Lançamento na Cinemateca 28 Junho às 21h30 de Lacrimae Rerum ( edição Orfeu Negro), de Slavoj Zizek, com a presença do autor
Cinemateca
Rua Barata Salgueiro, 39
1269-059 Lisboa
Tel: 21 359 62 00
Fax: 21 352 31 80
Email: cinemateca@cinemateca.pt
Slavoj Zizek, filósofo, pensador e investigador, apresenta na Cinemateca de Lisboa o seu livro sobre cinema moderno – Lacrimae Rerum – com ensaios sobre Hitchcock, Lynch, Tartovsky e outros cineastas de renome
“LACRIMAE RERUM reúne um conjunto de ensaios sobre cinema moderno. Numa abordagem às filmografias de Kieślowski, Hitchcock, Tarkovsvki e Lynch, Žižek decripta as imagens e o cinema de cada um destes autores para nos propor um estudo aprofundado dos seus motivos e movimentos. E colocando-nos face aos nossos próprios medos, ou desejos, estabelece a ponte final da análise entre o espectador-receptor e a projecção das suas pulsões em imagens tão familiares quanto fabricadas.”
Lacrimae Rerum reuniu ensaios sobre Alfred Hitchcock, David Lynch, Andrei Tarkovsky, Krzysztof Kieslowski, onde analisa as imagens de cada um destes cineastas, conhecidos pelo seu cinema de autor, para encontrar as pulsões humanas que se escondem por trás de cada um delas.
Zizek, psicanalista e investigador de Sociologia na Universidade de Liubliana, tem uma vasta bibliografia, traduzida em mais de 20 idiomas, e colaborou com Sophie Fiennes no documentário The Pervert’s Guide to Cinema, de 2006.
Slavoj Žižek (Liubliana, 21 de Março de 1949) é um sociólogo, filósofo e crítico cultural esloveno. Seu nome é pronunciado como "slávoi jijec".
Nasceu em Liubliana, na antiga Jugoslávia (hoje capital da Eslovénia). Doutorou-se em Filosofia na sua cidade natal e estudou Psicanálise na Universidade de Paris.
Žižek é professor da European Graduate School e pesquisador sénior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É também professor visitante em várias universidades estadunidenses, entre as quais estão a Universidade de Columbia, Princeton, a New School for Social Research, de Nova Iorque, e a Universidade de Michigan.
Žižek é conhecido por seu uso de Jacques Lacan numa nova leitura da cultura popular - por exemplo, Alfred Hitchcock, David Lynch, V. I. Lenin, fundamentalismo e tolerância, correcção política, subjectividade nos tempos pós-modernos e outros tópicos.
Em 1990, candidatou-se à presidência da República da Eslovénia.
Teoria: o real, o simbólico e o imaginário
O real
Aqui, o "real" resulta ser um termo bastante enigmático, e não deve ser equiparado com a realidade, uma vez que a nossa realidade está construída simbolicamente; o real, pelo contrário, é um núcleo duro, algo traumático que não pode ser simbolizado (isto é, expressado com palavras). O real não tem existência positiva; só existe como abstracto.
Nem tudo em realidade pode ser desmascarado como una ficção; basta ter presente certos aspectos - pontos indeterminados - que têm que ver com o antagonismo social, a vida, a morte, e a sexualidade. Temos que enfrentar com estes aspectos se quisermos simbolizá-los. O real não é nenhuma espécie de realidade atrás da realidade, mas sim o vazio que deixa a própria realidade incompleta e inconsistente. É o espectro do fantasma; o próprio espectro em si é o que distorce a nossa percepção da realidade. A trilogia do simbólico/imaginário/real se reproduz dentro de cada parte individual da subdivisão. Há também três modalidades do real:
O "real simbólico": o significante reduzido a uma fórmula sem sentido (como em física quântica, que como toda ciência parece arranhar o real mas só produz conceitos apenas compreensíveis)
O "real real": uma coisa horrível, aquilo que transmite o sentido do terror nas películas de terror.
O "real imaginário": algo insondável que permeia as coisas como um pedaço do sublime. Esta forma do real torna-se perceptível na película Full Monty, por exemplo, no facto de que na nudez dos protagonistas desempregados, estes devem despir-se por completo; noutras palavras, através deste gesto extra de degradação "voluntária", algo da ordem do sublime se faz visível. A psicanálise ensina que a realidade (pós-moderna) precisamente não deve ser vista como uma narrativa, mas como o sujeito o há de reconhecer, suportar e ficcionar o núcleo duro do real dentro de sua própria ficção.
O simbólico
O simbólico inaugura-se com a aquisição da linguagem; é mutuamente relacional. Assim, sucede aquilo de que "um homem só é rei porque os seus súbditos se comportam perante ele como um rei". Ao mesmo tempo, permanece sempre uma certa distancia no que diz respeito ao real (excepto na paranóia): nem só é louco o mendigo que pensa que é rei, também aquele rei que verdadeiramente crê que é um rei. Uma vez que efectivamente, este último só tem o "mandato simbólico" de rei.
O real simbólico é o significante reduzido a una fórmula sem sentido. O imaginário simbólico qual símbolos jungianos. O simbólico simbólico como o falar e a linguagem como sentido em si. O visor do monitor como forma de comunicação no ciberespaço: como um interface que nos leva a uma mediação simbólica da comunicação, a um abismo entre quem seja que fala e a "posição de falar" em si (p.ex. a alcunha, ou a direcção de correio). "Eu" nunca "de facto" coincido exactamente com o significante, não me invento a mim mesmo; em contrapartida, a minha existência virtual foi, em certo sentido, já confundida com o surgimento do ciberespaço. Aqui cada um, deve chegar a entender-se com uma certa insegurança, mas não pode ser resolvida como num simulacro de contingente pós-moderno... Aqui também, como na vida social, as redes simbólicas circulam á volta dos núcleos do real. As redes simbólicas, são a nossa realidade social.
O imaginário
O imaginário encontra se situado ao nível da relação do sujeito consigo mesmo. É como o olhar do Outro na etapa do espelho, a falta em esse reconhecimento ilusório, como conclui Jacques Lacan citando a Arthur Rimbaud: "Eu sou um outro" ("Je suis un autre"). O imaginário é a fantasia fundamental que é inacessível á nossa experiência psíquica e se eleva do espectro fantasmático em que encontramos objectos de desejo. Aqui também podemos dividir o imaginário entre um real (o fantasma que assume o lugar do real), um imaginário (a imagem/espectral em si que serve como isco) e um simbólico imaginário (os arquétipos de Jung e o pensamento New Age). O imaginário nunca pode ser agarrado, já que todo discurso sobre ele sempre estará localizado no simbólico.
Todos os níveis estão interligados, de acordo com Jacques Lacan (desde o seminário XX para a frente), numa forma de nó gordiano, como três anéis enlaçados juntos de maneira que se um deles se desenlaçara, o resto também cairia.
Conceitos
Significante vazio – Signo que, devido à repetição exaustiva em circunstâncias totalmente díspares, perde completamente o seu valor. Ex: último andamento da nona sinfonia de Beethoven que é ouvido em toda e qualquer efeméride social e política, tentando fazer com que nos esqueçamos das nossas oposições e participemos nesse momento mágico de fraternidade humana.
Auseinandersetzung – Termo operado de Heidegger que transmite a necessidade europeia de se repensar, uma confrontação interpretativa, quer em relação aos outros quer em relação ao passado da própria Europa em todas as suas dimensões, das suas raízes antigas e judaico-cristãs à ideia recentemente defunta de Estado-providência, sobretudo quando actualmente a Europa se encontra balizada pela tecnologia desenfreada da China, por um lado, e pela globalização e economia americana, por outro. A pior opção seria, sem dúvida, a proposta de uma “síntese criadora” destes dois aspectos, no interior da Europa, tendendo para o que chamaríamos de “globalização de rosto europeu”. A época é, portanto, propícia a questionar tudo e a repetir a pergunta – “O que é a Europa?”.
Censura liberal – Sentimo-nos livres exactamente porque nos falta precisamente a linguagem que poderia transmitir essa mesma falta de liberdade, ainda que se reconheça que, supostamente, vivemos na época em que todos somos totalmente livres. “Guerra contra o terrorismo”, “democracia e liberdade”, “direitos do homem” são falsos termos que mistificam a nossa percepção da situação e nos impedem de verdadeiramente reflectir sobre ela. “As nossas profundas «liberdades» servem para mascarar e sustentar a nossa profunda «falta de liberdade»”. “Somos livres de escolher… desde que façamos a boa escolha”. É exactamente o que se passa quando, hoje em dia, nos pedem para escolher: ou democracia, ou fundamentalismo. Entre estes dois termos, é impossível não escolher a democracia. Todavia, importa reter que o problema da proposta não é o fundamentalismo, mas sim a democracia, como se a única alternativa fosse a democracia liberal parlamentar.
A paixão pelo Real – Acto de autenticidade executado; realização directa da nova ordem há muito aguardada; alcançar finalmente a própria “coisa”. A experiência directa do Real opõe-se à experiência directa da realidade social quotidiana, uma vez que o Real surge como o preço a pagar depois de despojar a realidade das suas camadas ilusórias. A autenticidade do Real reside num acto violentamente transgressor, como o Real lacaniano – essa Coisa que Antígona enfrenta quando decide transgredir as leis da cidade. No Ocidente desenvolvido, a frenética actividade social dissimula a monotonia do capitalismo global, a ausência de um Evento… Talvez o actual terror fundamentalista tenha como propósito o de nos fazer emergir, a nós, cidadãos do Ocidente, do nosso torpor, do universo do nosso condicionamento ideológico quotidiano. O colapso das torres pode ser visto como a apoteose conclusiva da arte do século XX e da sua paixão pelo Real.
Cutters – Indivíduos que se cortam com o intuito de enraizar solidamente o ego na realidade corporal para combater a angústia insuportável do indivíduo que tem a impressão de não existir. O cutting opõe-se à prática da tatuagem, que funciona como testemunho da inclusão do sujeito na ordem simbólica, inscrevendo-a no próprio corpo.
Multiculturalismo liberal e tolerante – Sistema político vigente que se caracteriza, essencialmente, por uma política sem política, aquilo que também pode ser designado por uma arte da administração elaborada por especialistas, ou ainda a experiência do Outro privado da sua Alteridade. A realidade virtual não faz mais que generalizar este processo que consiste em oferecer um produto privado da sua substância, do seu núcleo de real, de resistência material. Este fenómeno é ainda percebível através dos numerosos produtos postos à venda no mercado dos quais foram extirpadas as suas propriedades malignas: café sem cafeína, cerveja sem álcool, entre outros (ver “dessubstancialização”). Por fim, as atitudes mais recorrentes caracterizam-se por uma condescendência e um respeito repugnantes pelo Outro.
The Real Thing – A Coisa Verdadeira, o Vazio destruidor. Culmina na queda das torres, nos snuff movies, nos sites porno em que uma câmara é aplicada a um vibrador de forma a dar a ver o interior de uma vagina. Aliás, existe uma conexão evidente entre as imagens da realidade e as imagens divulgadas mediaticamente. Tudo ganha uma distância que permite que a dor das vítimas seja a volúpia do espectador. Veja-se a repetição compulsiva das imagens da queda do WTC e o fascínio que tais imagens sobre nós exerceram.
Desrealização – Tentativa de tornar a realidade privada de substância, de inércia material. Embora o número de vítimas do WTC não parasse de ser repetido, é surpreendente constatar a quase ausência de imagens de carnificina. Pelo contrário, sempre que se assiste à difusão de imagens do terceiro mundo, todo e qualquer pormenor macabro (cabeças degoladas, membros extirpados…) é sempre apresentado antecedido do aviso do horror das imagens que se seguem. Com isto, pretende-se sempre desrealizar a realidade, alterar a substância do que se vive tentando incutir ao espectador que o terrorismo está além e não aqui. Por conseguinte, na sociedade consumista do capitalismo avançado, é a própria vida que possui, de certo modo, as características do espectáculo de Hollywood, operando essa desmaterialização da vida verdadeira.
A travessia do Fantasma – Comummente julga-se que a psicanálise tem como pressuposto libertar-nos dos nossos fantasmas, permitindo-nos confrontar com a realidade tal qual ela é. Nada mais errado: Lacan pretendia, pelo contrário, dar a ver como, na nossa existência quotidiana, nos encontramos imersos na realidade, estruturada e sustentada pelo fantasma, sendo esta imersão perturbada pelos sintomas que testemunham o facto de um outro nível da nossa psique, reprimido, resistir a essa imersão. Atravessar o fantasma significa, então, paradoxalmente, identificar-se completamente com ele, isto é, com esse fantasma que estrutura o excesso que resiste à nossa plena imersão na realidade quotidiana, distinguir claramente o que é realidade do que é a nossa ficção, o nosso fantasma. Temos de conseguir distinguir, naquilo que apreendemos como ficção, o núcleo sólido do Real, que só podemos enfrentar se o ficcionarmos. Em suma, temos de distinguir como uma parte da realidade é transfuncionalizada pelo fantasma, de modo que, apesar de constituir parte da realidade, é apreendida no modo da ficção. A exposição do próprio Fantasma é um acto demasiado traumático para ser dito numa conversa. Daí que na psicanálise a figura do terapeuta tende à invisibilidade, ou então como, n’A Pianista, a professora dá a conhecer o seu Fantasma ao aluno apenas por escrito. O Fantasma exposto constitui o núcleo do seu ser, que está mais nela do que ela própria.
Existência/ Insistência – Os traumas históricos que não estamos prontos a enfrentar continuam-nos a assombrar com ainda mais força. Devemos portanto aceitar este paradoxo: o verdadeiro esquecimento de um acontecimento deve começar pela sua rememoração. Para compreender o justo alcance deste oximoro, devemos ter presente no espírito que o contrário da existência não é a não existência, mas sim a insistência: insistir para que exista para que seja absorvido e deixe de existir. Assim, as presentes revoluções repetem e redimem as suas malogradas tentativas passadas: os sintomas, as causas, as marcas do passado que são retroactivamente redimidas pelo milagre da intervenção revolucionária, não são tanto actos esquecidos, mas falhanços esquecidos para passar ao acto, tentativas malogradas para suspender a força do aparelho social que inibe os actos de solidariedade para com os outros. Num certo sentido, os sintomas, os falhanços, porque não têm existência, insistem até ganharem uma plena consistência ontológica, como se fossem arquivos virtuais vazios que guardamos que persistem da experiência histórica. O seu principal objectivo é o de preencher o vazio deixado pelo malogro de uma intervenção real na crise social.
Excesso de Superego – Este conceito pode ser materializado na figura do coronel Kurtz (Marlon Brando em Apocalipse Now) ou até mesmo, a meu ver, na personagem Mestre Ubu. Ambos simbolizam o pai primordial freudiano por excelência, o pai obsceno do gozo ao qual nenhuma lei simbólica opõe um limite, o Mestre absoluto que ousa confrontar-se com o Real do gozo aterrador. A sua supra-identificação com o sistema leva-o a tornar-se o excesso que o sistema, posteriormente, é obrigado a eliminar. Bin Laden, Hitler e Estaline são figuras que cabem dentro deste conceito. O que permanece fora do nosso horizonte é a perspectiva de uma acção política quebrando o círculo vicioso do sistema que engendra o excesso do seu superego, uma violência revolucionária que já não assentaria na obscenidade do superego, passada essa primeira fase de ostentação do verdadeiro bacanal da destruição, da despesa supérflua, puramente revolucionária. É este acto impossível, em que a violência revolucionária já não assentaria na obscenidade do superego, que todavia ocorre em qualquer autêntico processo revolucionário. Note-se ainda que, para Zizek, o desejo pio de privar a revolução deste excesso é simplesmente o desejo de ter uma revolução sem revolução. A grande diferença entre Lenine e Estaline consiste primeiramente na explosão da energia leninista puramente destruidora, portanto liberatória, para o cabouco estalinista e obsceno da Lei: Lenine é revolucionário e Herói, enquanto Estaline é ditador totalitário, resultado do excesso de Superego estatal que teria de ser eliminado.
Herói – Assume plenamente a fundação suja e obscena do poder, aquele que diz: “Mãos à obra, alguém tem de fazer o trabalho sujo”. Assume que o Real é alcançado pela destruição do elemento excessivo que o antagonismo da revolução produz. Age por si, sem antecipar consequências. O seu lema é: “Atacamos e logo veremos”. O que há de interessante nesta expressão é o facto de ela combinar o voluntarismo, uma atitude activa, empreendedora, arriscada, e um fatalismo mais fundamental: uma pessoa age, salta e depois… espera que as coisas corram bem. E se fosse desta posição que mais precisamos hoje, divididos como estamos entre as duas faces da “ideologia espontânea” da globalização contemporânea – por um lado, o pragmatismo utilitário e ocidental e, por outro, o fatalismo oriental?
Política da Abstracção/ Dessubstancialização – A guerra de alta tecnologia e os bombardeamentos de precisão são, a título de exemplo, um dos casos que o autor cita. Com estes exemplos, Zizek dá conta não só da distância a que as guerras são travadas, sendo cada vez mais raro o combate frontal corpo a corpo, como também da alta tecnologia e da presença de especialistas que decidem ataques mediante números, hipóteses e estimativas. O soldado de guerra é, actualmente, um especialista de informática que carrega em duas ou três teclas para fazer explodir uma porção de território do inimigo. Tendo ainda como base dados puramente matemáticos, esta política permite que um país seja financeiramente são, ainda que um milhão de habitantes esteja a morrer à fome. Perante esta política, surge uma nova arte da guerra bacteriológica, recorrendo ainda ao uso de gás letal ou ainda veneno que, combinando premissas a partir do ADN, matam apenas especificamente certo grupo de pessoas.
Fetichismo – De acordo com Marx, o prazer do fetichismo recaía principalmente na posse física do objecto e da sua própria concretude. Porém, na época em que vivemos, o fetichismo atinge o seu máximo paroxismo quando o dinheiro, a guerra e os vírus vivem em todo o lado e atingem em pleno uma realidade virtual. Mil euros e uma bactéria nociva pertencem muito mais a uma inscrição virtual, algures no planeta, do que propriamente a uma realidade física. O universo conhecido começa a desmoronar-se e a vida a desintegrar-se.
Choques de civilizações – Os choques reais estão, basicamente, todos ligados ao capitalismo global. Em vez de glosar interminavelmente sobre a intolerância característica do fundamentalismo islâmico em relação às nossas sociedades liberais, deveríamos centrar a nossa atenção sobre o pano de fundo económico do conflito – o choque de interesses económicos e geopolíticos dos próprios E.U.A. Estes choques de que falamos designam uma série de massacres perpetrados um pouco por toda a parte – Ruanda, Serra Leoa, Congo, Bósnia, Kosovo, Afeganistão… No fundo, todos estes casos atestam bem o facto de que os Estados Unidos dão claramente mais primazia à economia do que à democracia.
O Grande Outro – Aquilo em cuja prole agimos, em cujo nome se exerce uma busca impiedosa do poder, para o qual transferimos as nossas crenças. Aquele que acredita e sustém o nosso lugar, o nosso sujeito-suposto-crer.
A Outra Via – A verdadeira escolha para os dias que correm situa-se entre o capitalismo e o seu Outro, representado, neste momento, por correntes marginais como o movimento antiglobalização. Esta escolha faz-se acompanhar por fenómenos secundários estruturais, entre os quais, principalmente, a tensão inerente entre o capitalismo e o seu próprio excesso. Com efeito, é sempre o mesmo modelo: a fim de esmagar o seu verdadeiro inimigo, o capitalismo mobiliza o seu excesso obsceno sob a forma do fascismo; mais tarde, sob a forma do comunismo; agora, sob a forma do fundamentalismo e do terrorismo. Na verdade, a guerra contra o terrorismo, empreendida pela América, não é a nossa guerra, mas antes uma luta interna, no seio do universo capitalista. A democracia é hoje o fetiche político principal. A ideia de uma democracia honesta é uma ilusão, tal como é ilusória a ideia de uma ordem jurídica desembaraçada do complemento do seu superego obsceno. A ordem política democrática é, por natureza, susceptível de corrupção. Na realidade, a escolha é clara: aceitamos e endossamos essa corrupção dentro do espírito de uma sabedoria resignada e realista, ou reunimos coragem e formulamos uma alternativa de esquerda à democracia, para quebrar o círculo vicioso da corrupção democrática e das campanhas empreendidas pela direita que pretendem desembaraçar-se dela. (vide coragem ética)
Cinismo – Recordo as palavras de Mohammed Omar, um líder talibã que se dirigiu ao povo americano a 25 de Setembro de 2001: “Vós aceitais tudo o que diz o vosso governo, seja verdade ou mentira (…). Não sabeis pensar por vós próprios? Seria melhor, para vós, se julgásseis por vós próprios, se utilizásseis a vossa própria compreensão das coisas”. Apesar de estas considerações serem indubitavelmente uma manipulação cínica (porque não dar o mesmo direito ao julgamento e à compreensão dos próprios Afegãos?), não parecerão elas contudo bastante apropriadas à situação, quando consideradas de forma abstracta e retiradas do seu contexto? (cf. crentes pós-modernos)
Felicidade – É necessário reunir três condições fundamentais: 1 – Haver bens materiais básicos, mas não completamente, evitando que o excesso de consumo gere insatisfação; por vezes, a penúria ensina-nos a aproveitar melhor os bens de consumo; 2 – Poder imputar o que corre mal ao Outro, para que ninguém se sinta responsável; a culpa é sempre deles; 3 – Haver um outro espaço com o qual se pode sonhar e, por vezes, visitar. Reunidas estas três condições, feliz era a Checoslováquia nos anos 70, princípios de 80. No sentido lacaniano do termo, a felicidade assenta na incapacidade ou na indisponibilidade do sujeito para se confrontar plenamente com as consequências do seu desejo: o preço a pagar pela felicidade é que o sujeito permanece entalado na inconsistência do seu desejo. Na vida quotidiana, julgamos desejar coisas que, na verdade, não desejamos e, em última instância, o pior que nos pode acontecer é obter o que desejamos oficialmente. A felicidade é, portanto, hipócrita por natureza: é a felicidade de sonhar com coisas que não desejamos verdadeiramente.
“Não quero saber nada sobre isso” – Porque o saber traz infelicidade, Lacan sustém que esta é a principal atitude do homem face ao conhecimento, como se houvesse uma resistência fundamental à ideia de saber mais. Qualquer verdadeiro progresso, na área do saber, só se obtém através de um combate doloroso contra essa propensão espontânea. Por exemplo, se corrêssemos o risco de ter contraído uma doença grave que nos mataria aos trinta e cinco anos, quem faria voluntariamente os exames para aferir se corria efectivamente esse risco? Contudo, o problema com uma solução do género “Autorizo outra pessoa a saber o resultado e a não mo dizer, caso ele seja positivo, ajudando-me a morrer durante o sono” levanta uma questão: eu saber que o Outro sabe arruína tudo e expõe-me a um total sentimento de desconfiança.
Saber do saber do Outro – Para Lacan, esta frase resume o facto de toda a economia psíquica de uma situação mudar radicalmente não porque eu aprendi qualquer coisa que ignorava, mas antes porque aprendi que o Outro, que eu julgava ignorante, sabia desde o início e agia como se nada soubesse para salvar as aparências. Existirá situação mais humilhante do que a do marido infiel que, posteriormente, vem a descobrir que a sua mulher tinha conhecimento de tudo embora o tenha calado, por delicadeza ou por desamor?
Crentes pós-modernos – Para o animal humano, é difícil e, até mesmo, traumático aceitar que a sua vida está ao serviço de uma Verdade e que não é simplesmente um processo estúpido de reprodução e busca de prazer. É desta forma que a ideologia parece funcionar hoje no nosso autoproclamado universo pós-ideológico: desempenhamos os nossos mandatos simbólicos sem os assumirmos verdadeiramente, sem os levarmos realmente a sério. Um pai, por exemplo, encarna o papel simbólico de pai, mas acompanha esse papel com um fluxo constante de comentários irónicos e reflexivos denunciando a convenção estúpida da paternidade. Gozamos com as nossas crenças, mas continuamos a praticá-las, ou seja, continuamos a confiar nelas como estrutura em que assentam as nossas práticas quotidianas. Em suma, é sempre a mesma história que nos é contada, embora surja com deslocações, auto-ironia e distanciamentos brechtianos. Ora, a verdadeira função destes últimos mecanismos referidos consiste precisamente em conservar essa história tradicional como relevante para a nossa época pós-moderna – impedindo-nos assim de substituí-la por uma nova história. Se pretendemos levar a sério a ideologia liberal hegemónica, não é possível ao mesmo tempo ser inteligente e honesto: ou se é completamente idiota ou cinicamente corrupto.
Coragem Ética – Hoje precisamos de uma nova coragem e é essa falta de coragem – que, em última instância é também a coragem de questionar a sua própria posição – que é o facto mais flagrante na reacção dos intelectuais americanos e europeus. Claro que podemos sempre advogar que essa coragem também já os nazis a tiveram e, como se viu, isso não trouxe propriamente bons resultados. Todavia, o que torna o nazismo repugnante não é a retórica da solução final enquanto tal, mas a dimensão concreta que lhe imprimiu – o que tornou o nazismo repugnante foi, principalmente, a passagem ao acto. É errado partir do princípio que, ao assumir uma posição, cada sujeito sabe que todas as posições são relativas, condicionadas por constelações históricas contingentes e que, por conseguinte, ninguém está na posse de uma solução definitiva, mas apenas de soluções temporárias e pragmáticas. O relativismo ilustrado por esse exemplo, aparentemente todo feito de modéstia, esconde na realidade a posição inversa ao favorecer a própria posição do seu enunciado. Para nos convencermos disso basta comparar o combate e o sofrimento do fundamentalista com a paz serena do democrata liberal que, protegido na sua posição subjectiva, rejeita ironicamente qualquer comprometimento forte, qualquer defesa de um ponto de vista dogmático. Neste caso, deveríamos pôr antes em prática as palavras bem conhecidas de Cristo ao anunciar que trazia o gládio e a divisão e não a unidade e a paz: em nome do amor pela humanidade. Deveríamos completar a citação judia, evocada muitas vezes a propósito do Holocausto (“Quando alguém salva um homem da morte, salva toda a humanidade”), por: «Quando alguém mata nem que seja um só inimigo da humanidade, não está a matar mas a salvar toda a humanidade». O verdadeiro esforço ético não está apenas na decisão de salvar vítimas, mas também – e talvez muito mais – na dedicação impiedosa de aniquilar aqueles que fazem delas vítimas.
Retirado de:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Slavoj_%C5%BDi%C5%BEek
http://www.egs.edu/faculty/slavojzizek.html
http://www.lacan.com/blog/index.html
Slavoj Zizek, filósofo, pensador e investigador, apresenta na Cinemateca de Lisboa o seu livro sobre cinema moderno – Lacrimae Rerum – com ensaios sobre Hitchcock, Lynch, Tartovsky e outros cineastas de renome
“LACRIMAE RERUM reúne um conjunto de ensaios sobre cinema moderno. Numa abordagem às filmografias de Kieślowski, Hitchcock, Tarkovsvki e Lynch, Žižek decripta as imagens e o cinema de cada um destes autores para nos propor um estudo aprofundado dos seus motivos e movimentos. E colocando-nos face aos nossos próprios medos, ou desejos, estabelece a ponte final da análise entre o espectador-receptor e a projecção das suas pulsões em imagens tão familiares quanto fabricadas.”
Lacrimae Rerum reuniu ensaios sobre Alfred Hitchcock, David Lynch, Andrei Tarkovsky, Krzysztof Kieslowski, onde analisa as imagens de cada um destes cineastas, conhecidos pelo seu cinema de autor, para encontrar as pulsões humanas que se escondem por trás de cada um delas.
Zizek, psicanalista e investigador de Sociologia na Universidade de Liubliana, tem uma vasta bibliografia, traduzida em mais de 20 idiomas, e colaborou com Sophie Fiennes no documentário The Pervert’s Guide to Cinema, de 2006.
Slavoj Žižek (Liubliana, 21 de Março de 1949) é um sociólogo, filósofo e crítico cultural esloveno. Seu nome é pronunciado como "slávoi jijec".
Nasceu em Liubliana, na antiga Jugoslávia (hoje capital da Eslovénia). Doutorou-se em Filosofia na sua cidade natal e estudou Psicanálise na Universidade de Paris.
Žižek é professor da European Graduate School e pesquisador sénior no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É também professor visitante em várias universidades estadunidenses, entre as quais estão a Universidade de Columbia, Princeton, a New School for Social Research, de Nova Iorque, e a Universidade de Michigan.
Žižek é conhecido por seu uso de Jacques Lacan numa nova leitura da cultura popular - por exemplo, Alfred Hitchcock, David Lynch, V. I. Lenin, fundamentalismo e tolerância, correcção política, subjectividade nos tempos pós-modernos e outros tópicos.
Em 1990, candidatou-se à presidência da República da Eslovénia.
Teoria: o real, o simbólico e o imaginário
O real
Aqui, o "real" resulta ser um termo bastante enigmático, e não deve ser equiparado com a realidade, uma vez que a nossa realidade está construída simbolicamente; o real, pelo contrário, é um núcleo duro, algo traumático que não pode ser simbolizado (isto é, expressado com palavras). O real não tem existência positiva; só existe como abstracto.
Nem tudo em realidade pode ser desmascarado como una ficção; basta ter presente certos aspectos - pontos indeterminados - que têm que ver com o antagonismo social, a vida, a morte, e a sexualidade. Temos que enfrentar com estes aspectos se quisermos simbolizá-los. O real não é nenhuma espécie de realidade atrás da realidade, mas sim o vazio que deixa a própria realidade incompleta e inconsistente. É o espectro do fantasma; o próprio espectro em si é o que distorce a nossa percepção da realidade. A trilogia do simbólico/imaginário/real se reproduz dentro de cada parte individual da subdivisão. Há também três modalidades do real:
O "real simbólico": o significante reduzido a uma fórmula sem sentido (como em física quântica, que como toda ciência parece arranhar o real mas só produz conceitos apenas compreensíveis)
O "real real": uma coisa horrível, aquilo que transmite o sentido do terror nas películas de terror.
O "real imaginário": algo insondável que permeia as coisas como um pedaço do sublime. Esta forma do real torna-se perceptível na película Full Monty, por exemplo, no facto de que na nudez dos protagonistas desempregados, estes devem despir-se por completo; noutras palavras, através deste gesto extra de degradação "voluntária", algo da ordem do sublime se faz visível. A psicanálise ensina que a realidade (pós-moderna) precisamente não deve ser vista como uma narrativa, mas como o sujeito o há de reconhecer, suportar e ficcionar o núcleo duro do real dentro de sua própria ficção.
O simbólico
O simbólico inaugura-se com a aquisição da linguagem; é mutuamente relacional. Assim, sucede aquilo de que "um homem só é rei porque os seus súbditos se comportam perante ele como um rei". Ao mesmo tempo, permanece sempre uma certa distancia no que diz respeito ao real (excepto na paranóia): nem só é louco o mendigo que pensa que é rei, também aquele rei que verdadeiramente crê que é um rei. Uma vez que efectivamente, este último só tem o "mandato simbólico" de rei.
O real simbólico é o significante reduzido a una fórmula sem sentido. O imaginário simbólico qual símbolos jungianos. O simbólico simbólico como o falar e a linguagem como sentido em si. O visor do monitor como forma de comunicação no ciberespaço: como um interface que nos leva a uma mediação simbólica da comunicação, a um abismo entre quem seja que fala e a "posição de falar" em si (p.ex. a alcunha, ou a direcção de correio). "Eu" nunca "de facto" coincido exactamente com o significante, não me invento a mim mesmo; em contrapartida, a minha existência virtual foi, em certo sentido, já confundida com o surgimento do ciberespaço. Aqui cada um, deve chegar a entender-se com uma certa insegurança, mas não pode ser resolvida como num simulacro de contingente pós-moderno... Aqui também, como na vida social, as redes simbólicas circulam á volta dos núcleos do real. As redes simbólicas, são a nossa realidade social.
O imaginário
O imaginário encontra se situado ao nível da relação do sujeito consigo mesmo. É como o olhar do Outro na etapa do espelho, a falta em esse reconhecimento ilusório, como conclui Jacques Lacan citando a Arthur Rimbaud: "Eu sou um outro" ("Je suis un autre"). O imaginário é a fantasia fundamental que é inacessível á nossa experiência psíquica e se eleva do espectro fantasmático em que encontramos objectos de desejo. Aqui também podemos dividir o imaginário entre um real (o fantasma que assume o lugar do real), um imaginário (a imagem/espectral em si que serve como isco) e um simbólico imaginário (os arquétipos de Jung e o pensamento New Age). O imaginário nunca pode ser agarrado, já que todo discurso sobre ele sempre estará localizado no simbólico.
Todos os níveis estão interligados, de acordo com Jacques Lacan (desde o seminário XX para a frente), numa forma de nó gordiano, como três anéis enlaçados juntos de maneira que se um deles se desenlaçara, o resto também cairia.
Conceitos
Significante vazio – Signo que, devido à repetição exaustiva em circunstâncias totalmente díspares, perde completamente o seu valor. Ex: último andamento da nona sinfonia de Beethoven que é ouvido em toda e qualquer efeméride social e política, tentando fazer com que nos esqueçamos das nossas oposições e participemos nesse momento mágico de fraternidade humana.
Auseinandersetzung – Termo operado de Heidegger que transmite a necessidade europeia de se repensar, uma confrontação interpretativa, quer em relação aos outros quer em relação ao passado da própria Europa em todas as suas dimensões, das suas raízes antigas e judaico-cristãs à ideia recentemente defunta de Estado-providência, sobretudo quando actualmente a Europa se encontra balizada pela tecnologia desenfreada da China, por um lado, e pela globalização e economia americana, por outro. A pior opção seria, sem dúvida, a proposta de uma “síntese criadora” destes dois aspectos, no interior da Europa, tendendo para o que chamaríamos de “globalização de rosto europeu”. A época é, portanto, propícia a questionar tudo e a repetir a pergunta – “O que é a Europa?”.
Censura liberal – Sentimo-nos livres exactamente porque nos falta precisamente a linguagem que poderia transmitir essa mesma falta de liberdade, ainda que se reconheça que, supostamente, vivemos na época em que todos somos totalmente livres. “Guerra contra o terrorismo”, “democracia e liberdade”, “direitos do homem” são falsos termos que mistificam a nossa percepção da situação e nos impedem de verdadeiramente reflectir sobre ela. “As nossas profundas «liberdades» servem para mascarar e sustentar a nossa profunda «falta de liberdade»”. “Somos livres de escolher… desde que façamos a boa escolha”. É exactamente o que se passa quando, hoje em dia, nos pedem para escolher: ou democracia, ou fundamentalismo. Entre estes dois termos, é impossível não escolher a democracia. Todavia, importa reter que o problema da proposta não é o fundamentalismo, mas sim a democracia, como se a única alternativa fosse a democracia liberal parlamentar.
A paixão pelo Real – Acto de autenticidade executado; realização directa da nova ordem há muito aguardada; alcançar finalmente a própria “coisa”. A experiência directa do Real opõe-se à experiência directa da realidade social quotidiana, uma vez que o Real surge como o preço a pagar depois de despojar a realidade das suas camadas ilusórias. A autenticidade do Real reside num acto violentamente transgressor, como o Real lacaniano – essa Coisa que Antígona enfrenta quando decide transgredir as leis da cidade. No Ocidente desenvolvido, a frenética actividade social dissimula a monotonia do capitalismo global, a ausência de um Evento… Talvez o actual terror fundamentalista tenha como propósito o de nos fazer emergir, a nós, cidadãos do Ocidente, do nosso torpor, do universo do nosso condicionamento ideológico quotidiano. O colapso das torres pode ser visto como a apoteose conclusiva da arte do século XX e da sua paixão pelo Real.
Cutters – Indivíduos que se cortam com o intuito de enraizar solidamente o ego na realidade corporal para combater a angústia insuportável do indivíduo que tem a impressão de não existir. O cutting opõe-se à prática da tatuagem, que funciona como testemunho da inclusão do sujeito na ordem simbólica, inscrevendo-a no próprio corpo.
Multiculturalismo liberal e tolerante – Sistema político vigente que se caracteriza, essencialmente, por uma política sem política, aquilo que também pode ser designado por uma arte da administração elaborada por especialistas, ou ainda a experiência do Outro privado da sua Alteridade. A realidade virtual não faz mais que generalizar este processo que consiste em oferecer um produto privado da sua substância, do seu núcleo de real, de resistência material. Este fenómeno é ainda percebível através dos numerosos produtos postos à venda no mercado dos quais foram extirpadas as suas propriedades malignas: café sem cafeína, cerveja sem álcool, entre outros (ver “dessubstancialização”). Por fim, as atitudes mais recorrentes caracterizam-se por uma condescendência e um respeito repugnantes pelo Outro.
The Real Thing – A Coisa Verdadeira, o Vazio destruidor. Culmina na queda das torres, nos snuff movies, nos sites porno em que uma câmara é aplicada a um vibrador de forma a dar a ver o interior de uma vagina. Aliás, existe uma conexão evidente entre as imagens da realidade e as imagens divulgadas mediaticamente. Tudo ganha uma distância que permite que a dor das vítimas seja a volúpia do espectador. Veja-se a repetição compulsiva das imagens da queda do WTC e o fascínio que tais imagens sobre nós exerceram.
Desrealização – Tentativa de tornar a realidade privada de substância, de inércia material. Embora o número de vítimas do WTC não parasse de ser repetido, é surpreendente constatar a quase ausência de imagens de carnificina. Pelo contrário, sempre que se assiste à difusão de imagens do terceiro mundo, todo e qualquer pormenor macabro (cabeças degoladas, membros extirpados…) é sempre apresentado antecedido do aviso do horror das imagens que se seguem. Com isto, pretende-se sempre desrealizar a realidade, alterar a substância do que se vive tentando incutir ao espectador que o terrorismo está além e não aqui. Por conseguinte, na sociedade consumista do capitalismo avançado, é a própria vida que possui, de certo modo, as características do espectáculo de Hollywood, operando essa desmaterialização da vida verdadeira.
A travessia do Fantasma – Comummente julga-se que a psicanálise tem como pressuposto libertar-nos dos nossos fantasmas, permitindo-nos confrontar com a realidade tal qual ela é. Nada mais errado: Lacan pretendia, pelo contrário, dar a ver como, na nossa existência quotidiana, nos encontramos imersos na realidade, estruturada e sustentada pelo fantasma, sendo esta imersão perturbada pelos sintomas que testemunham o facto de um outro nível da nossa psique, reprimido, resistir a essa imersão. Atravessar o fantasma significa, então, paradoxalmente, identificar-se completamente com ele, isto é, com esse fantasma que estrutura o excesso que resiste à nossa plena imersão na realidade quotidiana, distinguir claramente o que é realidade do que é a nossa ficção, o nosso fantasma. Temos de conseguir distinguir, naquilo que apreendemos como ficção, o núcleo sólido do Real, que só podemos enfrentar se o ficcionarmos. Em suma, temos de distinguir como uma parte da realidade é transfuncionalizada pelo fantasma, de modo que, apesar de constituir parte da realidade, é apreendida no modo da ficção. A exposição do próprio Fantasma é um acto demasiado traumático para ser dito numa conversa. Daí que na psicanálise a figura do terapeuta tende à invisibilidade, ou então como, n’A Pianista, a professora dá a conhecer o seu Fantasma ao aluno apenas por escrito. O Fantasma exposto constitui o núcleo do seu ser, que está mais nela do que ela própria.
Existência/ Insistência – Os traumas históricos que não estamos prontos a enfrentar continuam-nos a assombrar com ainda mais força. Devemos portanto aceitar este paradoxo: o verdadeiro esquecimento de um acontecimento deve começar pela sua rememoração. Para compreender o justo alcance deste oximoro, devemos ter presente no espírito que o contrário da existência não é a não existência, mas sim a insistência: insistir para que exista para que seja absorvido e deixe de existir. Assim, as presentes revoluções repetem e redimem as suas malogradas tentativas passadas: os sintomas, as causas, as marcas do passado que são retroactivamente redimidas pelo milagre da intervenção revolucionária, não são tanto actos esquecidos, mas falhanços esquecidos para passar ao acto, tentativas malogradas para suspender a força do aparelho social que inibe os actos de solidariedade para com os outros. Num certo sentido, os sintomas, os falhanços, porque não têm existência, insistem até ganharem uma plena consistência ontológica, como se fossem arquivos virtuais vazios que guardamos que persistem da experiência histórica. O seu principal objectivo é o de preencher o vazio deixado pelo malogro de uma intervenção real na crise social.
Excesso de Superego – Este conceito pode ser materializado na figura do coronel Kurtz (Marlon Brando em Apocalipse Now) ou até mesmo, a meu ver, na personagem Mestre Ubu. Ambos simbolizam o pai primordial freudiano por excelência, o pai obsceno do gozo ao qual nenhuma lei simbólica opõe um limite, o Mestre absoluto que ousa confrontar-se com o Real do gozo aterrador. A sua supra-identificação com o sistema leva-o a tornar-se o excesso que o sistema, posteriormente, é obrigado a eliminar. Bin Laden, Hitler e Estaline são figuras que cabem dentro deste conceito. O que permanece fora do nosso horizonte é a perspectiva de uma acção política quebrando o círculo vicioso do sistema que engendra o excesso do seu superego, uma violência revolucionária que já não assentaria na obscenidade do superego, passada essa primeira fase de ostentação do verdadeiro bacanal da destruição, da despesa supérflua, puramente revolucionária. É este acto impossível, em que a violência revolucionária já não assentaria na obscenidade do superego, que todavia ocorre em qualquer autêntico processo revolucionário. Note-se ainda que, para Zizek, o desejo pio de privar a revolução deste excesso é simplesmente o desejo de ter uma revolução sem revolução. A grande diferença entre Lenine e Estaline consiste primeiramente na explosão da energia leninista puramente destruidora, portanto liberatória, para o cabouco estalinista e obsceno da Lei: Lenine é revolucionário e Herói, enquanto Estaline é ditador totalitário, resultado do excesso de Superego estatal que teria de ser eliminado.
Herói – Assume plenamente a fundação suja e obscena do poder, aquele que diz: “Mãos à obra, alguém tem de fazer o trabalho sujo”. Assume que o Real é alcançado pela destruição do elemento excessivo que o antagonismo da revolução produz. Age por si, sem antecipar consequências. O seu lema é: “Atacamos e logo veremos”. O que há de interessante nesta expressão é o facto de ela combinar o voluntarismo, uma atitude activa, empreendedora, arriscada, e um fatalismo mais fundamental: uma pessoa age, salta e depois… espera que as coisas corram bem. E se fosse desta posição que mais precisamos hoje, divididos como estamos entre as duas faces da “ideologia espontânea” da globalização contemporânea – por um lado, o pragmatismo utilitário e ocidental e, por outro, o fatalismo oriental?
Política da Abstracção/ Dessubstancialização – A guerra de alta tecnologia e os bombardeamentos de precisão são, a título de exemplo, um dos casos que o autor cita. Com estes exemplos, Zizek dá conta não só da distância a que as guerras são travadas, sendo cada vez mais raro o combate frontal corpo a corpo, como também da alta tecnologia e da presença de especialistas que decidem ataques mediante números, hipóteses e estimativas. O soldado de guerra é, actualmente, um especialista de informática que carrega em duas ou três teclas para fazer explodir uma porção de território do inimigo. Tendo ainda como base dados puramente matemáticos, esta política permite que um país seja financeiramente são, ainda que um milhão de habitantes esteja a morrer à fome. Perante esta política, surge uma nova arte da guerra bacteriológica, recorrendo ainda ao uso de gás letal ou ainda veneno que, combinando premissas a partir do ADN, matam apenas especificamente certo grupo de pessoas.
Fetichismo – De acordo com Marx, o prazer do fetichismo recaía principalmente na posse física do objecto e da sua própria concretude. Porém, na época em que vivemos, o fetichismo atinge o seu máximo paroxismo quando o dinheiro, a guerra e os vírus vivem em todo o lado e atingem em pleno uma realidade virtual. Mil euros e uma bactéria nociva pertencem muito mais a uma inscrição virtual, algures no planeta, do que propriamente a uma realidade física. O universo conhecido começa a desmoronar-se e a vida a desintegrar-se.
Choques de civilizações – Os choques reais estão, basicamente, todos ligados ao capitalismo global. Em vez de glosar interminavelmente sobre a intolerância característica do fundamentalismo islâmico em relação às nossas sociedades liberais, deveríamos centrar a nossa atenção sobre o pano de fundo económico do conflito – o choque de interesses económicos e geopolíticos dos próprios E.U.A. Estes choques de que falamos designam uma série de massacres perpetrados um pouco por toda a parte – Ruanda, Serra Leoa, Congo, Bósnia, Kosovo, Afeganistão… No fundo, todos estes casos atestam bem o facto de que os Estados Unidos dão claramente mais primazia à economia do que à democracia.
O Grande Outro – Aquilo em cuja prole agimos, em cujo nome se exerce uma busca impiedosa do poder, para o qual transferimos as nossas crenças. Aquele que acredita e sustém o nosso lugar, o nosso sujeito-suposto-crer.
A Outra Via – A verdadeira escolha para os dias que correm situa-se entre o capitalismo e o seu Outro, representado, neste momento, por correntes marginais como o movimento antiglobalização. Esta escolha faz-se acompanhar por fenómenos secundários estruturais, entre os quais, principalmente, a tensão inerente entre o capitalismo e o seu próprio excesso. Com efeito, é sempre o mesmo modelo: a fim de esmagar o seu verdadeiro inimigo, o capitalismo mobiliza o seu excesso obsceno sob a forma do fascismo; mais tarde, sob a forma do comunismo; agora, sob a forma do fundamentalismo e do terrorismo. Na verdade, a guerra contra o terrorismo, empreendida pela América, não é a nossa guerra, mas antes uma luta interna, no seio do universo capitalista. A democracia é hoje o fetiche político principal. A ideia de uma democracia honesta é uma ilusão, tal como é ilusória a ideia de uma ordem jurídica desembaraçada do complemento do seu superego obsceno. A ordem política democrática é, por natureza, susceptível de corrupção. Na realidade, a escolha é clara: aceitamos e endossamos essa corrupção dentro do espírito de uma sabedoria resignada e realista, ou reunimos coragem e formulamos uma alternativa de esquerda à democracia, para quebrar o círculo vicioso da corrupção democrática e das campanhas empreendidas pela direita que pretendem desembaraçar-se dela. (vide coragem ética)
Cinismo – Recordo as palavras de Mohammed Omar, um líder talibã que se dirigiu ao povo americano a 25 de Setembro de 2001: “Vós aceitais tudo o que diz o vosso governo, seja verdade ou mentira (…). Não sabeis pensar por vós próprios? Seria melhor, para vós, se julgásseis por vós próprios, se utilizásseis a vossa própria compreensão das coisas”. Apesar de estas considerações serem indubitavelmente uma manipulação cínica (porque não dar o mesmo direito ao julgamento e à compreensão dos próprios Afegãos?), não parecerão elas contudo bastante apropriadas à situação, quando consideradas de forma abstracta e retiradas do seu contexto? (cf. crentes pós-modernos)
Felicidade – É necessário reunir três condições fundamentais: 1 – Haver bens materiais básicos, mas não completamente, evitando que o excesso de consumo gere insatisfação; por vezes, a penúria ensina-nos a aproveitar melhor os bens de consumo; 2 – Poder imputar o que corre mal ao Outro, para que ninguém se sinta responsável; a culpa é sempre deles; 3 – Haver um outro espaço com o qual se pode sonhar e, por vezes, visitar. Reunidas estas três condições, feliz era a Checoslováquia nos anos 70, princípios de 80. No sentido lacaniano do termo, a felicidade assenta na incapacidade ou na indisponibilidade do sujeito para se confrontar plenamente com as consequências do seu desejo: o preço a pagar pela felicidade é que o sujeito permanece entalado na inconsistência do seu desejo. Na vida quotidiana, julgamos desejar coisas que, na verdade, não desejamos e, em última instância, o pior que nos pode acontecer é obter o que desejamos oficialmente. A felicidade é, portanto, hipócrita por natureza: é a felicidade de sonhar com coisas que não desejamos verdadeiramente.
“Não quero saber nada sobre isso” – Porque o saber traz infelicidade, Lacan sustém que esta é a principal atitude do homem face ao conhecimento, como se houvesse uma resistência fundamental à ideia de saber mais. Qualquer verdadeiro progresso, na área do saber, só se obtém através de um combate doloroso contra essa propensão espontânea. Por exemplo, se corrêssemos o risco de ter contraído uma doença grave que nos mataria aos trinta e cinco anos, quem faria voluntariamente os exames para aferir se corria efectivamente esse risco? Contudo, o problema com uma solução do género “Autorizo outra pessoa a saber o resultado e a não mo dizer, caso ele seja positivo, ajudando-me a morrer durante o sono” levanta uma questão: eu saber que o Outro sabe arruína tudo e expõe-me a um total sentimento de desconfiança.
Saber do saber do Outro – Para Lacan, esta frase resume o facto de toda a economia psíquica de uma situação mudar radicalmente não porque eu aprendi qualquer coisa que ignorava, mas antes porque aprendi que o Outro, que eu julgava ignorante, sabia desde o início e agia como se nada soubesse para salvar as aparências. Existirá situação mais humilhante do que a do marido infiel que, posteriormente, vem a descobrir que a sua mulher tinha conhecimento de tudo embora o tenha calado, por delicadeza ou por desamor?
Crentes pós-modernos – Para o animal humano, é difícil e, até mesmo, traumático aceitar que a sua vida está ao serviço de uma Verdade e que não é simplesmente um processo estúpido de reprodução e busca de prazer. É desta forma que a ideologia parece funcionar hoje no nosso autoproclamado universo pós-ideológico: desempenhamos os nossos mandatos simbólicos sem os assumirmos verdadeiramente, sem os levarmos realmente a sério. Um pai, por exemplo, encarna o papel simbólico de pai, mas acompanha esse papel com um fluxo constante de comentários irónicos e reflexivos denunciando a convenção estúpida da paternidade. Gozamos com as nossas crenças, mas continuamos a praticá-las, ou seja, continuamos a confiar nelas como estrutura em que assentam as nossas práticas quotidianas. Em suma, é sempre a mesma história que nos é contada, embora surja com deslocações, auto-ironia e distanciamentos brechtianos. Ora, a verdadeira função destes últimos mecanismos referidos consiste precisamente em conservar essa história tradicional como relevante para a nossa época pós-moderna – impedindo-nos assim de substituí-la por uma nova história. Se pretendemos levar a sério a ideologia liberal hegemónica, não é possível ao mesmo tempo ser inteligente e honesto: ou se é completamente idiota ou cinicamente corrupto.
Coragem Ética – Hoje precisamos de uma nova coragem e é essa falta de coragem – que, em última instância é também a coragem de questionar a sua própria posição – que é o facto mais flagrante na reacção dos intelectuais americanos e europeus. Claro que podemos sempre advogar que essa coragem também já os nazis a tiveram e, como se viu, isso não trouxe propriamente bons resultados. Todavia, o que torna o nazismo repugnante não é a retórica da solução final enquanto tal, mas a dimensão concreta que lhe imprimiu – o que tornou o nazismo repugnante foi, principalmente, a passagem ao acto. É errado partir do princípio que, ao assumir uma posição, cada sujeito sabe que todas as posições são relativas, condicionadas por constelações históricas contingentes e que, por conseguinte, ninguém está na posse de uma solução definitiva, mas apenas de soluções temporárias e pragmáticas. O relativismo ilustrado por esse exemplo, aparentemente todo feito de modéstia, esconde na realidade a posição inversa ao favorecer a própria posição do seu enunciado. Para nos convencermos disso basta comparar o combate e o sofrimento do fundamentalista com a paz serena do democrata liberal que, protegido na sua posição subjectiva, rejeita ironicamente qualquer comprometimento forte, qualquer defesa de um ponto de vista dogmático. Neste caso, deveríamos pôr antes em prática as palavras bem conhecidas de Cristo ao anunciar que trazia o gládio e a divisão e não a unidade e a paz: em nome do amor pela humanidade. Deveríamos completar a citação judia, evocada muitas vezes a propósito do Holocausto (“Quando alguém salva um homem da morte, salva toda a humanidade”), por: «Quando alguém mata nem que seja um só inimigo da humanidade, não está a matar mas a salvar toda a humanidade». O verdadeiro esforço ético não está apenas na decisão de salvar vítimas, mas também – e talvez muito mais – na dedicação impiedosa de aniquilar aqueles que fazem delas vítimas.
Retirado de:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Slavoj_%C5%BDi%C5%BEek
http://www.egs.edu/faculty/slavojzizek.html
http://www.lacan.com/blog/index.html