28.3.05

Os conhecimentos tradicionais




Os conhecimentos tradicionais, ou conhecimentos autóctones (Indigenous Knowledge) são utilizados há milénios pelos povos indígenas e comunidades locais, e sempre constituíram a pedra angular da sua existência no que diz respeito à alimentação e à saúde. Os cientistas ocidentais começaram a interessar-se recentemente por esses conhecimentos indígenas, pelo facto deles representarem uma fonte potencial de novos medicamentos, sobretudo desde que os preços das patentes aumentaram muito no mercado. A aceleração dos fenómenos de biopirataria é reveladora da atitude hipócrita dos pesquisadores ocidentais em relação aos conhecimentos tradicionais: explorar a fundo esses conhecimentos e patentear todo tipo de substâncias deles oriundas (curcuma, ayahuasca, neem etc.), ao mesmo tempo que recusam reconhecer seu valor económico, bem como os seus detentores originais.
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Apesar do reconhecimento gradual de que se beneficiam os conhecimentos tradicionais enquanto verdadeiros saberes, as leis ocidentais sobre a propriedade intelectual classificam-nos como pertencendo ao "domínio público", portanto de livre acesso a todos. Além disto, em certos casos, os conhecimentos indígenas foram patenteados e protegidos pelos direitos de propriedade intelectual, tornando assim impossível qualquer indemnização aos seus reais inventores ou proprietários.
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Do mesmo modo, a utilização e o aperfeiçoamento constante das variedades são essenciais em muitos sistemas agrícolas. Em muitos países, o mercado de sementes depende essencialmente de um sistema local e descentralizado de produção de sementes, que opera a partir do princípio de difusão da melhor semente disponível numa comunidade, enquanto os fazendeiros locais asseguram-se de que a comunidade agrícola possui o material necessário para a sementeira. O seu conhecimento das variedades de plantas e de suas características específicas foi fundamental para o desenvolvimento de novas variedades, bem como para a segurança agrícola mundial.
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O reconhecimento da importância dos saberes tradicionais ganha espaço no debate intelectual e político mundial. Assim, uma lei da OMPI-UNESCO sobre o Folclore foi adoptada em 1981; depois, em 1992, a Convenção sobre a Diversidade Biológica tratou dessa questão. Em 2000, um Comité inter-governamental sobre a propriedade intelectual relativa aos recursos genéticos, aos saberes tradicionais e ao folclore foi criada pela OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual).
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Desvio dos saberes tradicionais
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Um grande número de patentes foram outorgadas para recursos e saberes genéticos obtidos de países em desenvolvimento, sem o consentimento dos detentores desses saberes e recursos. Muitos produtos oriundos de matérias biológicas e de saberes desenvolvidos e utilizados por comunidades locais e indígenas (tais como a árvore neem, o kava, o barbasco, o endod e o curcuma, entre outros) foram objecto de uma importante pesquisa visando a obtenção de eventuais Direitos de Propriedade Intelectual sobre esses produtos considerados como "brutos", sem aperfeiçoamento (cf., por exemplo, a patente americana n° 5.304.718 sobre o quinoa, concedida a pesquisadores da Universidade do Estado do Colorado; ou ainda a patente americana sobre as plantas, de n° 5.751, sobre o ayahuasca, uma planta medicinal sagrada da Amazónia.
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Muitas dessas patentes foram revogadas pelas autoridades nacionais competentes. Assim, o Conselho de Pesquisa Científica e Industrial (CRSI) da Índia pediu uma revisão da patente americana n° 5.401.5041 a respeito das propriedades curativas do curcuma. O Escritório das Patentes e das Marcas Registradas dos Estados-Unidos (USPTO) revogou essa patente, constatando que não havia a novidade exigida; a inovação vem sendo utilizada na Índia há muitos séculos. No início do ano 2000, a patente concedida à empresa W.R. Grace e ao Ministério da Agricultura americano para o neem (patente EPO n° 436257) foi igualmente revogada pelo Escritório Europeu das Patentes (EPO), pois o seu uso já estava repertoriado na Índia. O uso mais importante da árvore neem é como um biopesticida. Neste sentido, o neem contém mais de 60 componentes úteis, que incluem igualmente o azadirachtin A (aza A), amplamente conhecido. De acordo com o grupo Grace, esse componente era destruído no tratamento tradicional da planta. Isto é totalmente falso. De facto, as substâncias sofreram uma degradação, mas isto não se aparenta com uma perda, já que os fazendeiros só utilizam essas substâncias quando isto é necessário. O problema da estabilização só surgiu quando surgiu a questão do empacotamento e do armazenamento por longos períodos, com finalidades comerciais. O pedido de patente, de 1992, foi apresentado por Grace com o argumento de que o tratamento pretensamente inventado por esta empresa permitia uma extracção adicional de produtos solúveis na água, o que representaria uma alternativa mais do que um substituto ao tratamento indiano actual dado ao neem. Por outras palavras, as técnicas de Grace são supostamente mais novas e avançadas do que as técnicas indianas. Entretanto, essa “novidade” existe principalmente devido à ignorância ocidental. Um pedido de revisão para a patente sobre os tipos e grãos de arroz Basmati (US Patent n° 5.663.484) concedido pela USPTO, também foi formulado pelo CSIR e Rice Tech, o que fez com que 15 das 20 pretensões do solicitante fossem retiradas.
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As convenções e tratados internacionais que tratam dos saberes tradicionais são caracterizadas pelo fato de não serem obrigatórios. Cada cláusula que trata da repartição dos benefícios é contestada e rejeitada. A convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que trata amplamente dos padrões legais para os direitos indígenas, não protege os direitos de propriedade intelectual dos povos indígenas. Apesar da Declaração dos direitos dos povos indígenas reconhecer os direitos e aspirações desses povos, ela não passa de um documento sem efeito obrigatório, não podendo ser legalmente imposto. No tratado internacional sobre os recursos Genéticos das Plantas, as nações desenvolvidas conseguiram bloquear um reconhecimento internacional dos Direitos dos Fazendeiros. Eles contestam igualmente qualquer noção de retribuição para a utilização de germoplasma tradicional no âmbito de um acordo de divisão dos benefícios. A Convenção sobre a Diversidade Biológica, que tentou defender os interesses dos Povos Indígenas, foi contrariada nesse projecto pela recusa americana em ratificá-la e em aceitar as suas condições.
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Proteger os conhecimentos tradicionais no interesse das comunidades implicadas requer, portanto, uma acção ao mesmo tempo a nível nacional, e sob forma de leis protectoras, e a nível internacional, por meio de acordos que condenem a bio-pirataria e reconheçam que conceder patentes para o que é propriedade de comunidades locais, é contrário à ética.