravessa os textos da colectânea, fortemente alinhavados a despeito dos anos que os separam, é retumbante: a sociedade civil pode prescindir da figura do Estado, e isso pode ser verificado - empiricamente - na experiência de boa parte dos povos indígenas da América do Sul. Com efeito, o argumento lançado aguçou o interesse de antropólogos, filósofos e cientistas políticos. Se, por um lado, Clastres escrevia para especialistas em povos não-ocidentais, tocando num problema bastante delicado para eles - até que ponto essas sociedades podem ser ditas igualitárias? -, por outro, ele (re)abria uma séria discussão, própria da filosofia política, sobre a natureza do poder político.


Um chefe sem poder


A figura que serviria de inspiração a Clastres é a do chefe indígena (figura certamente genérica), autoridade que não detém poder algum, prisioneiro do grupo. Mesmo dotado de privilégios como a poliginia (casamento com mais de uma mulher), esse chefe está submetido a uma série de obrigações que pressupõem certas habilidades, dentre as quais, as mais importantes são a generosidade e o dom da oratória.

O chefe indígena é, em suma, aquele que pode dar e sabe falar. Essa sua fala reúne os homens ao seu redor sem, no entanto, mostrar-se eficaz para cooptá-los. Em suma, é uma fala vazia, pois não tem poder de mando, mantém o chefe numa posição de poder que é de fato aparente. O argumento de Pierre Clastres vai mais longe. Não se trata simplesmente de afirmar que o chefe indígena não detém o poder, pois, para o autor, a sociedade indígena (ou "primitiva", como ele prefere chamar de modo algo antiquado e que hoje poderia soar como "antropologicamente incorrecto") não é estranha ao poder. O chefe não detém o poder porque é impedido pela própria sociedade, essa sim a detentora de um certo poder, que não consegue, no entanto, constituir-se como esfera política separada - ou seja, como Estado. O poder ali permanece difuso.

Essa tese fora formulada por Clastres quando ele tinha apenas 28 anos e divulgada num artigo intitulado "Troca e poder: filosofia da chefia ameríndia" - segundo capítulo da presente colectânea. Nessa época, ele ainda era um estudante de filosofia e preparava-se para iniciar suas pesquisas de campo em sociedades indígenas sul-americanas, como os Guayaki, Guarani e Chulupi - todos do Chaco Paraguaio -, os Yanomami da Venezuela e os migrantes Guaranis mbyá das redondezas da cidade de São Paulo.

Questionando o marxismo e estruturalismo


As experiências de campo foram certamente responsáveis pela sofisticação de seu pensamento, no entanto, a ideia central havia sido lançada já no texto de 1962, publicado originalmente na revista L´Homme, que tinha como director Claude Lévi-Strauss. A propósito, "Troca e poder" - seguido, sobretudo, de "Independência e exogamia" (Cap. 3) - é um diálogo aberto com a obra deste autor e, com efeito, um momento decisivo de ruptura com o estruturalismo. Ao tomar o poder como foco, Clastres afasta-se de campos como a mitologia e o parentesco, então consagrados pela análise estrutural. A Clastres não interessa a dedução de princípios cognitivos universais que tornam possível a existência de qualquer sociedade, mas sim a verificação de como determinadas sociedades - no caso, as indígenas - respondem de maneiras diferentes a problemas de facto gerais, como a possibilidade de vigência de um poder político separado, o Estado. Vale lembrar que, nesse ponto, Clastres também aposta em questionar o marxismo, visto que, ao contrário do que este pensam, ele não vê a formação do Estado como função do desenvolvimento de uma desigualdade económica. A realidade, para ele, é justamente a inversa: são as relações de poder que definem as classes e, portanto, a divisão da sociedade em pobres e ricos.


Contra o Estado e a favor da sociedade


Sob esse aspecto, as sociedades indígenas deixam de ser tomadas, como de costume em abordagens evolucionistas, como passado ou infância das sociedades modernas, cuja organização política seria mais complexa e, logo, "superior". Se as últimas optaram por viver sob o jugo de um Estado, as primeiras recusaram-no em nome da liberdade. É então que chegamos à conclusão do último texto, "A sociedade contra o Estado" (Cap. 11), que dá nome à colectânea. Ou seja, as sociedades indígenas não são simplesmente sociedades "sem" Estado - esta seria a tese de um filósofo como Lapierre, criticada em "Copérnico e os selvagens" (Cap. 1) -, são, sim, "contra" o Estado na medida em que reconhecem a possibilidade de emergência de um poder político, que está, segundo a definição da filosofia política clássica, atrelado ao exercício da coerção, da violência.

A violência que se encontra nas sociedades indígenas não é monopolizada por um Estado, mas controlada pela própria sociedade. Em "Da tortura nas sociedades primitivas" (Cap. 10), Clastres salienta os rituais de iniciação - fortemente marcados por intervenções no corpo, como perfuração de lábios e orelhas, escarificações, reclusões etc. - como mecanismos de inscrição da lei (e memória) social nos indivíduos.


Promessas proféticas


Em "Do Um sem o Múltiplo" (Cap. 9), Clastres encontra no pensamento dos Guarani a identificação do Mal com a figura do Um - e esse Um coincide justamente com centralização política, com o Estado. No entanto, devido a factores incertos como o crescimento demográfico - tema discutido em "Elementos de demografia ameríndia" (Cap. 4) -, os Guaranis vêem-se não raro às voltas com a emergência do Estado e isso pode ser compreendido pelo aparecimento de líderes religiosos, os chamados profetas. Os profetas, como os chefes, falam. Mas a sua fala não é um mero dever - o capítulo 7 ("Dever da palavra") trata desse aspecto -, tão pouco é vazia. É uma fala que anuncia o fim dos tempos e incita à busca da Terra sem Mal, onde a mortalidade poderia ser, enfim, encontrada - este é, com efeito, o tema do capítulo 8 ("Profetas da Selva").

O profetismo ocupa, em A sociedade contra o Estado, um lugar intrigante. Referido inicialmente como uma revolta, ele pode ser também o germe de uma organização estatal entre os ameríndios. Com isso, Clastres reflecte sobre a situação dos povos tupi-guarani antes da Conquista.

As eventuais organizações em confederações, como aquela constituída pelos Tamoios no século XVI, não seriam um produto do contacto com os europeus, mas antes um processo constituído pelos próprios ameríndios. Mais uma vez, a questão não reside na ausência do Estado, mas na sua presença, mesmo entre os nativos, em forma latente. O que os distingue de nós, ocidentais, é a capacidade que eles apresentam de contornar, sempre que possível, o poder. Ao contrário de nós, eles riem do poder e de seu perigo - essa é a revelação de "De que riem os índios"? (Cap. 6).

Os índios e nós

Em A sociedade contra o Estado, Clastres viaja longe para reflectir, de facto, sobre a situação do Ocidente. NUma outra colectânea, «Arqueologia da violência: pesquisas em antropologia política», ele rememorará o filósofo do século XVII Etienne de La Boétie, que vê a razão da subordinação do homem como um acto de vontade. As sociedades ameríndias, para Clastres, são aquelas que recusam a subordinação - por isso, controlam o seu chefe, que não impõe leis nem executa sanções. Isso não reflecte nem significa sociedades desorganizadas, fragmentadas, como muito se pensou. Pelo contrário, revela um alto nível de organização a tal ponto de tornar inviável o aparecimento de um Estado. Essa escolha pela liberdade é o que Clastres quer sublinhar nas paisagens que percorreu e, assim, formular uma lição para o Ocidente, em que a dominação encontra-se por toda parte.

Em tempos como os que vivemos nos dias de hoje, marcados por guerras entre Estados e pelo desejo de expansão e dominação de verdadeiros impérios, a leitura de A sociedade contra o Estado parece, no mínimo, reconfortante. Diante de uma batalha pelo poder político (e, por conseguinte, económico) que tem custado inúmeras vidas, nada como imaginar um lugar onde este possa ser vivamente combatido pela sociedade.


Sobre o autor


Pierre Clastres nasceu em Paris em 1934. Foi director de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS, Paris) e membro do Laboratoire d´Anthropologie Sociale do Collège de France. Realizou pesquisas de campo na América do Sul entre os índios Guayaki, Guarani e Yanomami. Publicou Crónica dos índios Guayaki [1972], A sociedade contra o Estado [1974], e A fala sagrada - mitos e cantos sagrados dos índios Guarani [1974]. A sua morte prematura, num acidente de carro em 1977, interrompeu a conclusão de textos que mais tarde seriam reunidos no livro Arqueologia da violência - ensaios de antropologia política [1980].

Os conhecimentos tradicionais




Os conhecimentos tradicionais, ou conhecimentos autóctones (Indigenous Knowledge) são utilizados há milénios pelos povos indígenas e comunidades locais, e sempre constituíram a pedra angular da sua existência no que diz respeito à alimentação e à saúde. Os cientistas ocidentais começaram a interessar-se recentemente por esses conhecimentos indígenas, pelo facto deles representarem uma fonte potencial de novos medicamentos, sobretudo desde que os preços das patentes aumentaram muito no mercado. A aceleração dos fenómenos de biopirataria é reveladora da atitude hipócrita dos pesquisadores ocidentais em relação aos conhecimentos tradicionais: explorar a fundo esses conhecimentos e patentear todo tipo de substâncias deles oriundas (curcuma, ayahuasca, neem etc.), ao mesmo tempo que recusam reconhecer seu valor económico, bem como os seus detentores originais.
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Apesar do reconhecimento gradual de que se beneficiam os conhecimentos tradicionais enquanto verdadeiros saberes, as leis ocidentais sobre a propriedade intelectual classificam-nos como pertencendo ao "domínio público", portanto de livre acesso a todos. Além disto, em certos casos, os conhecimentos indígenas foram patenteados e protegidos pelos direitos de propriedade intelectual, tornando assim impossível qualquer indemnização aos seus reais inventores ou proprietários.
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Do mesmo modo, a utilização e o aperfeiçoamento constante das variedades são essenciais em muitos sistemas agrícolas. Em muitos países, o mercado de sementes depende essencialmente de um sistema local e descentralizado de produção de sementes, que opera a partir do princípio de difusão da melhor semente disponível numa comunidade, enquanto os fazendeiros locais asseguram-se de que a comunidade agrícola possui o material necessário para a sementeira. O seu conhecimento das variedades de plantas e de suas características específicas foi fundamental para o desenvolvimento de novas variedades, bem como para a segurança agrícola mundial.
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O reconhecimento da importância dos saberes tradicionais ganha espaço no debate intelectual e político mundial. Assim, uma lei da OMPI-UNESCO sobre o Folclore foi adoptada em 1981; depois, em 1992, a Convenção sobre a Diversidade Biológica tratou dessa questão. Em 2000, um Comité inter-governamental sobre a propriedade intelectual relativa aos recursos genéticos, aos saberes tradicionais e ao folclore foi criada pela OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual).
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Desvio dos saberes tradicionais
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Um grande número de patentes foram outorgadas para recursos e saberes genéticos obtidos de países em desenvolvimento, sem o consentimento dos detentores desses saberes e recursos. Muitos produtos oriundos de matérias biológicas e de saberes desenvolvidos e utilizados por comunidades locais e indígenas (tais como a árvore neem, o kava, o barbasco, o endod e o curcuma, entre outros) foram objecto de uma importante pesquisa visando a obtenção de eventuais Direitos de Propriedade Intelectual sobre esses produtos considerados como "brutos", sem aperfeiçoamento (cf., por exemplo, a patente americana n° 5.304.718 sobre o quinoa, concedida a pesquisadores da Universidade do Estado do Colorado; ou ainda a patente americana sobre as plantas, de n° 5.751, sobre o ayahuasca, uma planta medicinal sagrada da Amazónia.
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Muitas dessas patentes foram revogadas pelas autoridades nacionais competentes. Assim, o Conselho de Pesquisa Científica e Industrial (CRSI) da Índia pediu uma revisão da patente americana n° 5.401.5041 a respeito das propriedades curativas do curcuma. O Escritório das Patentes e das Marcas Registradas dos Estados-Unidos (USPTO) revogou essa patente, constatando que não havia a novidade exigida; a inovação vem sendo utilizada na Índia há muitos séculos. No início do ano 2000, a patente concedida à empresa W.R. Grace e ao Ministério da Agricultura americano para o neem (patente EPO n° 436257) foi igualmente revogada pelo Escritório Europeu das Patentes (EPO), pois o seu uso já estava repertoriado na Índia. O uso mais importante da árvore neem é como um biopesticida. Neste sentido, o neem contém mais de 60 componentes úteis, que incluem igualmente o azadirachtin A (aza A), amplamente conhecido. De acordo com o grupo Grace, esse componente era destruído no tratamento tradicional da planta. Isto é totalmente falso. De facto, as substâncias sofreram uma degradação, mas isto não se aparenta com uma perda, já que os fazendeiros só utilizam essas substâncias quando isto é necessário. O problema da estabilização só surgiu quando surgiu a questão do empacotamento e do armazenamento por longos períodos, com finalidades comerciais. O pedido de patente, de 1992, foi apresentado por Grace com o argumento de que o tratamento pretensamente inventado por esta empresa permitia uma extracção adicional de produtos solúveis na água, o que representaria uma alternativa mais do que um substituto ao tratamento indiano actual dado ao neem. Por outras palavras, as técnicas de Grace são supostamente mais novas e avançadas do que as técnicas indianas. Entretanto, essa “novidade” existe principalmente devido à ignorância ocidental. Um pedido de revisão para a patente sobre os tipos e grãos de arroz Basmati (US Patent n° 5.663.484) concedido pela USPTO, também foi formulado pelo CSIR e Rice Tech, o que fez com que 15 das 20 pretensões do solicitante fossem retiradas.
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As convenções e tratados internacionais que tratam dos saberes tradicionais são caracterizadas pelo fato de não serem obrigatórios. Cada cláusula que trata da repartição dos benefícios é contestada e rejeitada. A convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata amplamente dos padrões legais para os direitos indígenas, não protege os direitos de propriedade intelectual dos povos indígenas. Apesar da Declaração dos direitos dos povos indígenas reconhecer os direitos e aspirações desses povos, ela não passa de um documento sem efeito obrigatório, não podendo ser legalmente imposto. No tratado internacional sobre os recursos Genéticos das Plantas, as nações desenvolvidas conseguiram bloquear um reconhecimento internacional dos Direitos dos Fazendeiros. Eles contestam igualmente qualquer noção de retribuição para a utilização de germoplasma tradicional no âmbito de um acordo de divisão dos benefícios. A Convenção sobre a Diversidade Biológica, que tentou defender os interesses dos Povos Indígenas, foi contrariada nesse projecto pela recusa americana em ratificá-la e em aceitar as suas condições.
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Proteger os conhecimentos tradicionais no interesse das comunidades implicadas requer, portanto, uma acção ao mesmo tempo a nível nacional, e sob forma de leis protectoras, e a nível internacional, por meio de acordos que condenem a bio-pirataria e reconheçam que conceder patentes para o que é propriedade de comunidades locais, é contrário à ética.