14:30 Projecção do filme
16:00 Seminário: O trabalho através do cinema: uma análise crítica do filme «Metropolis
Giovanni Alves (Universidade Estadual de São Paulo- UNESP/ Marília)
Nota biográfica
O Professor Giovanni Alves é um dos mais dinâmicos sociólogos críticos do trabalho, que vem estudando e publicando sobre as temáticas da precariedade das relações laborais, do movimento sindical brasileiro e do que ele designa por "condição de proletariedade" no moderno capitalismo global.
Giovanni Alves é Professor Livre-docente de sociologia da Universidade Estadual de São Paulo- UNESP/ Marília; pesquisador do CNPq; líder do grupo de pesquisa "Estudos de Globalização"; coordenador geral da Rede de Estudos do Trabalho - RET; coordenador do projecto de extensão Tela Crítica.
Entre as suas publicações destacam-se: O Novo e Precário Mundo do Trabalho (ed. Boitempo); Trabalho e Cinema (Ed. Praxis); A Condição de Proletariedade (Ed. Praxis).
«Metropolis» e a Europa
Texto de Manuel Portela Ex-Director do Teatro Académico de Gil Vicente;Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Reflectir sobre a possibilidade de encontrar em Metropolis uma antevisão da Europa actual implica uma reflexão prévia, e extraordinariamente difícil de articular: qual a relação entre a representação ficcional e a representação documental? Ou entre um conhecimento imaginário e mítico, por um lado, e um conhecimento social e económico do real, por outro? Reconhecer Metropolis como antevisão da Europa e da urbanização e mundialização actuais seria reconhecer como adequadas ao mundo das relações sociais de produção actuais certas descrições desse mundo ficcionado de uma métropole tecnológica. No filme de Fritz Lang aquilo que sobressai é o gigantismo de uma civilização tecnológica urbana de massas, dividida entre a classe subterrânea dos que trabalham para manter o sistema da civilização da mega-cidade em funcionamento e a classe dos que dirigem e vigiam esse sistema à superfície, beneficiando da capitalização e da riqueza produzida pelo trabalho incessante e auto-referencial da civilização como megamáquina tecnológica. A leitura alegórica contida no próprio filme representa essa divisão de classes como uma divisão entre a mão e o cérebro, que caberia à mediação do coração resolver. Tal resolução não só é inadequada para a escala do conflito que o filme encena, como revela os limites de qualquer solução ficcional.
Se a relação entre representação e realidade só pode ser pensada como uma relação entre diferentes representações do real, então a ficção e o documentário são dois modos específicos de produção do real, do real como ficção e do real como documentário. E se assim é, ambos os dispositivos formais participam das condições económicas e ideológicas que produzem certos modos de representação do real, e os integram, por seu turno, no conjunto de práticas sociais e culturais que os fazem circular enquanto formas de produção de sentido: num caso, o cinema como arte de massas, dispositivo de construção de narrativas míticas e imaginárias, produzidas de acordo com as regras formais da ficção; no outro caso, o documentário como registo de espaços, tempos, actos e indivíduos enquanto parte do mundo, cuja existência excede o acto de registá-la. Num e noutro caso, haveria que acrescentar às regras formais internas da linguagem de cada modo de representação, os contextos institucionais que os tornam possíveis enquanto produtos de formas de trabalho específicas. Quer dizer que o próprio cinema pode ser analisado como modo de trabalho e como actividade económica – no caso do filme de Fritz Lang, as multidões de figurantes são também um sintoma das condições económicas e do desemprego em massa que deram aos estúdios a possibilidade de contratar a mão-de-obra necessária para realizar o filme.
Aquilo que aproxima ambos os modos de conhecimento (ficcional e documental) enquanto representações é o conjunto de propriedades comuns a todas as representações: a sua natureza mediada e a criação de um ponto de vista, isto é, de uma perspectiva, que decorre da incompletude de qualquer representação. A tecnologia do cinema (ficcional ou documental) se pensada como forma de ver e de dar a ver torna evidente a natureza representacional das representações: o ponto de vista da câmara (nos seus enquadramentos, ângulos e movimentos) e a narrativa construída pela montagem (na criação de relações lógicas e cronológicas entre planos e acções) instituem ao nível formal da materialidade cinematográfica uma determinada visão dos objectos que representam, isto é, uma determinada narrativa. Se a realidade tem também, em parte, uma dimensão de produção perceptual, na medida que eu a conheço através das representações que construo, o processo social de produção do real não está apenas nas formas de trabalho e nas leis que regulam as formas de trabalho que definem a ordem social e económica, isto é, não está apenas nas formas que eu reproduzo ao agir para reproduzir as condições de existência em que existo. Está também na forma de representar o mundo em que existo: as representações fazem parte do processo geral de reprodução social. Quanto menos visível a sua condição de representação, isto é, quanto mais naturalizada estiver, mais difícil se torna revelar a sua perspectiva particular e a ideologia que sustenta a sua coerência interna.
Mas o perspectivismo, que limita a possibilidade de universalização das representações, é também a propriedade que permite criticá-las e construir sobre um objecto pontos de vista alternativos. De certo modo, foi isso que se tentou fazer com o conjunto de filmes escolhidos para o ciclo «Integração Mundial, Desintegração Nacional: Crise nos Mercados de Trabalho»: dar do trabalho, em diversos sectores económicos e em diversas regiões da Europa e do mundo, um conhecimento diverso daquele que as representações políticas e jurídicas correntes permitem construir. Vários filmes mostraram a persistência de formas de trabalho fora da protecção jurídica, e a erosão dos direitos sociais e económicos dos trabalhadores. Na medida em que a ordem jurídica, como extensão das relações políticas numa sociedade, legitima certas relações de poder entre classes e entre grupos, ela participa activamente no processo de reprodução da ordem de dominação económica existente. E não se trata apenas de representar como universais interesses que são, de facto, particulares (às vezes, muito particulares), trata-se também da incapacidade de eliminar as contradições profundas entre certos dispositivos jurídicos de protecção do trabalho e as condições reais de subjugação económica que institucionalizam a exploração de todos aqueles que têm de vender a sua força de trabalho (e a sua saúde, e o seu corpo, e a sua vida) sem um salário digno, sem protecção social e sem verem garantidos os direitos de humanidade que políticos e juristas nos dizem serem de todos.
A mundialização dos mercados do trabalho torna possível exportar formas de proletarização e manter os espaços de pobreza material que as alimenta. Por outro lado, acentua-se mais ainda do que na fase dos mercados nacionais a divisão entre consumidores e produtores. Na esfera simbólica da publicidade, que constrói para os consumidores a identidade dos objectos, foram apagadas todas as marcas das condições reais de produção. À medida que o mercado se mundializa, conhecemos ainda menos, cada vez menos, a história concreta de produção da maior parte dos objectos que usamos: quem fez os meus sapatos, e em que condições? Quem extraiu o crude que foi transformado na gasolina com que enchi o carro, e em que condições? Quem fabricou o carro que conduzo, e em que condições? Quem apanhou os morangos que comi ao jantar, e em que condições? Quem fez as minhas calças, e em que condições? Que direitos económicos e sociais tem? Que leis internacionais do trabalho são capazes de garantir condições de trabalho justas? E será isso possível sem mudar o sistema de produção eonómica? Isto é, sem a reificação do capital e das mercadorias se constituírem como essência da vida humana, como o verdadeiro sujeito da história?
Aquilo que salta à vista em Metropolis, quando lido como prefiguração do futuro, é a contradição entre uma dimensão de luta de classes e de segregação territorial (descrição ainda suficientemente precisa para apreendermos nela a forma essencial da estrutura das sociedades humanas) e a dimensão simbólica e mítica do bem e do mal, resolvida imaginariamente através da ideia de mediação que o coração faz entre o cérebro e a mão. Uma contradição que se manifesta igualmente na contradição entre o tratamento da coreografia de massas, que analisa a dimensão colectiva da metrópole tecnológica, e as convenções que constroem a narrativa das personagens individuais enquanto falsa resolução de um conflito que é estrutural à própria configuração da metrópole. Talvez a prefiguração do mundo actual esteja sobretudo nessa representação da megalópolis como megamáquina, isto é, como um sistema social em que os indivíduos (no submundo dos subterrâneos ou no sobremundo dos arranha-céus) se encontram alienados da sua própria subjectividade, constrangidos a servir um dispositivo técnico e económico auto-referencial, de que a grande cidade constitui a materialização social e arquitectónica.
Portanto, talvez a pergunta tenha de ser reformulada para se tornar um pouco mais precisa: que representação conseguimos construir da Europa (e do mundo) actual que seja capaz de dar conta do sacrifício continuado de milhões de corpos ao Moloch da máquina da economia e do Estado? E, uma vez construída essa representação, como conseguimos usá-la para nos libertarmos da máquina que nos produz como sujeitos da sua ordem? Como usar os dispositivos jurídicos e económicos de forma emancipatória? Que instâncias de mediação conseguimos criar para alterar desigualdade estrutural que determina a exploração do trabalho de milhões de seres humanos? É possível explicitar os conflitos e garantir os direitos sem pôr em causa a globalização do capitalismo tecnológico?
Coimbra, 02 de Julho de 2008
Texto retirado de: http://boasociedade.blogspot.com/