27.9.06

Os negros, de Jean Genet

Os negros, de Jean Genet, com encenação de Rogério de Carvalho - em representação no TNSJ
( 15 Set a 8 Out)


Textos retirados de:
http://www.tnsj.pt/


Prefácio ( por J.Genet)

Que acontecerá a esta peça quando tiverem desaparecido, por um lado, o desprezo e a repugnância, por outro, a raiva impotente e o ódio que formam o fundo das relações entre a gente de cor e os brancos – em suma, quando entre uns e outros se tecerem laços humanos? Será esquecida. Aceito que só hoje faça sentido.
Que tom adoptaria um negro para se dirigir a um público branco? Vários o fizeram. Ora encantadores, ora reivindicadores, indicavam o seu temperamento singular. Eu próprio, falando com um negro, não sei que lhe dizer e como dizê-lo: só consigo distinguir o indivíduo particular e com ele entro em sintonia. Mas se tivesse de me dirigir a um público de negros, recusar-me-ia a fazê-lo. Perante eles, teria a sensação demasiado aguda de que a Brancura quer falar à Negritude. É preciso ser-se muito louco ou muito cobarde para aceitar semelhante diálogo. Semelhante sermão, melhor dizendo. E falar não seria porventura o mais arriscado; onde iria eu, Homem-Branco, buscar a emoção capaz de engendrar o mito que os pudesse sacudir? A expressão teatral não é um discurso. Acto poético, ela quer impor-se como um imperativo categórico perante o qual, sem contudo capitular, a razão entra em banho-maria. Julgo ser possível encontrar a expressão única que seria compreendida por todos os homens. Mas as metamorfoses da História, em lugar de conduzirem as sociedades para uma crescente compreensão mútua, endurecem-nas sob uma casca de singularidade, de tal maneira que a nossa primeira preocupação seria quebrar essa casca dentro da qual todo o ser que se queira livre se impacienta.
No passado mês de Dezembro, Raymond Rouleau comunicou-me a sua intenção de formar uma companhia teatral composta unicamente de negros. Conheço mal as razões que o norteiam. A bem dizer, preocupei-me pouco com a questão, julgando adivinhar que Rouleau neles via admiráveis objectos cénicos até hoje nunca utilizados na Europa. Quando me pediu para escrever uma peça para a sua companhia, aceitei.
“Sim, disse para comigo, os negros representarão. Mas organizarão um espectáculo que será uma afronta lançada à cara dos espectadores.”
Porque, mal a ideia de uma representação teatral pelos negros encontrou formulação, logo me veio à mente o exemplo a não seguir, contra o qual era preciso lutar: Catherine Dunham.
Ainda nos lembramos dos seus ballets. Será que eram irrepreensíveis à luz da estética do music-hall? É bem possível. Dançados unicamente por negros, o que é que indicavam? Donde vinham? De que eram embaixadores? De que império soberano? Pálidos, descolorados, emanavam de um mundo sem poder terrestre, sem raízes, sem dor, sem lágrimas e sem vontade de ter semelhantes atributos, de um mundo de ectoplasmas que se recusa a experimentar a sua própria realização. Nunca através deles nos foi dada a conhecer a infelicidade de um mundo negro, cada dia mais irrealizado. Nem as suas raivas, nem as suas misérias, nem as suas cóleras, nem os seus medos. Senti-me incomodado, até à náusea, por aqueles negros atléticos que aceitavam propor ao público – americano à partida – um divertimento de encher as medidas, no qual apareceriam transbordantes de talento, de mestria, de beleza, e assim se mostravam em posturas inofensivas, quando a simples audácia de roçar com o cotovelo um cidadão yankee lhes seria recusada. Não somente o espectáculo nunca chegava a insultar-nos, nunca nos dava a ver a sua miséria nem o seu desespero, como, ainda por cima, tudo cantava aquilo a que chamamos alegria de viver, tudo nos consolava, com baixeza, daquilo que sabemos da vida e da população negra, dizendo-nos que nada os feria profundamente porque essa sua alegria era tão fresca. Traição. Não sei se terei a audácia de afirmar que todo o acto – e todo o gesto – nascidos da humilhação devem tingir-se de revolta, mas há que considerar medíocre e miserável uma arte nascida da ofensa e da domesticação que se recuse a ter em conta a miséria. Não defendo este ponto de vista por motivos de generosidade fácil, trata-se antes de uma exigência em favor da arte que só tem vigor na medida em que se apoia na realidade donde provém, testemunhando sobre essa realidade.
Será que responder à inimizade dos brancos com um sorriso, ao desprezo com um deboche de talento, e mostrar aos brancos hostis ou indiferentes que “se é um homem como os outros”, ou seja, um homem dotado de gosto, de habilidade e até de génio, chegando ao cúmulo de lhes dedicar, oferecer talento e génio, é tomar uma atitude bastante bela e generosa? Dir-me-ão que oferecer assim uma possibilidade de conciliação talvez seja prova de inteligência. Não vou nessa conversa. A atitude desses negros era da ordem da sedução, da prostituição, daquela cabotinagem a que recorrem os escravos favorecidos: Esopo escrevia fábulas para distrair o amo, beliscando-lhe a orelha – e logo o amo passava para outro divertimento.
A arte é o refúgio menos vil dos escravos. Mas não pode querer-se tão-só desinteressada e destinada a divertir os ócios do senhor. Justifica-se se incitar à revolta activa ou se, pelo menos, introduzir na alma do opressor a dúvida e um mal-estar devido à sua própria injustiça. Não podemos naturalmente ter em conta os encantos de uma arte cuja ternura e cuja tristeza evoquem somente a nostalgia de um paraíso perdido. Uma revolta deflagrou no Quénia: ousaríamos imaginar os Kikuios a tentarem seduzir os ingleses através das suas danças? Certas danças lascivas seriam porventura capazes de amolecer e derrotar mais facilmente o opressor apopléctico, colocando-o à sua mercê, mas não os imaginamos a procurar aplausos. Ousaríamos imaginá-los no papel de saltimbancos que voltam para saudar o público, assim perdendo a sua alma, a sua severidade, a sua violência? A fim de consigo arrastarem outras tribos para a revolta, talvez montem espectáculos de propaganda, mas então que sublimes pretextos não escreverão cujo sentido e cuja beleza formal nos haverão de escapar, dado que não se dirigem a nós!
A peça que ides ler não tem portanto como objectivo incitar os negros à revolta. Um apelo dessa natureza não pode vir de uma consciência branca através da obra de arte. [Só os envolvimentos na acção directa seriam eficazes. rasurado] Esta peça não é [pois rasurado] feita para eles. [Passo a explicar. rasurado] Quer queira quer não, pertenço à comunidade branca. Estou ligado aos brancos por todo um contexto cultural. Querer escrever para os negros seria fruto dessa abjecção moral que consiste em curvar-se generosamente, com toda a compreensão, para os fracos, em comprazer-se na boa consciência, em julgar-se dispensado de qualquer acção eficaz. Seria abrigar-se na moral e nos bons sentimentos, quando os homens por quem se toma partido haverão de se debater na miséria, na merda da acção, no compromisso. As minorias devem conquistar elas próprias as suas liberdades. É preciso desconfiarmos do nosso entusiasmo pelas causas generosas, pois ele transforma-se rapidamente em auto-complacência. Não tardaria a sentirmo-nos seguros de nós mesmos, atolando-nos na gelatina de um conforto moral muito satisfatório. Porque, no fim de contas, é bastante agradável defender os oprimidos pela palavra ou pela pena, quando se beneficia, simultaneamente, das benesses da comunidade opressora e da gratidão dos oprimidos. Não digo que seja necessário recusar sistematicamente ajuda aos oprimidos, mas antes que ela será vã se, ao mesmo tempo, não se combater o poder dominador ao serviço do qual se está, do qual se beneficia e no qual se participa; ou seja: se não se lutar contra si próprio. Trata-se pois de actos de maldade, praticados contra quem os comete, que têm como objectivo libertar-nos da casca a que anteriormente aludi.
Deleitando-se ou não com isso, o opressor dificilmente apaga em si a imagem do oprimido reduzido à servidão – [se assim não fosse rasurado] para que serviria a opressão, se não para lhe dar uma ideia da força resultante da fraqueza daqueles que reconhecem e veneram essa força –, sendo que essa imagem o tranquiliza e o encanta. É tão-só uma imagem e é [semelhante rasurado] ela que [ele rasurado] tentará transformar o oprimido. E se essa imagem, que traz dentro de si, começasse a inquietar o opressor?
Em contrapartida, era-me permitido tentar ferir os brancos e, graças a essa ferida, fazer penetrar a dúvida. Para nada esconder, devo dizer que me parece necessário que um acto escandaloso os obrigue ao questionamento e à inquietação, relativamente a este verdadeiro problema que não causa o menor conflito nas suas almas.
A partir do momento em que aceitei o princípio de uma peça escrita por um branco a ser representada por negros, quis que esta peça só pudesse ser representada por eles – e sobre a necessidade da obra teatral muito haveria a dizer. Acto poético, esta peça foi-me porventura imposta por uma exigência interior, modo do meu próprio drama, que me esforcei por nortear para um fim exterior a mim. O ponto de partida, o arranque, veio-me de uma caixa de música cujos autómatos eram quatro negros, de libré, que se inclinavam perante uma princesinha de porcelana branca. Esse encantador bibelot data do século XVIII. Será que na nossa época conseguiríamos imaginar, sem ironia, uma réplica: quatro criados brancos a fazerem vénias a uma princesa negra? Nada mudou. Que se passa então na alma dessas personagens obscuras que a nossa civilização aceitou no seu imaginário, mas sempre sob a aparência ligeiramente jocosa de cariátides de mesinha de pé de galo, de pajens ou de criados de café fardados? São feitos de trapos, não têm alma. E, se porventura alma têm, o sonho deles é comer a princesa.
Dir-me-ão que não representam toda a África. Se os interrogar, saberão responder por ela? Temo bem que sim, justamente. Do ponto de vista de uma consciência branca, eles são a África precisamente, no sentido em que simbolizam o estado no qual a nossa imaginação se compraz em situá-los, em fixá-los. Não me venham dizer que há cientistas, médicos, engenheiros negros, que alguns são cidadãos franceses, súbditos britânicos, estou farto de o saber. Farto de saber também que, por muito que até tivessem criados brancos, aquilo que continua a simbolizar as nossas relações é o encantador motivo da caixa de música do século XVIII.
Algumas centenas de milhares de escravos negros vivem o seu embrutecimento na miséria, no cansaço e na fome. A revolta contra as condições terríveis de vida elementar levá-los-á, aos poucos, a tomar consciência da sua realidade e da sua equivalência de seres humanos; ao vencerem no plano real das reivindicações sociais, conseguirão reconhecer-se como iguais ao resto dos homens que, a pouco e pouco, de capitulação em capitulação, perderão provavelmente a sua soberba. Com esses, quando se encontram no coração da orgulhosa revolta e, graças a ela, no fogo da acção, não temos que nos preocupar aqui: estão salvos. Nunca entrarão no nosso imaginário sob a forma de lacaios submissos. Porém, como vemos nós, de facto, os negros?
Formulada assim, a pergunta não haveria de querer dizer nada. Com os olhos do espírito, o Europeu mais obtuso é capaz de os ver na sua miséria, na sua situação de escravos. Mas como “sentimos” nós os negros?
Porventura, vemo-los como gado, como uma manada que deve ser rentável, mas é preciso fornecer às nossas consciências cristãs e humanitárias uma justificação apaziguadora. Ei-los: os negros são inferiores, cobardes, mentirosos, sonsos, preguiçosos e ingénuos, ou seja, incapazes de se elevarem ao patamar da reflexão intelectual. Acabo ou não de definir o criado típico da comédia? Excepto que o criado clássico ainda pertence – tendo em conta a cor de pele e os traços – à comunidade da qual, por um misterioso facto, foi subtraído, mas na qual se reintegrará, se enriquecer, por exemplo, enquanto que o negro dela será eternamente banido.
Ora, quando não se encontram no fogo da revolta activa, será que os negros são mesmo assim? E as minhas quatro figuras, que têm em comum com os negros que pensam e com os que estão condenados aos trabalhos forçados das minas e das plantações africanas? A questão é importante. A psicologia do oprimido é grosso modo decidida pela do opressor, neste caso o colonialista, fruto de uma política capitalista e racista. É impiedoso, embora aparentemente se radique num fingimento de liberalismo e conceda alguns favores ao oprimido. Então, o que é que acontece? Incapaz de convencer – falta-lhe um método dialéctico parente do nosso, falta-lhe o domínio da nossa língua e a força material que dá peso a qualquer argumentação –, o oprimido vai tentar seduzir-nos. Muito cedo e muito depressa, desenvolverá em si as virtudes femininas da sedução: e eis o criado, ou a sua réplica decorativa – o actor. O negro serve-nos e encanta-nos. A sua disponibilidade arrebata-nos. Mas, na sua solidão, que poderá representar o actor condenado pelo nosso pulso férreo a ser apenas um actor? Na verdade, nunca virá a matar o seu amo, felizmente, cruzes canhoto! Pois se os seus actos são sempre fictícios e a sua faca sem gume. Contra quem vai poder virar-se desenfreadamente?
Não estou a dizer que os negros sejam actores por natureza. Digo, bem pelo contrário, que se tornam actores na nossa consciência e que o são mal se vêem olhados pelos brancos. E são-no sempre, já que os vemos antes de os vermos – e os pensamos à luz das categorias que acima enumerei.
Posto que nos recusamos a vê-los na sua realidade de homens revoltados – de outro modo, a nossa atitude para com eles seria diferente –, é preciso que os vejamos nesse jogo. Esse jogo que simultaneamente os torna irreais e coincidentes com a ideia que nos apraz ter deles. Que mais disse eu além disto: quando vemos os negros, será que vemos algo mais do que fantasmas precisos e obscuros, nascidos do nosso desejo? Mas que pensam de nós esses fantasmas? Que jogo jogam eles?
Fantasmas que já existem ou nos quais os forçaremos a transformar-se e que só aceitaremos aplaudir nas suas momices, se apenas assim forem no nosso desejo de castrar toda uma raça, recusando-lhe o direito à realidade – eis o que devem pensar, ruminar, esses fantasmas, apesar de tudo. Se não mostro a política que pretende reduzi-los a isso, é porque está previamente implicada no olhar que os brancos sobre eles têm. Acrescente-se ainda que esta comédia da sedução do senhor pelo escravo não se desenrolará sem revolta dentro da sedução em si mesma. Talvez seja após o deleite advindo de delícias demasiado irrisórias e inconfessáveis que surge a revolta?
É dentro da minha própria língua que me exprimo, é sobre ela que quero agir, é dela que espero as imagens, as metáforas que me servirão para definir os negros, os quais, no segredo das suas almas, se procuram, se perseguem, ajudados por metáforas que farão deles aquilo que eu ignoro. A minha língua, orgulho da minha raça e do meu povo, destinada a dar de mim a sua derradeira definição, não posso acreditar que não a odeiem – no preciso momento em que se esforçam por aprendê-la. Poderão as figuras que vão surgir dessa língua ser outra coisa a não ser a projecção, no palco, dos fantasmas de verdadeiros negros que eu gostaria de metamorfosear?
Esta peça foi escrita num mundo burguês. Aponta para o que esse mundo sacou de toda uma raça quando ela se encontrou em contacto com ele. Está apostada em ferir esse mundo com as suas armas mais seguras. Claro que, num universo socialista, semelhante peça e semelhante autor são improváveis. Como também o são num mundo humilhado. Como também o são num mundo negro.
Durante muito tempo, a minha situação foi a de um humilhado. Não se espantem que seja a partir das consequências da humilhação – por fim vitoriosa sobre si própria – que mostro o devir dos humilhados. Conheço o perigo que me espreita. Não irei tingir com as cores do meu desespero a atitude de toda uma raça que conhece outro desespero, que vive outro desespero, de uma outra ordem?
Já não se trata propriamente de lacaios de nariz achatado e calções azul celeste, estes negros de que se fala na peça; são tranquilos descascadores de paletúvios, calmos estivadores, bons mineiros – mas o que é que lhes vai na cabeça? Sei que as relações com o mundo da estiva, da mina, etc., não permitem o sonho e não desenvolvem o gosto pela sedução. Certo. E quando gozam de um instante de repouso propício ao devaneio? Sei que tanta miséria só pode conduzir à revolta e que já há muitos líderes – brancos e negros – a conduzir os seus camaradas rumo a uma tomada de consciência e a desenvolver o gosto pela responsabilidade: temo bem que o proletariado negro venha a ser obrigado a dobrar o cabo da comédia, tal é o poder dominador de atracção do mundo branco que, até no simbolismo religioso, atribuiu a cor negra aos demónios do seu inferno. Possa o negro simbolizar o mal.
Também é portanto possível que o meu desespero particular me ponha melhor do que a ninguém ao corrente do desespero de toda uma raça. Saberei transcender suficientemente o meu drama pessoal para descrever um outro, mais geral? Mas, acima de tudo, não se confunda uma efusão lírica com uma palavra de ordem política. Embora possam, tanto uma como a outra, concorrer para os mesmos fins, não devem ser escutadas da mesma maneira. Como saberia eu se e de que maneira os negros devem exaltar a sua negritude? E que vem a ser essa negritude que eu não vivi e que a intuição nunca me revelará? Se semelhante exigência recomendasse, fá-la-ia aos negros fantasmáticos desejados pelos brancos. A humilhação vivida até ao desespero por um indivíduo pode ser transcendida na obra de arte. Pode ser fonte de liberdade. Esse triunfo – por muito secreto que permanecesse – permite ao artista apreender o mundo real, ser reconhecido pelos outros. Mas uma colectividade que vive na humilhação não consegue safar-se dessa maneira. O desespero transcendido graças à obra de arte só permite o triunfo de alguns indivíduos que, se tal acontecesse, se evadiriam porventura da colectividade oprimida, sem proveito para ela – pois ela só conquistará a salvação através da revolta efectiva e no domínio dos factos reais.
Esta peça foi escrita não em favor dos negros, mas contra os brancos. Será que nela manifesto ainda o ressentimento de um homem que foi condenado à humilhação e ao desespero? Será que a peça não é um acto generoso, mas antes a explosão de uma alma malvada? Talvez, quem sabe? Mas, antes de mais, não digamos demasiado mal da maldade, ou melhor, da crueldade – se ela se exercer contra mim mesmo. Em todo o caso, tem o seguinte a seu favor: mais seguramente do que de um sentimento generoso, estará porventura na origem de uma obra de arte generosa, pois terá tendência a prosseguir no imaginário.

* Este texto, que foi publicado pela primeira vez na íntegra no Théâtre complet de Genet (Bibliothèque de la Pléiade, 2002, p. 835-843), conhecera uma publicação parcial, decidida pelo próprio autor, em Les Nègres au Port de la Lune (Éditions de la Différence, 1988), sob o título “A Arte é um Refúgio”. A fortuna deste texto, datado de 1955, é curiosa: Genet não quis utilizá-lo nem na primeira edição, em 1958, nem na segunda, em 1960, quando o seu editor, Marc Barbezat, lhe pedira um prefácio (do qual ele próprio recusara a primeira versão). Nestas páginas, Genet demonstra uma seriedade e um fôlego crítico que não lhe são habituais, sobretudo se nos referirmos à “Lettre a Jean-Jacques Pauvert” que prefacia As Criadas, em 1954. Genet questiona a sua própria posição em matéria política e examina as lições que não pretende dar aos negros, chamados tão-só a uma “tomada de consciência”. Convém recordar que os anos 1955-1960 constituem, com o fim da guerra da Indochina e o início da guerra da Argélia, um período de inquietação para os dramaturgos que, de Adamov a Sartre e a Vinaver, se interrogam, por diversos meios, acerca do “empenhamento” da arte ao serviço da reflexão e da acção políticas.

Jean Genet – “Préface de Jean Genet pour Les Nègres”. In Les Nègres. Édition présentée, établie et annotée par Michel Corvin. [Paris]: Gallimard, D.L. 2005. (Folio. Théâtre). p. 141-149.
Trad. Regina Guimarães.



CRONOLOGIA

1910 19 de Dezembro. Nascimento de Jean Genet em Paris, filho de Camille Gabrielle Genet e de pai desconhecido.

1911 28 de Julho. Camille Genet abandona o filho no Hospice des Enfants-Assistés; torna-se pupilo da Assistência pública.
30 de Julho. O pupilo é entregue aos cuidados do casal Eugénie e Charles Régnier, pequenos artesãos da aldeia de Alligny-en-Morvan. É baptizado no dia 10 de Setembro e receberá uma educação católica.

1916 Setembro. Jean Genet é matriculado na escola primária.

1919 24 de Fevereiro. Morte em Paris, de gripe espanhola, de Camille Genet, aos trinta anos de idade.

1923 30 de Junho. Genet é primeiro classificado no exame da escola primária local.

1924 17 de Outubro. Graças aos bons resultados escolares, Genet escapa ao estatuto de criado agrícola e é colocado como aprendiz para se tornar tipógrafo na escola de Alembert. Foge quinze dias após a sua chegada a Paris. Encontrado em Nice, é de novo entregue aos serviços do Hospice des Enfants-Assistés.

1925 Abril. Colocado em casa do compositor cego René de Buxeuil, desvia uma pequena soma de dinheiro. É despedido e colocado sob observação no Hospital Sainte-Anne, num serviço de psiquiatria infantil.

1926 Fevereiro-Julho. Fugas, detenções e encarcerações sucessivas.
2 de Setembro. O tribunal confia-o à colónia agrícola penitenciária de Mettray até atingir a maioridade; aí permanecerá durante dois anos e meio.

1929 1 de Março. Antecipa a recruta e alista-se por dois anos. No mês de Outubro, obtém o grau de cabo, que manterá ao longo dos seis anos de carreira militar.

1930 – 1936 É enviado para a Síria (onde terá o primeiro contacto com o mundo árabe, ao qual ficará ligado toda a vida), para Marrocos, ou fica aquartelado em França.

1936 Julho-Dezembro. Após a sua deserção do exército, para escapar às perseguições, enceta, a partir de Nice, um longo périplo de um ano que o leva a Itália, Albânia, Jugoslávia e Áustria. Escorraçado destes países, refugia-se em Brno, Checoslováquia.

1937 Janeiro-Maio. Pede direito de asilo; conhece Ann Bloch, jovem alemã de origem judia, a quem dá lições de francês e com quem manterá uma correspondência quase amorosa.
16 de Setembro. De regresso a Paris, rouba lenços num grande armazém e é condenado a um mês de prisão com pena suspensa.

1938-1941 Segue-se uma série de roubos (de tecidos, de livros) que levam a condenações que oscilam entre os quinze dias e os dez meses.

1942 Março. Possui uma banca de alfarrabista junto a um cais do Sena, fornecida pelos seus roubos de livros; prossegue a redacção de Notre-Dame-des-Fleurs/Nossa Senhora das Flores (que começou a escrever na prisão no início desse ano), bem como da primeira versão de Haute surveillance/Alta Vigilância, intitulada Pour “la Belle”.
14 de Abril. Novamente preso por roubo de livros, compõe em Fresnes o poema “Le condamné à mort”/“O Condenado à Morte”, cuja impressão custeia. A redacção de Nossa Senhora das Flores é concluída no final do ano.

1943 15 de Fevereiro. É apresentado a Jean Cocteau, que lê com grande admiração o poema “O Condenado à Morte” e que se empenha em encontrar editor para Nossa Senhora das Flores.
1 de Março. Assinatura do primeiro contrato de autor com Paul Morihien, secretário de Cocteau, para três romances, um poema e cinco peças de teatro.


29 de Maio. Nova detenção por roubo de uma edição de luxo de Verlaine. É passível de “degredo perpétuo” por “roubo com reincidência”. Cocteau confia a sua defesa a um grande advogado. Examinado por um psiquiatra, Genet é declarado “destituído de vontade e do sentido moral”.
19 de Julho. Graças a Cocteau, escapa à reclusão perpétua e é condenado a três meses de prisão. No estabelecimento prisional de La Santé, redige Miracle de la rose.
Dezembro. Novamente detido, Genet arrisca-se a ser deportado.

1944 14 de Março. Graças a inúmeras intervenções, é finalmente libertado; não voltará mais à prisão.
Abril. Publicação de um excerto de Nossa Senhora das Flores na revista L’Arbalète, de Marc Barbezat. Em princípios de Maio, conhece Jean-Paul Sartre.
19 de Agosto. Morte nas barricadas, aquando da libertação de Paris, de Jean Decarnin, jovem resistente comunista, companheiro de Jean Genet.

1945 Março. Publicação de uma antologia de poemas, Chants secrets, nas Éditions de L’Arbalète.

1946 Março. Miracle de la rose é publicado nas Éditions de L’Arbalète. Reescrita de uma peça antiga, Alta Vigilância. Escreve Les Bonnes/As Criadas.


Julho-Agosto. Publicação na revista Les Temps modernes de excertos de Journal du voleur. Em Marselha, Genet conhece Louis Jouvet e mostra-lhe uma versão de As Criadas. Jouvet aceita montar a peça, após algumas modificações do texto.

1947 Março. Publicação de Alta Vigilância na revista La Nef.


19 de Abril. Encenação de As Criadas no Théâtre de l’Athénée (por Louis Jouvet). A primeira versão (não corrigida por Jouvet) é publicada na revista L’Arbalète. O prémio da Pléiade é atribuído a Genet, em Julho.
Novembro-Dezembro. Publicação clandestina de Pompes funèbres/Pompas Fúnebres, dedicado à memória de Jean Decarnin, e de Querelle de Brest/Querelle – Amar e Matar.

1948 31 de Maio. Os ballets Roland Petit estreiam no Théâtre Marigny ’adame Miroir, com cenários de Paul Delvaux, figurinos de Léonor Fini e música de Darius Milhaud.
Julho. É lançada uma petição, por iniciativa de Cocteau e de Sartre, com vista a obter o perdão definitivo de Genet, que ainda estava sujeito a uma pena de dez meses de prisão.
Agosto. Publicação de Poèmes nas Éditions de L’Arbalète. Redacção do texto radiofónico L’enfant criminel/A Criança Criminosa, cuja difusão foi proibida, e de Splendid’s, peça que renuncia a ver encenada e editada. Publicação clandestina de Journal du voleur em Genebra.

1949 20 de Fevereiro. Jean Marchat encena Alta Vigilância no Théâtre des Mathurins. A peça é publicada em Março pela Gallimard. Publicação de ’adame Miroir, A Criança Criminosa e Journal du voleur.


12 de Agosto. O presidente Vincent Auriol concede a Genet o indulto definitivo.

1950 Abril-Junho. Rodagem de Un chant d’amour, único filme inteiramente realizado por Genet.

1951 Fevereiro. Início da publicação das Œuvres complètes de Genet pela Gallimard. O primeiro volume, constituído pelo texto de Sartre, Saint Genet, comédien et martyr, só será lançado no ano seguinte.
Outubro. Redacção do guião “Les Rêves interdits” ou “L’Autre Versant des rêves”, que resultará no filme Mademoiselle.

1952 Maio. Redacção do guião de Le Bagne.
Agosto. Crise moral na sequência da publicação do ensaio de Sartre. Várias viagens pela Europa e Norte de África.

1953 Janeiro. Publicação do terceiro volume das suas Œuvres complètes pela Gallimard.

1954 Janeiro. A peça As Criadas é, pela primeira vez, reencenada (na sua primeira versão, anterior aos arranjos de Jouvet e editada em Maio de 1947) no Théâtre de la Huchette por Tania Balachova. Publicação das duas versões por Jean-Jacques Pauvert, com um prefácio do autor.

1955 Após seis anos de silêncio, novo período de intensa criatividade. Redige simultaneamente Le Balcon/O Balcão, Les Nègres/Os Negros e Les Paravents/Os Biombos. Em Novembro, escreve Elle. Conhece Abdallah, jovem acrobata.

1956 Junho. Publicação nas Éditions de L’Arbalète da peça O Balcão, com uma litografia de Alberto Giacometti.

1957 Março. Redacção de Le Funambule/O Funâmbulo, dedicado a Abdallah e publicado na revista Preuves.
Abril. Redacção de L’Atelier d’Alberto Giacometti. Vai a Londres assistir à estreia do seu texto O Balcão (encenado por Peter Zadek). Tenta proibir a representação.

1958 Janeiro. Publicação de Os Negros nas Éditions de L’Arbalète. Inúmeras viagens.
Junho. Acaba a primeira versão de Os Biombos.

1959 Genet trabalha na escrita de Le Bagne, que deverá constituir o segundo painel do “ciclo teatral” com que sonha e que nunca terminará.
28 de Outubro. Encenação de Os Negros por Roger Blin, no Théâtre de Lutèce. Genet reescreve Os Biombos na Grécia.

1960 18 de Maio. Após Londres, Berlim e Nova Iorque, O Balcão estreia-se em França, Paris, no Théâtre du Gymnase, numa encenação de Peter Brook. Nova versão da peça nas Éditions de L’Arbalète.

1961 Fevereiro. Publicação de Os Biombos pelas Éditions de L’Arbalète, última obra que Genet publicou em vida; a peça estreia-se no dia 19 de Maio, em Berlim, numa encenação de Hans Lietzau.
Outubro. Jean-Marie Serreau encena As Criadas no Odéon.

1962 Nova versão da peça O Balcão pelas Éditions de L’Arbalète, antecedida de “Comment jouer Le Balcon”.

1963 Setembro. Publicação nos Estados Unidos de Our Lady of the Flowers e de Saint Genet, Actor and Martyr.

1964 12 de Março. Suicídio de Abdallah. Em Agosto, Genet declara renunciar à literatura e redige um testamento.

1965 Novembro. O Departamento de Estado dos Estados Unidos recusa-lhe um visto de estadia, invocando “desvio sexual”.

1966 16 de Abril. Apresentação de Os Biombos no Odéon-Théâtre de France, com encenação de Roger Blin.
12 de Maio. Projecção no Festival de Cannes de Mademoiselle, filme realizado por Tony Richardson a partir do argumento “Les Rêves interdits”.

1967 Abril. Lançamento de “L’étrange mot d’…”/“A Estranha Palavra…” na revista Tel Quel. Partida para o Extremo Oriente no final do ano.

1968 30 de Maio. Publica no Le Nouvel Observateur o seu primeiro artigo político, “Les maîtresses de Lénine”.
24-28 de Agosto. Participa, em Chicago, nas manifestações contra a guerra do Vietname.

1970 Participa em inúmeras manifestações pela defesa dos imigrantes. Nova estadia nos Estados Unidos a convite dos Black Panthers; dá numerosas conferências. Em Julho, escreve o prefácio da colectânea das cartas de prisão de George Jackson, Les Frères de Soledad. Intervém em favor de Angela Davis. No dia 20 de Agosto, aceita um convite dos palestinianos. Permanecerá no Médio Oriente vários meses e aí fará quatro estadas em dois anos.

1971 Novembro-Dezembro. Participa nas acções de Michel Foucault e de Gilles Deleuze em favor dos prisioneiros e trabalhadores árabes.

1972 Redige um longo artigo, “Les Palestiniens”, e prossegue a redacção de notas sobre os palestinianos e os Black Panthers (que resultarão, catorze anos mais tarde, na obra Un captif amoureux).

1974 Maio. Participa em debates políticos e apoia François Mitterrand, candidato às eleições presidenciais, no L’Humanité.
Setembro. Jacques Derrida consagra um livro a Genet, Glas.

1976 Empreende a redacção de um argumento cinematográfico, “La Nuit venue”. Segunda edição de Os Biombos nas Éditions de L’Arbalète.

1977 2 de Setembro. Publicação de “Violence et brutalité”, no jornal Le Monde, onde justifica a acção da “Fracção Exército Vermelho”, artigo que suscita uma acesa polémica.

1979 Maio. Começa um tratamento de quimioterapia para debelar um cancro na garganta.

1981 Começa a redigir um novo argumento cinematográfico, “Le Langage de la muraille”, que evoca a colónia de Mettray.

1982 25 de Janeiro. Entrevista filmada com Bertrand Poirot-Delpech. Instala-se progressivamente em Marrocos, que elegerá como local de residência principal.
11 de Setembro. Regressa ao Médio Oriente e é uma das primeiras testemunhas dos massacres de Sabra e Chatila. Escreve então Quatre heures à Chatila/Quatro Horas em Chatila, publicado em Janeiro de 1983 na Revue d’études palestiniennes.
Dezembro. Rainer Werner Fassbinder apresenta o filme Querelle, a partir do romance de Genet, no Festival de Veneza.

1983 Junho-Julho. Início da redacção de Un captif amoureux. Patrice Chéreau encena Os Biombos no Théâtre des Amandiers, e Peter Stein encena Os Negros na Schaubühne de Berlim. Genet recebe, em Paris, o Grand Prix national des Lettres.

1985 Agosto. Acompanhado pelo encenador Michel Dumoulin, escreve, em Rabat, uma nova versão de Alta Vigilância.
Novembro. Conclui Un captif amoureux, do qual entrega o manuscrito a Laurent Boyer, que será seu testamenteiro. O livro será lançado um mês após a sua morte.
Dezembro. O Balcão é representado na Comédie-Française (encenado por Georges Lavaudant).

1986 Março. Corrige as primeiras provas de Un captif amoureux e volta para Marrocos por dez dias.
15 de Abril. Jean Genet morre num pequeno quarto de hotel, em Paris. É enterrado no velho cemitério espanhol de Larache, em Marrocos.

Michel Corvin – “Chronologie: 1910-1986”. In Jean Genet – Les Nègres. Édition présentée, établie et annotée par Michel Corvin. [Paris]: Gallimard, D.L. 2005. (Folio. Théâtre). p. 127-133.
Esta cronologia é largamente inspirada na que foi estabelecida por Albert Dichy (para a biografia de Jean Genet por Edmund White).
Trad. Regina Guimarães.