Advertência:
Não partilhamos de todas as teses nem de algumas das premissas de que parte Anselm Jappe quer na entrevista que abaixo reproduzimos quer ao longo do seu livro que acabou de ser traduzido para português. Não obstante, consideramos útil trazê-lo para aqui, uma vez que as suas ideias podem servir como pontos de partida para uma reflexão e debate sobre os desafios da luta anticapitalista.
Na verdade, quer na sua abordagem teórica quer na re-definição de alguns combates a travar Anselm Jappe cai rapidamente numa análise de tipo hegeliano, vício de que ele próprio tanto crítica quando fala do trabalho, enquanto categoria abstracta, logo alienada das concretas condições de vida dos indivíduos. A sua recusa em descer ao plano concreto dos movimentos sociais, e preferir antes em falar de uma abstracta mudança social constitui outro indicador do mais furioso hegelianismo, pouco atreito à revolta emancipadora dos indivíduos concretos.
Com efeito, para nós a emancipação social é uma construção social e não simplesmente uma síntese teórica, por mais perfeita que possa parecer.
Entrevista com Anselm Jappe, autor do livro «As Aventuras da Mercadoria – Para uma nova crítica do Valor», publicada no jornal Público de 21 de Maio de 2006.
O filósofo Anselm Jappe esteve em Lisboa para apresentar o seu último livro, editado pela Antígona. «As Aventuras da Mercadoria – Para uma nova crítica do Valor» não pretende ser um programa político, mas contribuir para a de uma consciência crítica.
Público – A tradicional divisão entre esquerda e direita continua válida?
Anselm Jappe – Por um lado as diferenças tradicionais ainda fazem algum sentido. Mas, por outro lado, pode dizer-se hoje que aquilo a que tradicionalmente se chama de esquerda muito frequentemente apenas ajudou o capitalismo a desenvolver-se mais. Deu uma contribuição involuntária, por exemplo, para a comercialização da vida diária. A esquerda tem tirado as coisas que estavam no caminho do capitalismo individualista e neoliberal. Parece haver uma concertação secreta… mesmo se frequentemente ninguém está consciente disto.Muito poucas pessoas questionam o capitalismo no seu todo. Marx, nalgumas partes do seu trabalho mais teórico, questionou as categorias básicas do valor e do dinheiro. Mas o capitalismo apreendeu de tal forma toda a sociedade que as pessoas ficavam incapazes de formular uma alternativa fora do sistema. Apenas formulam as necessidades do capitalismo de amanhã.A esquerda insistiu na libertação do indivíduo, das mulheres e das classes mais desfavorecidas – mas, se querer, acabou por favorecer o capitalismo, baseado no indivíduo e na aniquilação de todos os tipos de comunidade. Portanto, em certas questões ainda existe uma fronteira entre esquerda e direita – imigração, racismo, etc – mas noutras – como a biotecnologia ou a ciência -, a extrem-esquerda está a puxar na mesma direcção do que o capitalismo e, por vezes, encontra-se pessoas conservadoras, ou até religiosas, que têm ideias muito mais claras sobre os riscos destas matérias.
Onde se situa politicamente?
As minhas ideias são normalmente consideradas de esquerda, ou de extrema-esquerda. Mas não sou dogmático. Em certas matérias, discordo absolutamente com toda a esquerda e por vezes admito que os conservadores pensam certos assuntos de forma mais clara. Não gosto da divisão do discurso em esquerda ou direita.
Mas concorda que esta divisão ainda influencia muito a política?
Não há qualquer alternativa na política tradicional. As forças políticas de hoje não apresentam qualquer diferença, sendo de esquerda ou de direita. Por exemplo, em Itália a Rifondazione Comunista, considerada de extrema-esquerda, participa num governo que não terá sequer uma política social-democrata. Os programas são basicamente os mesmos. E, quando chegam ao governo, há ainda menos diferença. Veja-se os exemplos da extrema-esquerda em Itália e da extrema-direita na Áustria. Na realidade, todos optaram pelo mesmo tipo de políticas neoliberais. Nalguns tópicos, como a imigração, é que se nota a diferença. Além disso, os políticos mudam de ideias muito rápido. Durão Barroso começou por ser maoísta, não foi? Alguns conselheiros de Bush forma trotskistas, alguns conselheiros de Berlusconi maoístas…
Há uma crescente tendência para votar nos partidos do centro, que alternam no poder e apresentam apenas diferenças subtis. Como é que os partidos mais pequenos podem fazer oposição nestas condições?
Devia ser mais fácil apresentar alternativas quando os principais partidos dizem as mesmas coisas. Mas é muito raro ver ideias alternativas. Se for a uma manifestação, lá estará a secção dos velhos pequenos partidos comunistas, que ainda parecem estar nos anos 70, que propõem sempre as mesmas ideias, sobre a luta de classes…Há novos temas, que penso serem importantes, como o ambiente ou o feminismo, mas normalmente tentam encontrar soluções dentro do próprio sistema que não dá espaço à questão ecológica ou à efectiva igualdade entre mulheres e homens.
A política perdeu terreno?
Não há uma verdadeira autonomia da política. Desde pelo menos o fim da I Guerra Mundial, toda a política é económica. Aquilo a que hoje se chama segurança social foi organizado nos anos60 e 70, por governos conservadores em Itália e França. E aquilo a que se chama neoliberalismo, com a destruição do Estado social, resulta de governos sociais-democratas nos anos 90… Ou seja, não é possível ocupar apenas a esfera política, porque a economi globalizada cresceu muito para além de qualquer intervenção política, que hoje se reduz à intervenção do Estado. Isso é uma das ilusões do movimento anti-globalização.
Como é que a política pode voltar a ser autónoma?
Há um autor, Karl Polanyi, que diz que antes existiam sociedades com ilhas de mercado. Hoje, há um grande mercado com pequenas ilhas de sociedade. O que quero dizer é que existiram muitas sociedades. E antes do capitalismo, a produção material era apenas um aspecto da sociedade, entre muitos outros e não um objectivo em si mesma. No seio do sistema capitalista, aquilo a que chamamos política é apenas uma espécie de instância reguladora com a tarefa de ajudar a economia a funcionar melhor. Neste contexto, a política não é, de todo, concebida para controlar a economia. Não é possível, portanto, reforçar a esfera política dentro deste sistema. É necessário uma mudança profunda, que recoloque a produção material dentro de uma concepção de sociedade mais alargada.
Portanto estamos a ser governados pela economia?
O capital está hoje completamente globalizado.mesmo os não críticos do capitalismo dizem-no: vivemos numa sociedade m que a política é completamente dominada pela economia.
E a política fica reduzida à sua dimensão de espectáculo…
Como não há grandes diferenças entre os programas dos partidos políticos no governo, tende-se a fazer grande espectáculo das pequenas diferenças, e mesmo das personalidades. Por exemplo, em Itália, Berlusconi focalizava a atenção em si próprio. Fazia com que as pessoas estivessem sempre a falar dele, mal ou bem, mas sempre dele. Quase não era dada atenção aos verdadeiros problemas do país.
Encontar uma saída do capitalismo será difícil.O primeiro passo é tomar consciência da sua natureza violenta, «que criou um tipo de pessoas completamente vazias por dentro»
Afirma que não há lugar para oposições que venham de dentro do sistema, mas apenas para soluções radicalmente anticapitalistas. Que soluções são essas?
Porque é efectivamente difícil encontra
As oposições partem da mesma moldura ( capitalista) porque é efectivamente difícil encontrar uma saída. Há cem anos o capitalismo existia apenas numa parte do planeta…Hoje é completamente diferente, quase todo o mundo depende completamente do funcionamento do capitalismo.Quanto mais ele toma conta de toda a sociedade, mais difícil é sair dele. O primeiro passo é tomar consciência desta situação. O que já será muito, porque hoje não ideias muito claras sobre o assunto. Não se pode sair de um sistema de um dia para outro. Quando as pessoas recusam ver as suas vidas destruídas por uma lógica económica – ainda que sem uma perspectiva anticapitalista – significa que não aceitam mais algo que as mata e as deixa pobres, destrói o seu ambiente e a sua vida.
Não é utópico acreditar que o sistema capitalista poderá acabar um dia?
Aquilo a que se chama capitalismo hoje é muito diferente do que existia há cem anos. Daqui a um século viveremos noutro tipo de sociedade. A questão é que tipo de sociedade será. É claro que esta terá contradições. Mas se continuar como a de hoje – com energia nuclear, biotecnologia, organismos geneticamente modificados, desperdício de água, destruição da agricultura – nem sequer haverá vida humana. Se quisermos que a vida continue a ter um mínimo de dignidade, temos de mudar profundamente a sociedade.
Prevê que o capitalismo acabe por se autodestruir?
Sim, não acho que o capitalismo seja um progresso histórico. Nisto estou completamente contra o pensamento marxista tradicional, que achava que o capitalismo era uma espécie de progresso que tinha que ser substituído pelo socialismo, uma espécie de capitalismo melhor. Desde o início, o capitalismo foi um passo na direcção errada e revelou uma tendência destrutiva e autodestrutiva. Por isso,se uma forma ou de outra, será apenas um parêntesis na história humana. Já entrou na sua fase de declínio e terminará nas próximas décadas, como tudo. O que não significa que dê lugar, necessariamente, a um sistema melhor. Mas há espaço para um intervenção consciente que proponha alternativas. Isto não é uma profecia, já está a acontecer. Tem havido uma regressão. As pessoas estão a ser obrigadas a viver nas margens da economia capitalista porque as bases da economia tradicional foram desfeitas. O sistema capitalista está globalizado, mas há cada vez menos pessoas que são sujeitos capitalistas normais.
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Classifica-se como um situacionista?
Não…A Internacional Situacionista foi dissolvida em 1972. Depois disso houve apenas uma linha de pensamento. Mas existem muitos pequenos grupo e seitas que pretendem apresentar-se como situacionistas. Todas as pessoas que se dizem situacionistas após a dissolução da Internacional situacionista são sectários e dogmáticos, ao contrário do espírito de dinâmica do movimento inicial, que era uma tentativa de compreender as mudanças do mundo nos anos 50 e 60, um protesto contra o surrealismo transformado em acto oficial, o marxismo transformado em pensamento do Estado…
Mas esse pensamento ainda continua actual?
O próprio Debord disse que as ideias são feitas para morrer na batalha do tempo. É impossível ser-se situacionista hoje, mas pode fazer-se referência a ideias situacionistas como fuga ao pensamento único, como incitação a ir mais além. São importantes para estimular o pensamento, desenvolver novas ideias e manter o espírito de uma crítica radical. Mas isso é muito diferente de tomar a letra tudo o que foi escrito pelos situacionistas. O mesmo é válido para o marxismo. Passados 150 anos, o pensamento de Marx continua muito importante para desenvolver um pensamento crítico. Mas não se pode levar à letra tudo o que ele escreveu.
Diz que Marx tem sido incompreendido e que uma parte do seu pensamento tem sido ignorada.
Pode encontrar-se duas partes no pensamento de Marx. Ambas são importantes, mas a parte mais histórica foi ultrapassada pela evolução histórica. A outra, a da mercadoria, tem conquistado mais actualidade com o passar do tempo. O regresso do marxismo tradicional – a que chamo dinossáurico -, nomeadamente no movimento anti-globalização com o foco na luta de classes, gerou um revivalismo surpreendente… Esperava que a crise do capitalismo levasse a uma teoria mais crítica e não à parte mais frágil do pensamento de Marx. Há sempre um antagonismo social, mas o tradicional conflito entre capital e trabalho insere-se no próprio capitalismo.
No livro, lamenta que as conquistas de 68 se tenham perdido. O que se perdeu?
Foi uma espécie de abertura a um novo mundo, que não durou muito tempo. Houve uma mudança na sociedade, especialmente nos costumes, mas foi recuperada muito rapidamente pela nova cultura capitalista. O que ficou do espírito de 68 foi a modernização do capitalismo. Mas a ideia de mudar o mundo, que era o espírito verdadeiro de 68, não durou muito.
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