10.1.09

Uma tradição revolucionária e filosófica (texto de Daniel Colson no dossier sobre o anarquismo na edição francesa de Janeiro do Le Monde Diplomatique)




Tradução para português do texto de Daniel Colson, que faz parte do dossier sobre o anarquismo, incluído na edição de Janeiro de 2009 do jornal Le Monde Diplomatique, mas que não surge na edição em papel, só estando acessível no website daquele jornal francês



Durante muito tempo a ligação entre filosofia e o anarquismo pareceu desfeita. Dizia-se que o anarquismo tinha desaparecido de cena após o desastre da guerra civil espanhola. Além disso, e ao contrário do marxismo, o pensamento libertário nunca teria construído uma filosofia digna desse nome – donde o desinteresse pelos filósofos e, por consequência, pelas instâncias académicas.

O anarquismo nasce em meados do século XIX, em simultâneo com o marxismo, e a partir de preocupações similares – a questão social e os movimentos operários – mas seguindo modalidades práticas e teóricas claramente distintas. A sua gestação releva de dois processos diferentes. Há, desde logo, uma perspectiva teórica e política que lhe confere o seu principal conceito: a anarquia, considerada como um valor positivo, simultaneamente para dar conta da realidade do mundo e, de forma aparentemente surpreendente, para dizer ao mundo, a viver sob o signo da dominação e da exploração do homem pelo homem, que se pode emancipar, afirmar a liberdade e a igualdade de todos, e que Pierre-Joseph Proudhon chama de anarquia positiva. A originalidade deste nascimento liga-se à circunstância de que não depende de um único teórico, contrariamente ao que se passa com o marxismo, mas de diversas e múltiplas posições e autores, eles próprios, muito diferentes entre os seus pontos de vista, que se lêem entre si, e que se reconhecem mutuamente, mas sem haver concertação nem a constituição de um grupo, nem ainda a sua subordinação à autoridade ou à influência de um deles.

De todos eles, Proudhon é, sem dúvida, o mais conhecido. Foi ele que, pela primeira vez em 1840, na sua obra «O que é a propriedade?» se refere positiva e teoricamente de forma determinante à ideia de anarquia. Deve-se também a ele a produção da obra mais consequente. Ao lado dele, é necessário igualmente citar Max Stirner, cuja obra O Único e a sua Propriedade ( de 1845) se tornará uma das referências posteriores do anarquismo que estava em vias de nascer. Outros nomes foram o médico Ernest Coeurderoy ( 1825-1862), o pintor Joseph Déjacque (1822-1864), e com certeza, Mikhail Aleksandrovitch Bakounine (1814-1876), um antigo e atípico hegeliano de esquerda que, em poucos anos, não somente contribuiu de forma determinante para o desenvolvimento do pensamento libertário, em oposição ao marxismo, como para o nascimento do anarquismo operário.

O segundo berço do anarquismo, do ponto de vista da filosofia, encontra-se paradoxalmente aonde ninguém pensaria: nas práticas operárias e revolucionárias que, sob formas muito diversas, e durante pouco mais de meio século, da I Internacional ao esmagamento da revolução espanhola em Maio de 1937, emergiram na maior parte dos países em vias de industrialização, em França, em Espanha, na Itália, mas também na Rússia, nos Países Baixos, nos Estados Unidos, Brasil e Argentina.

Dos operários relojoeiros da Federação jurassiana à poderosa Confederação Nacional do Trabalho (CNT) espanhola, com permanentes renascimentos, apesar de esporádicos e de curta duração em razão da sua radicalidade, o certo é que estes movimentos permanecem pouco conhecidos. Acabaram todos por desaparecer, no momento em que mais se desenvolviam, por efeito dos golpes sucessivos resultantes da I Grande Guerra Mundial, da violenta reacção dos diversos fascismos e de outros regimes militaristas que se impuseram um pouco por todo o mundo ao longo dos anos de 1920-1930, e finamente devido ainda à versão do «comunismo» que emergiu à sombra da ditadura estatal na Rússia.


Foi preciso esperar pelos acontecimentos de Maio de 68 e, de um modo mais geral, no último quartel do século XX para que o projecto e o pensamento libertário renascessem das cinzas. E também aí por efeito de um duplo impulso. Por um lado, pelos movimentos e os modos de reivindicação e acção ( autogestão, assembleias gerais, lutas anti-autoritárias) que ao longo desses anos marcaram numerosos países; e por outro, no plano filosófico, por efeito de uma constelação de abordagens teóricas originais e diversificadas, desde Jean Braudillard a Gilles Deleuze, passando por Michel Foucault, Jacques Derrida, Fénix Guattari e outros.

Por via daquilo que se poderia definir como um Nietzscheismo de esquerda assiste-se ao aparecimento de um pensamento emancipador que foi capaz de vacilar cinquenta anos da hegemonia marxista à esquerda. Foi assim possível dar um sentido ao anarquismo, mostrar a sua dimensão teórica – através de um imenso corpus de textos, opúsculos, tratados, muitos deles inéditos e heteróclitos, de difícil acessibilidade e, em parte, dados por perdidos ( Bakounine) - bem como, e de modo surpreendente, graças a um conjunto de movimentos e de experimentações libertárias, em especial de natureza operária, cuja importância só lentamente se começa a entender. Esta convergência entre mobilizações operárias e um nietzscheismo de esquerda, e foi justamente denunciado pelos seus inimigos sob o termo de «pensamento 68», apresenta 3 características singulares:

Em primeiro lugar ,a separação, a autonomia e a distinção. Ou seja, a capacidade dos oprimidos em tornarem-se senhores, no seu «próprio senhor», como dizem os sindicalistas libertários, baseando-se em si próprios e nos seus movimentos para fazer mudar o mundo. Num livro póstumo, De la capacite politique des classes ouvrières ( então lido e relido pelos militantes operários), e em termos eminentemente nitzscheanos, Proudhon explica: «A separação que eu recomendo é a própria condição de vida. Distinguir-se, definir-se é ser; da mesma forma que confundir-se, deixar-se absorver, é perder-se. Que a classe operária não se esqueça que é necessário, acima de tudo, sair da tutela, que actue de hoje em diante e exclusivamente por ela e para ela própria» (« La séparation que je recommande est la condition même de la vie. Se distinguer, se définir, c’est être ; de même que se confondre et s’absorber, c’est se perdre. Que la classe ouvrière se le tienne pour dit : il faut avant tout qu’elle sorte de tutelle et qu’elle agisse désormais exclusivement par elle-même et pour elle-même )

Na sua luta pela emancipação os diferentes movimentos do anarquismo operário consideram efectivamente que nada têm a pedir pois o que pretendem é «ser tudo» ( como dizem as palavras da Internacional). Buscam algo de inteiramente novo e que ninguém lhes pode dar pois só eles a podem fazer nascer.

O segundo ponto de convergência entre o nietzscheismo de esquerda e o anarquismo operário está no federalismo e no pluralismo. É conhecida a concepção nietzscheana da vontade de poder, concebida sob a forma de uma pluralidade de pulsões, de forças e desejos. Conhece-se menos a maneira original como os diferentes movimentos operários deram corpo ao conceito de «força colectiva» de Proudhon, esse composto de potencialidade, resultante de conflitos e da associação de uma multidão de tendências diferentes e contraditórias.

À vontade de poder de Nietzsche, concebida sob a forma de «complexo de forças em vias de se unir e desunir, de associar-se e dissociar-se», como escreve Michel Haar, respondem assim, um pouco por todo o mundo, e durante mais de meio século, a tensão, o equilíbrio e a multiplicidade de práticas e de modos de organização baseados no federalismo, na livre associação, na afinidade, no contrato sempre revogável. Mas também na intensa e movimentada vida dos processos de massa, em que cada ser – indivíduo, grupo, sindicato, comuna, união ou federação …- disponha de completa autonomia, e da possibilidade de operar uma secessão.

A estas duas primeiras convergências, para além dos tempos e dos mares, entre o anarquismo prático e o pensamento de Nietzsche, mas também de Gottfried Wilhelm Leibniz, de Baruch Spinoza, d’Alfred North Whitehead e de muitos outros, podemos acrescentar um terceiro encontro, porventura o mais importante: a acção directa e a rejeição pela representação. Para o anarquismo, tal como para Nietzsche, por exemplo, é preciso ir para além das mentiras e dos enganos da representação política ou social que os movimentos libertários incansavelmente denunciaram, e cuja armadilha e ingenuidade Pierre Bourdieu analisou.

Como Nietzche e com Bourdieu o anarquismo pretende ir à raiz da dominação e desvendar os mecanismos da representação simbólica e da linguagem. Lá onde Deus, a ciência e os discursos enviesados pretendem confundirem-se com o Estado, esse «cão hipócrita», como denuncia Nietzsche, «que gosta de discorrer para fazer crer que a sua voz sai do ventre das coisas». Lá onde, como nos explica Victor Grifuelhes, um dos responsáveis da CGT francesa, anterior a 1914, «a confiança no Deus do padre, e a confiança no poder dos políticos, o sindicalismo substitui pela confiança em si, na acção directa»

Exprimindo as suas potencialidades revolucionárias no contexto particular dos anos de 1960 e 1970, o pensamento de Maio de 68 não se contenta a dar sentido a esse anarquismo passado, que lhe fornece as razões da sua própria radicalidade. Ele vais mais longe na medida em ajuda a inscrevê-lo numa tradição filosófica muito mais vasta, oculta nas estruturas da ordem real ou imperial. Como Nietzsche alguns anos mais tarde, o anarquismo nasceu algures na Europa. Tal como ele que se surpreende ao «escrever tão bons livros» e encontrar as suas ideias em Leibniz e Spinoza, a ideia anarquista pode por seu turno dar sentido ao conjunto da história humana, dos escravos revoltados de Spartacus aos ismaelitas reformadores do século XII persa, dos «turbantes amarelos do taoísmo chinês do século II a.C. aos hussitas checos do século XV.

O anarquismo não é uma filosofia, nem um programa político, ou até um modelo de funcionamento social e económico. Através das suas múltiplas faces, e da sua forma de ecoar, o que o constitui, algures, antigamente, e no interior de uma multitude de práticas diferentes, o projecto libertário afirma-se como uma relação ao mundo que difere radicalmente das práticas , dos códigos, das percepções e das representações existentes. Substitui-las a favor de uma recomposição da totalidade daquilo que são, enquanto vida quotidiana, as práticas políticas e sociais, as criações artísticas, a ética e o exercício do pensamento, que mais não são que ocasiões para exprimir e repetir cada qual a ideia que as liga todas entre si.