10.1.09

Número de Janeiro da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique já está nas bancas‏



Editorial
O dinheiro
por Serge Halimi

Na altura em que a questão do «regresso ao Estado» está a ser levantada quase por toda a parte, como podemos nós deixar de perguntar nos que interesses ele serve? A corrupção política também assume formas que a lei não sanciona.

Há um ano, em Janeiro de 2008, o antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair foi recrutado pelo banco norte-americano JPMorgan Chase como conselheiro a tempo parcial. Um tempo parcial correctamente remunerado: 1 milhão de libras esterlinas por ano (1,06 milhões de euros). Acaso podemos imaginar que a JPMorgan teria concedido semelhante sinecura a Tony Blair se este, quando residia no n.º 10 da Downing Street, tivesse tomado medidas execradas pelos bancos para, por exemplo, evitar um colapso financeiro? E terá sido por mero acaso que Gerhard Schröder se tornou, em Março de 2006, por 250 000 euros anuais, conselheiro de uma empresa de oleodutos, filial da Gazprom, por ele próprio apadrinhada no tempo em que foi chanceler da Alemanha? Um dos seus camaradas sociais-democratas declarou nessa altura, mordaz: «Não posso deixar de considerar um pouco indigno que um estadista se mostre tão obcecado pelo dinheiro».

É agora a vez de George W. Bush preparar a sua próxima carreira. Já fazemos uma pequena ideia do que ela será: «Farei alguns discursos, só para encher os meus velhos cofres. Não sei quanto pede o meu pai – é entre 50 000 a 75 000 [dólares por «conferência»] –, e Clinton também ganha muito dinheiro» [1]. A tal ponto que o antigo presidente democrata vai ter que apresentar a uma comissão de ética do Departamento de Estado a lista de quem lhe paga os discursos. Desse modo, ninguém poderá suspeitar que Hillary Clinton dirija a política externa dos Estados Unidos para enriquecer sub repticiamente os clientes do marido…

Em Julho passado, o semanário Le Point, cuja especialidade não consiste em hostilizar Nicolas Sarkozy, deu a público algumas das mais garridas declarações do presidente francês, que terá detalhado os seus projectos da seguinte maneira: «Portanto, eu, que em 2012 estarei com 57 anos, não volto a candidatar-me. E quando vejo os muitos milhões que o Clinton arrecada, eu cá vou encher os bolsos! Faço isto agora durante cinco anos e depois ponho-me a fazer massa como o Clinton. Cento e cinquenta mil euros por conferência!» [2]. Após a jogada da presidência, a jogada das conferências.

Vender conselhos, ganhar dinheiro a fazer discursos, sim senhor. Mas o estadista também pode tornar-se patrão de uma grande empresa. Ter sido ministro das Finanças não é a pior maneira de lá chegar. E de mamar, depois, no seio da «mãe-Estado», quando ela sacia, com dinheiros públicos, os bancos privados em falência. Robert Rubin, influente conselheiro económico de Barack Obama, bem o sabe, por ter passado da presidência do banco Goldman Sachs para o Ministério das Finanças, e, posteriormente, do Ministério das Finanças para a direcção do Citigroup.

Thierry Breton, ministro francês da Economia, Finanças e Indústria entre 2005 e 2007, fez quanto pôde para que a fiscalidade sobre os altos rendimentos passasse a ser mais «atractiva». As vantagens dessa iniciativa foram depois por ele directamente apreciadas, visto que, sendo agora presidente da empresa de serviços informáticos Atos, após um ano ao serviço do banco Rothschild, – onde encontrou Gerhard Schröder… – o ex-ministro vai auferir, segundo ele próprio confessou, «um salário anual fixo de 1,2 milhões de euros, podendo uma parte variável ir até 120 por cento do fixo em função de objectivos atingidos, cujo valor máximo, no entanto, eu desejei que ficasse nos 100 por cento. A isso acrescenta-se a atribuição de 233 000 stock-options no fim de 2009, no fim de 2010 e no fim de 2011». Sublinhando Thierry Breton: «No caso de as minhas funções cessarem, pedi para não beneficiar de qualquer pára-quedas dourado» [3]. A crise impõe sacrifícios a todos.

Quando o poder constitui, ora a etapa necessária de uma carreira lucrativa no mundo dos negócios, ora o refúgio de homens de dinheiro à procura de um segundo fôlego, será razoável continuar a esperar que os principais responsáveis pela crise assumam a parte que lhes cabe na resolução dos danos causados?


Notas
[1] Jim Rutenberg, «In Book, Bush Peeks Ahead to His Legacy», The New York Times, 2 de Setembro de 2007.
[2] «Sarko off», Le Point, Paris, 3 de Julho de 2008. Segundo um jornalista do diário Le Monde, Sarkozy tinha anunciado três anos antes: «Posso exercer como advogado, posso ganhar dinheiro. (…) Primeiro exerço como presidente, depois como advogado» (Philippe Ridet, Le Président et moi, Albin Michel, Paris, 2008, p. 149).
[3] Les Echos, Paris, 16 de Dezembro de 2008.


O medo e a esperança, por Sandra Monteiro

[...] Se há algo que a actual crise económica e financeira desmascara é o fracasso do neoliberalismo como garante de liberdade de escolha para os cidadãos. A opção por uma vida em paz, com uma saúde equilibrada, uma alimentação adequada, uma habitação digna, uma educação de qualidade, um emprego que seja fonte de realização pessoal e com condições que permitam planear férias, ter filhos ou até adoecer, para não falar da protecção aos mais idosos, não é efectivamente uma opção que possa ser hoje levada à prática por grande parte da humanidade. [...] >>>>


Dossiê «A esquerda e o poder»

Esquerda plural e clareza das alternativas, por André Freire
[...] Em Portugal, quando se fala de cooperação entre as esquerdas, geralmente as várias forças acusam se mutuamente. Para justificarem a quase impossibilidade de entendimentos, os socialistas acusam as forças à sua esquerda de sectarismo e de fazerem do PS o seu principal adversário. Por seu lado, também para justificarem a quase impossibilidade de entendimentos, os bloquistas (e os comunistas) acusam o PS de executar políticas de direita e daí o obstáculo quase intransponível para se firmarem acordos. [...]

Diz-me como o exerces..., por António Abreu
[...] O exercício do poder e a relação com o ser se de esquerda ocorre também noutras instâncias que não apenas nos órgãos de poder político. Exerce se nos partidos, nas associações e noutras situações, por eleição dos membros que os constituem, com mandato outorgado, de forma mais ou menos explícita e por um determinado período. Para já não falar nas empresas e outros organismos públicos. Também nestas circunstâncias não é indiferente ser se ou não «de esquerda» quer pelo programa de acção adoptado quer pelo estilo do desempenho. [...]

Poder fazer, fazer o poder, por Daniel Oliveira
[...] É hoje evidente que é nas políticas económicas e sociais de Estado que a esquerda está obrigada a assentar as suas alternativas. O anti estatismo militante, nas condições actuais, seria um aliado natural do Estado mínimo neoliberal. Seria um erro histórico. E se é no Estado e nas estruturas transnacionais de Estados que pode estar a resposta deste momento, é na participação no poder de Estado democrático que a esquerda pode operar importantes transformações que invertam o acumular de derrotas das últimas três décadas. [...]

Alguns lugares-comuns sobre o poder, por José Neves
[...] O início de 2009 encontra nos diante de uma bifurcação. Mas esta bifurcação não é entre dizer sim ou não a uma formulação genérica de «poder» que simplesmente esconde a redução da política ao Estado. A questão não é saber se nos sujamos com o poder, mas sim como fazemos política e com que poder é que nos sujamos.


Outros artigos

A crise e o futuro, por João Ferreira do Amaral
Foi o economista americano Irving Fisher que num artigo de 1933 afirmou que as depressões económicas começavam com um sobre endividamento e prosseguiam com uma deflação. Talvez seja exagero a generalização. Mas podemos certamente dizer que os problemas de crédito desencadearam a actual crise. [...]
Sobre este tema, leia no sítio Internet do jornal, inédito e em acesso livre, o artigo de Gerald Epstein,
«A crise financeira global: evitar uma Grande Depressão e parar o actual Ciclo Destrutivo».

Ligações perigosas na Ásia Meridional, por Graham Usher
Na Azad Caxemira – parte da Caxemira ocupada pelo Paquistão –, as forças de segurança encerraram desde 7 de Dezembro de 2008 um campo de treino ligado ao grupo islamita paquistanês Lashkar e Taiba (LeT). O governo paquistanês interditou também a Jamaat ud Dawa (JuD), a «fundação caritativa» do LeT que as Nações Unidas colocaram na lista das organizações terroristas. Foram encerradas cem instalações e detidos cinquenta dirigentes, entre os quais os comandantes do grupo islamita, Zaki ur Rehman Lakhvi e Zarrar Shah, e ainda Hafiz Saeed, fundador deste movimento e «emir» da JuD. [...]

Mergulho no coração da Índia muçulmana, por Wendy Kristianasen
Surpresa em Nova Deli: pouco mais de uma semana após os atentados de Bombaim, o Partido do Congresso, que chefia a coligação governamental, reforçou se em três dos cinco estados onde estavam a decorrer eleições parciais, entre os quais o da capital. Foi uma vitória com que ninguém contava, de tal modo este partido parecia ter ficado gasto por quatro anos de poder, fragilizado pela crise económica e financeira e desacreditado pelos sangrentos acontecimentos de Novembro. [...]

Está Obama prisioneiro dos «falcões» no Iraque?, por Gareth Porter
[...] A narrativa da forma como Obama veio a perder todo o controlo efectivo sobre a política iraquiana constitui uma lição magistral sobre a natureza do poder no que diz respeito a um dossiê sensível para o Estado maior militar e para os seus aliados civis. Está feita a demonstração da fragilidade do sistema democrático de Defesa face à influência dominante dos militares americanos e dos seus aliados, quando eles estão unidos e determinados a impor os seus pontos de vista.

«Aos bancos, dão dinheiro... aos jovens, dão balas», por Valia Kaimaki
[...] A revolta teve origem em múltiplos factores, dentre os quais a repressão policial constituiu apenas o mais evidente; Alexis não foi, aliás, a primeira vítima da polícia, foi a mais jovem. O fértil húmus da sublevação residiu, obviamente, na crise económica, que atingiu duramente a Grécia antes mesmo de a tempestade mundial ter feito sentir os seus efeitos. Mas à crise económica juntou se uma crise política profunda, ao mesmo tempo sistémica e moral. Provocada pela falta de transparência na acção dos partidos e dirigentes políticos, esta última teve como resultado a falta de confiança em todas as instituições estatais. [...]

Em Chicago, a luta sindical compensou, por Peter Dreier
[...] Calmamente, os operários organizaram a ocupação. Instituíram comités encarregados da limpeza das instalações e da manutenção da segurança, a fim de prevenirem qualquer acidente. Um cartaz afixado na cafetaria recordava que o álcool, a droga e os cigarros estavam proibidos. Instalados na fábrica em que alguns deles trabalhavam há dezenas de anos, os operários exigiram que o Bank of America e a direcção da Republic Windows encontrassem uma solução, pois enquanto não lhes fosse assegurado o pagamento das indemnizações e as férias pagas, eles não sairiam dali. Alguns começaram até a falar de uma possível recuperação da fábrica em regime de autogestão. [...]

Cuba à procura de um modelo socialista renovado, por Janette Habel
[...] Não se sabe se a geração histórica que ocupa ainda os postos chave pode reformar o que ela mesma construiu ou se, amedrontada com as mudanças, vai tomar o partido do imobilismo. De facto, a direcção actual não é mais jovem que a precedente: ela é mesmo… mais velha. Alguns pensam que são precisos novos actores para que as transformações sejam credíveis. Entre aqueles para quem o tempo está contado e aqueles para quem o tempo urge, a história ainda não fez a sua escolha.

Dossiê «Os anarquistas»

Denominações de origem pouco controladas, por Jean-Pierre Garnier
Durante muito tempo, as palavras «anarquista» e «libertário» foram indissociáveis para os militantes, inseridos ou não em organizações epónimas, que as reivindicavam para definir o seu posicionamento no campo político ou, mais exactamente, fora dele e em ruptura com ele sempre que esse posicionamento pudesse confundir se com o panorama politiqueiro. [...]

O infrequentável Pierre-Joseph Proudhon, por Edward Castleton
[...] Nos seus últimos escritos, antes de morrer em 19 de Janeiro de 1865, Proudhon chegou mesmo a denunciar a inutilidade das candidaturas proletárias. A classe operária deveria romper com as instituições «burguesas», criar associações com base no princípio da mutualidade e institucionalizar a reciprocidade. Em suma, inventar uma «democracia operária». [...]

Contra o sufrágio universal, cadernos inéditos de Proudohn
[...] Foi o sufrágio universal e directo que matou a República; foi a turba, após ter abandonado e traído os seus representantes, que a si mesma atribuiu um dono; se já não bastou a experiência de 1799 e 1804, de mim não dependerá que não baste a de 1852, antecedida pela experiência dos séculos. [...]

Uma indocilidade contagiosa, por Claire Auzias
Um dos paradoxos do anarquismo, e não o mais pequeno, é o facto de ser ao mesmo tempo um modesto movimento social e um poderoso vector de imaginários. É bem conhecida, em França, pelo menos, a canção de Léo Ferré que diz dos anarquistas: «Não há um em cada cem, e todavia existem». [...]