27.9.06

A música sob alta vigilância ( a propósito de Fernando Lopes-Graça)



É a voz do Portugal moderno. Conhecia profundamente as obras-primas de Debussy ou de Stravinsky, mas bebeu a sua inspiração nas canções populares portuguesas. Penou para ganhar a vida como músico, mas é o autor de uma das obras mais vastas de toda a música do século XX. Acumulou prémios e distinções por essas obras, mas jamais foi oficialmente reconhecido como digno de exercer o seu ofício durante o Estado Novo. Poderia ter forjado uma carreira fulgurante em França, ou nos Estados Unidos, se tivesse escolhido o exílio, como Prokofiev; ao invés, partiu para o combate com a sua caneta e o seu papel pautado, os seus artigos e a sua música, ao lado dos grupos antifascistas, durante quase meio século.

Totalmente empenhado, social e politicamente, colocou-se no entanto sempreà margem de quaisquer dogmas. Ferozmente independente, preso por diversas vezes pela polícia política de Salazar (a PIDE), manteve-se ainda assim o espírito mais livre do mundo artístico da sua época. Fernando Lopes-Graça completaria 100 anos em 17 de Dezembro de 2006.

Música, Revolução e Liberdade

1906 foi, ao mesmo tempo, o ano do nascimento do titã Chostakovitch em São Petersburgo, e o ano da publicação das vinte primeiras canções populares harmonizadas por Béla Bartók. Se a obra do compositor soviético é imensa, a de Lopes- Graça exprimir-se-á igualmente em todos os domínios da música. O nacionalismo musical de Béla Bartók será o modelo a partir do qual desenvolverá o seu próprio caminho enquanto compositor português: é como que um duplo prelúdio simbólico da vinda ao mundo de Fernando Lopes-Graça na pequena cidade de Tomar, onde a luz é "o monumento [que] completa a paisagem; a paisagemé o quadro digno do monumento; e a luzé o elemento transfigurador e glorificador da união quase consubstancial da Natureza com a Arte".

Depois da estreia como pianista no cine-teatro da sua cidade natal, Lopes- Graça entra para o curso superior do Conservatório Nacional de Lisboa em 1923, nas classes de gloriosos antecessores: Tomás Borba e Luís de Freitas Branco, e em 1927 foi admitido no curso de virtuosidade do grande José Viana da Mota. Em 1928, a personalidade de Lopes-Graça entra em cena: interpreta a sua primeira obra, intitulada Variações Sobre um Tema Popular Português, e inicia as primeiras acções de resistência política em Tomar, ao fundar o jornal A Acção. Pagará caro o pertencer à Organização Comunista de Tomar. Depois de obter as mais altas classificações e prémios no Conservatório, é impedido de comparecer no dia do concurso ao posto de professor. Em 27 de Outubro de 1931, o compositor Luís de Freitas Branco anota no seu diário: "A cena que se passou no Conservatório é grave e sintomática: dois agentes da polícia quiseram levar preso o candidato a concurso para a cadeira de Piano, Fernando Lopes-Graça. A prisão era motivada por inscrições nas paredes da cidade de Tomar, de que Fernando Lopes- Graça teria sido autor e instigador, e que significavam pouco amor à ditadura. O júri protestou, impôs-se à polícia, o candidato prestou as suas provas, seguiu preso para Santarém mas ficou classificado em primeiro lugar com 18 valores".

Fernando Lopes-Graça é encarcerado no Aljube e colocado durante algum tempo em residência vigiada em Alpiarça, onde escreve: "Revolução e Liberdade são sinónimos, são equivalentes. São leis imutáveis gravadas na face do Cosmo, eternas e divinas como ele".

Resistir pela música e pela escrita

A resistência de Lopes-Graça ao regime político não passa somente pela música mas também pela escrita; é um defensor convicto do modernismo estético, contrastando assim com o status quo então em vigor. Em 1929, funda a revista De Música, com Pedro do Prado, na qual colaboram outros compositores, como Armando José Fernandes (também nascido em 1906) e Jorge Croner de Vasconcelos. Dá diversas primeiras audições em Portugal de obras de autores tão importantes como Hindemith ou Schoenberg, frequenta a Faculdade de Letras, e escreve ainda na revista Presença ao lado de poetas vanguardistas portugueses.

Não obstante as suas extraordinárias capacidades de compositor, ensaísta e pianista, o regime não lhe permite aproveitar uma bolsa, obtida em 1934, para estudar musicologia em Paris. Imperturbável, e depois de ter sido de novo preso em 1936, Lopes-Graça irá em 1937, eàs suas próprias custas, estudar com Charles Koechlin em Paris (composição e orquestração). Na Cidade Luz participa das actividades culturais da Frente Popular e escreve uma série de crónicas musicais parisienses para a revista Portugal. A Segunda Guerra Mundial rebenta, Lopes-Graça alista-se no corpo de voluntários Amis de la République Française e colabora com numerosos exilados da guerra civil espanhola, mas recusa uma proposta de naturalização francesa e regressa a Lisboa para escapar às botarras nazis.


Em Portugal continua a escrever o que pensa, nomeadamente como crítico musical de O Diabo e da Seara Nova. Em 1941, as suas opiniões valem-lhe ser impedido de ensinar nos estabelecimentos oficiais: doravante continuará incansavelmente o seu labor pedagógico, musical e político no seio da Academia de Amadores de Música. No Século Ilustrado escreve: "A Academia é o meu lar musical. (...). Como artista, mas sobretudo como pedagogo, aqui me realizei na medida em que me foi vedado realizar-me noutros sectores".
Organiza o Coro da Academia de Amadores de Música e compõe as Canções Heróicas, afirmando assim o seu amor pelo Povo e a constância da sua trajectória artística. Estas Canções, que ele apelidava de "utilitárias", serviram directamenteà militância política pela causa democrática e resistência antifascista. As primeiras publicações das Heróicas, na Seara Nova em 1946, serão proibidas pela censura, que impedia ainda que os poemas fossem ouvidos e cantados em espectáculos ou sessões públicas.

Mesmo assim, e paralelamente a estas obras politicamente empenhadas, o seu notável trabalho de criador moderno e visionário é recompensado por quatro vezes com o Prémio de Composição do Círculo de Cultura Musical, nomeadamente em 1944, com a História Trágico-Marítima, grande cantata para tenor e orquestra sobre um poema de Miguel Torga, testemunho evidente das escolhas temáticas de Lopes-Graça, firmemente ancoradas na História de Portugal. Funda ainda a Sociedade de Concertos Sonata, orientada para a difusão da música do século XX, cujos concertos eram vigiados de muito perto pela PIDE, encarregada, por exemplo (quando de um concerto em 1951), de identificar os espectadores que se distinguissem no meio da multidão por aplausos considerados demasiado "excessivos"...

O reconhecimento internacional

Entre dias de luta e prisões políticas, Lopes-Graça é, porém, cada vez mais conhecido fora de Portugal: participa nos congressos de intelectuais na Polónia e na Checoslováquia, mas guarda sempre devidas distâncias em relação às posições estético- ideológicas do 2.° Congresso dos Compositores Progressistas de Praga, e dos regimes comunistas em geral.



É, em 1947, que empreende o seu trabalho pioneiro em prol da identidade da música portuguesa do século XX: a recolha científica dos cantares e músicas tradicionais do país, realizada com o francês (de origem corsa) Michel Giacometti, trabalho que resulta, em finais dos anos 50, num volume impressionante de gravações classificadas e analisadas, que cobrem todo o território nacional, incluindo as ilhas da Madeira e Açores. Estas músicas, já estudadas por Lopes-Graça desde 1938, à época das suas primeiras harmonizações de canções populares, permanecerão vivas em toda a comunidade rural do país, e são a essência da sua linguagem musical tão pessoal.
Mau grado a riqueza deste trabalho imenso, essencial para a música portuguesa (como o foi o de Béla Bartók para a música da Hungria), Lopes-Graça nãoé autorizado a deslocar-se ao júri do Concurso Internacional Béla Bartók, de Budapeste, que o havia convidado em 1949.É o seguimento de um plano de isolamento engendrado pelo regime, afim de evitar que o compositor alargasse os seus contactos internacionais. Nesta lógica fascista, a sua correspondência em 1965 com o violoncelista Mstislav Rostropovitch, que lhe havia encomendado o Concerto da Camera con Violoncello Obligatto, será sistematicamente boicotada pela PIDE. O Ministro da Educação Nacional obriga-o a abandonar em 1954 o seu diploma de ensino privado: é forçado a deixar a Academia de Amadores de Música e a fazer traduções (Rousseau, Romain Rolland…), tentando sobreviver a todo o custo.

Sem descanso, continua porém a bater- se pela identidade musical do seu país: compõe e harmoniza com uma fé inabalável na liberdade futura. Da sua mão nascem sucessivamente as Viagens na Minha Terra (1953), as Melodias Rústicas Portuguesas (1956), a 5ª série das Canções Populares Portuguesas (1959), e os 24 cadernos das Canções Regionais Portuguesas, que abrangem os anos entre 1943 e 1988…
Um símbolo: em 1960, para as comemorações do 50.º aniversário da República, não hesita em editar o segundo volume das Canções Heróicas, que é vendido clandestinamente! Lopes-Graça declara:"Poderia dizer-lhes enfim, como além de uma Arte a considero [a Música] uma Religião, a minha única religião (...) e como visiono uma única Religião do Futuro, a única Religião de uma Humanidade Livre, Justa e Sábia".

A voz do povo na música erudita

Somente a seguir ao 25 de Abril de 1974 poderá Fernando Lopes-Graça viver livremente da sua música, como compositor; viver vinte anos de uma liberdade há tanto esperada… Membro do Partido Comunista até à morte, quis "fazer entrar a voz do povo na música erudita" e fazer esta chegar a franjas da sociedade onde normalmente não chegava. Criador de um"folclore imaginário", segundo a expressão francesa associada a Bartók, Lopes- Graça é também autor de livros essenciais no plano da reflexão estético-musicológica, nos quais confronta a vitalidade da poesia portuguesa e a falta de identidade da música portuguesa. Fará a apologia da canção (lied) composta sobre textos dos maiores poetas nacionais de todas as épocas: Eugénio de Andrade, Gil Vicente, Bocage, Camões, Mário Cesariny, Fernando Pessoa, João José Cochofel, Antero de Quental…

A sua obra vocal/coral é gigantesca, e conta - somente obras "a cappella" - 228 canções escritas de 1940 a 1980! Segundo o compositor francês Louis Saguer, seu grande amigo, a música de Fernando Lopes-Graça é de uma grande multiplicidade de técnicas e estilos: "da tonalidade mais clássica ao atonalismo mais marcante, repleta das ricas polifonias da música regional portuguesa e alimentada por um vasto tesouro constituído pelas obras-primas do mundo inteiro. A sua pesquisa expande-se em todas as direcções, sempre na certeza de encontrar a síntese necessária à sua expressão como músico e cidadão". O compositor, falecido em 27 de Novembro de 1994, deixará atrás de si um monumento de mais de 260 obras.

Antes dele, a música portuguesa não possuía uma continuidade histórica, nenhum compositor podia reclamar a sua música como resultado do processo evolutivo de um pensamento musical português. Músico mítico com mil facetas, carregando nele todas as particularidades, sofrimentos e esperanças do povo português, Fernando Lopes-Graça traçou magistralmente a via para a identidade dos compositores de hoje. A porta da sua casa na Parede estava sempre aberta aos jovens apaixonados pela música, como testemunha Sérgio Azevedo, um dos mais brilhantes compositores actuais.


A admiração por Beethoven e Bartók fez nascer nele essa extrema exigência em relação a si próprio e também em relação aos outros, e à sociedade que viu nascer a sua música. Cumulado de honras logo a seguir à Revolução, foi reintegrado nas funções de director da Academia de Amadores de Música e nomeado presidente da Comissão para a Reforma do Ensino Musical. Foram inúmeras as inevitáveis e múltiplas condecorações que então recebeu. Encomendado pela Secretaria de Estado da Cultura, o Requiem - Pelas Vítimas do Fascismo em Portugal é estreado a 27 de Julho de 1981. Entre os cantores solistas nesse dia memorável, uma amiga de sempre: a contralto Dulce Cabrita, maravilhosa intérprete da sua música, como o serão também ao longo de toda a sua vida, fiéis na arte e a seu lado na luta, o escritor João José Cochofel, o guitarista Piñero Nagy, o barítono Fernando Serafim, os pianistas Filipe de Sousa, Olga Prats, Nella Maissa e, sobretudo, Maria da Graça Amado da Cunha (criadora de um número considerável de obras, cujo touché sensível era a autoridade, a inteligência mesmo) e tantos outros que, ao escolherem interpretar a música de Fernando Lopes-Graça, correram riscos por lutar, quer pela liberdade, quer por servir a obra de um compositor hoje em dia essencial à História da Música do século XX.

Bruno Belthoise* (músico e compositor), texto traduzido por Sérgio Azevedo
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